Ao longo dos últimos anos o debate sobre os impostos foi ganhando cada vez mais centralidade. Em parte porque a direita, recorrendo ao seu aparelho de massificação comunicacional, puxou para si um alegado combate ao excesso de impostos, não situando sobre quem recai esse mesmo excesso.
A Iniciativa Liberal fez dos impostos cavalo de batalha e o PSD naturalmente quis acompanhar a retórica de quem saiu da sua barriga. Começou a ganhar força a ideia de que os salários não eram baixos, os impostos é que eram altos, tanto no caso do IRS como no caso do que as empresas têm que pagar à Segurança Social por cada trabalhador.
A isto acresce um conjunto de mitos que foram vendidos como verdadeiros. Começou a ser dito que só se podia baixar impostos para aumentar o rendimento disponível pelos trabalhadores porque a produtividade era insuficiente para aumentar salários; que as empresas pagam demasiados impostos, quando quem os paga em grande medida são as pequenas e médias empresas que nunca beneficiam reduções; e que os impostos aplicados às empresas afectam a produtividade.
Todos estes elementos estão presentes no Programa do Governo. O AbrilAbril seleccionou algumas partes desse mesmo Programa e procurou confrontá-lo com a realidade.
Salários versus Produtividade
Diz o programa de Governo o seguinte:
«Na área do trabalho e emprego, Portugal é sistematicamente apontado como um país onde se trabalha longas horas, sem grande produtividade, e por baixos salários, não apenas pelo peso do salário mínimo mas porque o valor do salário médio não é muito superior ao valor do salário mínimo» - Página 17
A isto, o Governo ainda acrescenta no documento:
«Incentivar ativamente o trabalho e o emprego, em todas as suas formas, e aumentar a produtividade. Em Portugal o valor do salário médio é muito próximo do valor do salário mínimo e há poucos incentivos à produtividade. Aumentar o salário mínimo nacional para 1.000 euros em 2028 é, pois, um objetivo do Governo, mas também promover as condições para sustentar o aumento do salário médio para 1.750 euros, em 2030, com base em ganhos de produtividade e no diálogo social»
«Aumentar a produtividade com medidas como a isenção de contribuições e impostos sobre prémios de produtividade por desempenho no valor de até 6% da remuneração base anual (correspondendo, dessa forma, a um 15º mês, quando aplicado), até à diminuição da carga fiscal sobre as empresas» - Página 18
Conforme se pode ver no gráfico abaixo, é simplesmente mentira dizer que os salários não aumentam porque a produtividade é baixa. O quadro, cujos cálculos foram realizados por Paulo Coimbra, economista que escreve regularmente para o blog Ladrões de Bicicletas, indica-nos que, concretizando-se as previsões, no fim de 2024 a produtividade terá crescido 23,9% e os salários reais apenas 11,9%.
Ou seja, o problema dos baixos salários não é da produtividade, mas sim da opção política de ter uma economia assente em baixos salários. Mas veja-se que criar uma realidade alternativa ajuda, mais uma vez, a justificar benefícios fiscais.
Diz o Governo que é necessário «aumentar a produtividade com medidas como a isenção de contribuições e impostos sobre prémios de produtividade». O Governo brinca com as dificuldades dos trabalhadores, substitui aumentos salariais por «prémios» com base em objetivos que podem ser inalcançáveis e não dão estabilidade, e faz o favor às empresas de evitar que estas façam contribuições para a Segurança Social.
«Carga fiscal muito elevada»
Diz o Governo que temos uma carga fiscal muito elevada. É pena que esta observação da direita não seja acompanhada por uma necessidade de aplicar justiça fiscal. O objectivo do Governo é somente baixar os impostos, mas os que são aplicados ao grande capital.
Veja-se o que diz o Programa do Governo:
«Adicionalmente, existem especificidades do nosso País que são obstáculos ao desenvolvimento económico, tais como a carga fiscal muito pesada que desincentiva o trabalho e limita a acumulação de capital necessária para que as empresas possam investir mais e crescer, e a carga burocrática que as obriga a aplicar recursos em atividades não produtivas» - Página 33
Os quadros abaixo demonstram o peso dos impostos nos rendimentos do trabalho e nos rendimentos do capital. Segundo os dados recolhidos por Alexandre Mergulhão e publicados num estudo divulgado pelo Causa Pública, os rendimentos do trabalho, entre 2000 e 2022, desceram 6,2 p.p, enquanto que os impostos subiram 4 p.p. O mesmo não se pode dizer no caso dos rendimentos sobre o capital que entre 2000 e 2022 subiram 4,7 p.p, sendo que os impostos aumentaram apenas 0,2 p.p.
O autor indica ainda que entre 2000 e 2022, «tanto o IVA como o IRS aumentaram 1,7 p.p. do PIB. Já os principais impostos sobre o capital aumentaram apenas 0,2 p.p. do PIB, enquanto os rendimentos do capital passaram a representar mais 4,7 p.p. do PIB (de 28,1% para 32,8%). Mesmo que considerássemos que o capital paga toda a TSU de 23,75%, a receita apenas teria aumentado 1,3 pontos percentuais, porque o IRC caiu de 3,5% para 3,2% do PIB nestas duas últimas décadas».
Veja-se que, ainda que «Portugal apenas tem uma carga fiscal acima da média da União Europeia num tipo de imposto: sobre o consumo». No sentido contrário «a receita com impostos sobre o capital foi sempre inferior à média da UE e da AE (8,8%), tendo atingido o pico em 2013 (7,6%) e, desde então, diminuído para os atuais 6,5% do PIB».
O mito do IRC
O exemplo de um IRC elevado é dos maiores mitos que são contados, mas também revelador da maior falta de respeito que existe pelos pelos trabalhadores, por quem produz a riqueza.
Com a ladainha da carga fiscal a mais sobre a empresas, o Programa do Governo prevê:
«Redução das taxas de IRC, começando com a redução gradual de 2 pontos percentuais por ano, enquadrada na transposição para a ordem jurídica nacional dos trabalhos em curso, ao nível da OCDE e da UE, relativas à garantia de um nível mínimo mundial de tributação para os grupos de empresas multinacionais e grandes grupos nacionais na União, que se destina a assegurar a tributação efetiva dos lucros a uma taxa de 15%;»
«Promover a eliminação, de forma gradual, da progressividade da derrama estadual e da derrama municipal em sede de IRC, assegurando no caso da última a compensação através do Orçamento do Estado da perda de receita para os municípios;» - Página 39
Analisemos o gráfico abaixo. Conforme se pode ver, há uma clara diferença entre a taxa normal, a taxa efectiva e a taxa máxima que inclui as derramas. A direita escuda-se com o facto da taxa máxima ser de 31,5%, mas não diz que poucas são as empresas que a pagam.
Para uma empresa pagar a taxa máxima de IRC precisa de ter um rendimento colectável superior a 1,5 milhões de euros, algo que só corresponde a 0,8% do tecido empresarial português.
A generalidade da empresas paga a taxa efectiva de IRC, o que correspondia, até 2020, aos 18,4%. As pequenas e médias empresas pagam essa taxa nos primeiros 50000 euros de matéria colectável e a taxa efectiva só recai sob o excedente. Até 2021, do 1357657 PME's em Portugal, 0,6% eram médias empresas, 3,3% pequenas empresas e as micro empresas representavam um total de 96,1% (1305100 empresas) do tecido empresarial.
Ou seja, o Governo encontra-se preocupado com o 0,8% do tecido empresarial, aquele que ganha milhões e que somente por isso é que paga a taxa máxima que inclui derramas. O Governo ao querer eliminar as derramas e a compensar os municípios via Orçamento do Estado está automaticamente a aliviar as grandes empresas e, simultaneamente, a usar dinheiro que devia servir para investir nas funções sociais do Estado para patrocinar essa borla fiscal que só compensa os milionários donos das empresas.
Caso estivesse realmente preocupado com as PME baixaria os impostos sob o custos fixos como no caso do IVA na energia ou telecomunicações.
A patranha do IRS
De facto, sobre o IRS o Programa de Governo. O documento, ao contrário das várias declarações públicas feitas por membros do Governo (em campanha e fora dela).
- «Dar continuidade ao desenvolvimento de mecanismos que acentuem a progressividade do IRS, concluindo a revisão de escalões, de forma a desagravar os impostos sobre o rendimento das classes médias e assegurar uma maior equidade no tratamento de todos os tipos de rendimentos» - Programa do Governo, página 125
Já o ministro das Finanças, Miranda Sarmento, disse na Grande Entrevista da RTP que o Governo quer ir «mais além», que a proposta do Governo «é mais ambiciosa», que permite «abranger mais contribuintes» e que «face àquilo que os portugueses já sabem que pagaram em 2023, há um desagravamento fiscal significativo».
O que seria um grande «choque fiscal» não passou de demagogia barata para enganar os eleitores. Veja-se então na tabela abaixo que quem tem um rendimento bruto de 1000 euros só irá poupar 1,79 euros por mês com a alteração do Governo. A proposta acabar por beneficiar quem mais rendimentos tem. Quem aufere 5000 euros brutos por mês, irá poupar 42,66 euros por mês. Quem muito tem, muito poupa e quem pouco tem, com pouco fica.
Em Portugal, em 2023, o número de pessoas agora empregadas foi de 5,02 milhões, sendo que dessas, 3 milhões recebem até 1000 euros de salário bruto por mês.
A isto, o Governo ainda vendeu uma grande redução IRS Jovem. Prometia o Programa de Governo o seguinte:
«Valorização do rendimento dos mais jovens, num esforço partilhado entre empresas (por via da valorização salarial) e Estado (por via do alargamento do IRS Jovem, abrangendo mais jovens, durante mais anos)» - Página 123
Acontece que os jovens até aos 35 anos, até ao oitavo escalão, não vão pagar mais de 15% de IRS. Acontece que em 2022, 52% dos jovens trabalhavam até 35 horas e recebiam, em média, €725/mês e nos que trabalhavam entre 35 e 40 horas, 78,6% recebia €847. Ou seja, estavam já isentos do pagamento de IRS. Mais uma vez o Governo recorreu à retórica para apresentar uma medida que em nada muda a vida dos trabalhadores.
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