Face a uma inflação de 10%, o que fazer? Aumentar todos esses preços e prestações 10%? Aumentar umas coisas e não aumentar outras? É um debate que surgiu naturalmente. E também naturalmente já se formaram dois grupos de opiniões – uns a exigir que sejam aumentados os salários e pensões e travados os aumentos de preços que for possível ir travando, e outros, apontando a necessidade de conter o aumento de salários e pensões, mas respeitando as obrigações contratuais do Estado para com as empresas.
No fundo, e de forma crua, cada lado olhando o mundo por antagónicos interesses de classe.
Vejamos o caso das portagens. Há quem as pague e há quem as receba. Tomando partido pelas necessidades de quem as recebe, lemos, com uma clareza que é rara, a constatação do Jornal de Negócios sobre o impacto de um eventual não aumento de 10% nas portagens, alertando que o impacto se faria igualmente sentir «quer na do próximo ano, quer até ao final do prazo das concessões, já que um travão ao aumento das portagens no próximo ano afecta a base em que serão determinadas futuras actualizações até ao fim dos contratos.»
Isto é verdade. Para quem recebe e para quem paga. Veja-se o exemplo do quadro 1:
Portagem | Actual | Com Aumento de | Com Aumento de | Diferença | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
10% em 2023 | 5% em 2024 | 3% em 2025 | 2% em 2023 | 5% em 2024 | 3% em 2025 | Acumulada em 2025 | ||
Ponte 25 Abril C1 | 1,90 € | 2,10 € | 2,20 € | 2,25 € | 1,95 € | 2,05 € | 2,10 € | 0,15 € |
Ponte 25 Abril C4 | 7,35 € | 8,10 € | 8,50 € | 8,75 € | 7,50 € | 7,85 € | 8,00 € | 0,75 € |
Mesmo com aumentos iguais em 2024 e 2025, o menor aumento em 2023 vai ter um impacto por toda a vida destas concessões.
Isto é o suficiente para que o patronato do sector se ache no direito de exigir – para não aplicar um aumento de 10% – elevadas compensações e um prolongamento do prazo das concessões.
O que claramente o Jornal de Negócios compreende. E compreende-se que compreenda.
Acontece que isto também é verdade para salários e pensões. Mesmo que este ano seja pago um prémio – solução, inspirada nos 125 euros do Governo, que está a ser implementada em várias empresas – tal não irá «compensar» a perda deste ano face à inflação. Sem aumentos salariais, a perda de 2022 vai repercutir-se sobre todos os anos seguintes, quer activos, quer na reforma. Veja-se o quadro 2:
Salário anual | Prémio 2022 | Aumento Intercalar | Salário Mensal de Dezembro 2022 | Remuneração em 2022 | Salário 2023 (5% de aumento) | Salário 2024 (3% de aumento) | Salário 2025 (3% de aumento) | Salário 2026 (3%) de aumento | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Não actualizando | 14.000 € | 0 € | 0% | 1.000 € | 14.000 € | 14.700 € | 15.141 € | 15.595 € | 16.063 € |
Não actualizando (mesmo com prémio) | 14.000 € | 700 € | 0% | 1.000 € | 14.700 € | 14.700 € | 15.141 € | 15.595 € | 16.063 € |
Actualizando o Salário | 14.000 € | 700 € | 10% * | 1.100 € | 14.700 € | 15.898 € | 16.375 € | 16.866 € | 17.372 € |
Diferença | 700 € ou 0 € | 1.198 € | 1.234 € | 1.271 € | 1.309 € |
* (com meio ano de retroactividade para compensar custos já suportados)
Como se pode facilmente constatar, a diferença é brutal e vai aumentando a cada ano, repercutindo-se também num futuro valor de pensão inferior. E um eventual prémio só «parece» compensar, mas não altera o estrago para o futuro.
E, no entanto, não lemos um artigo na comunicação social dominada a alertar para o efeito sobre os rendimentos futuros dos trabalhadores se o aumento de 10% não se efectuar. E os próprios capitalistas, que já aumentaram os preços provocando a inflação ou reclamam o direito de o fazer devido à inflação, incluindo os donos do capital das concessionárias rodoviárias, nem sequer admitem aumentar os salários dos seus trabalhadores em 10%.
O acima exposto serve só para recordar que o grande capital e os membros do seu Governo sabem muito bem que aquilo que estão a fazer é um roubo nos rendimentos de pensionistas e trabalhadores, e que esse roubo se vai fazer sentir até ao fim da vida desses trabalhadores e desses pensionistas.
«E, no entanto, não lemos um artigo na comunicação social dominada a alertar para o efeito sobre os rendimentos futuros dos trabalhadores se o aumento de 10% não se efectuar.»
Mas é assim. Cada um vê o mundo de um dos lados da luta. Não há neutros nem inocentes, excepto no vasto campo daqueles que acreditam que não há luta de classes, e que sistematicamente dão força aos que, objectivamente, trabalham contra os seus interesses.
Claro que travar o aumento das portagens vai prejudicar os capitalistas do sector. Vai reduzir-lhes o lucro. Mas a alternativa iria prejudicar milhões, incluindo milhares de empresas que fazem bastante mais falta a Portugal do que estes cobradores de rendas. Da mesma forma, actualizar os salários e as pensões em 10%, corrigindo o efeito da inflação, é fundamental para manter os rendimentos de milhões de portugueses – mas vai objectivamente prejudicar a classe que vive da extração da mais-valia. É preciso optar. Em vez de fingir inevitabilidades ou que é possível encontrar falsas soluções «para todos».
Nada é inevitável. Tudo é luta e correlação de forças.
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