A «Estratégia para os Portos Comerciais do Continente 2025-2035» adoptada em Agosto, em Resolução do Conselho de Ministros (RCM), sucede à «Estratégia para o Aumento da Competitividade da Rede de Portos Comerciais do Continente» adoptada pelo Governo PS, em 2017.
Como de costume, uma estratégia substitui outra, uma promessa substitui outra, sem qualquer explicação séria para o fracasso ou sucesso da anterior, sem qualquer avaliação da taxa de concretização dos investimentos realizados, etc. Apesar da política e da estratégia ser essencialmente a mesma finge-se que «antes» era tudo diferente porque estavam «outros» e agora tudo vai ser diferente porque estamos «nós». Assim escapando ao controlo efectivo das opções tomadas.
No essencial, a estratégia é o recompilar de projectos que se arrastam, de intenções vagas e da renovação de concessões, exagerando todas os impactos expectáveis. É, basicamente, propaganda para as autárquicas. E se algo estratégico se pode vislumbrar é a propensão para continuar a privilegiar o turismo, a especulação imobiliária e a prestação de serviços.
Um plano desligado da restante economia nacional
O Governo afirma que a actividade portuária está estagnada e isso se deve à falta de investimento. E solta um hectolitro de promessas e boas intenções para cima dessa realidade. Ora, antes de mais os Portos são um reflexo da realidade económica nacional. Três exemplos que parecem claros:
Leixões e a Refinaria de Matosinhos – Em 2020, numa decisão criminosa da Galp, apoiada tanto pelo PS como pelo PSD, foi encerrada a Refinaria de Matosinhos. Isso afectou profundamente o Porto de Leixões e é o facto essencial que leva à redução da sua actividade. O encerramento da Refinaria de Matosinhos, liquidando o Aparelho Produtivo, teria de implicar a diminuição das exportações e o aumento das importações. E significou. Nenhuma medida de digitalização ou modernização dos Portos iria alterar este efeito.
O efeito das sanções à Rússia teria de se fazer sentir. Nenhuma digitalização ou modernização o alteraria. Como nas estatísticas nacionais a Rússia não tem uma categoria própria, está em «Outros Países da Europa», veja-se a evolução dessa origem/destino.
O efeito da privatização da CP Carga em 2015 – A repartição modal do transporte de mercadorias (% de Tkm) da ferrovia mantém-se estagnada desde 2015 (último ano de gestão pública da CP Carga) nos 14,1%, quando nos dez anos anteriores tinha aumentado 50% (de 9,2% para 14,1%). Porquê? Por causa das opções que a privatização trouxe à CP Carga. E isto apesar de ter havido (e estar a haver, ainda que realizados a baixa velocidade) algum investimento público na infra-estrutura para servir o transporte ferroviário de mercadorias. E isto apesar de, quer a IP, quer o Governo regularmente, anunciarem futuros crescimentos desse peso. Mas a multinacional, depois de ter recebido a CP Carga, continua mais preocupada em pedir mais (não quer pagar taxa de utilização, por exemplo) do que em investir no aproveitamento pleno dos investimentos públicos que vão sendo realizados.
«Se algo estratégico se pode vislumbrar é a propensão para continuar a privilegiar o turismo, a especulação imobiliária e a prestação de serviços.»
Estes três exemplos ilustram, antes de mais, que o sucesso ou fracasso de uma política portuária não pode ser desligada do conjunto das opções tomadas no País e no modelo de desenvolvimento que lhe está a ser imposto. Ora essa visão está completamente ausente da «estratégia».
O caso mais paradigmático talvez seja o da Concessão dos Estaleiros da Mitrena. Nestes estaleiros funciona uma empresa, a Lisnave, onde trabalham cerca de 2000 trabalhadores. Colocar a concurso a concessão é colocar a possibilidade dessa actividade concreta ser destruída. Como se pode anunciar este concurso sem qualquer reflexão sobre o impacto no aparelho produtivo nacional? Para somar 300 milhões ao investimento privado hipotético? Quando, mesmo sem concurso, a Lisnave já anunciou a vontade (e necessidade) de investir 200 milhões na modernização do estaleiro nos próximos anos, até para diversificar a sua actividade?
Porta aberta à especulação
Há uma fórmula na RCM que até pode passar desapercebida, mas que aponta um caminho muito perigoso, principalmente quando o poder político está completamente ajoelhado aos pés do poder económico. Somemos «Importa desenvolver um novo modelo de relação porto-cidade... efectivar o mecanismo de transferência da gestão de áreas não afectas à actividade portuárias para os municípios», «desenvolver modelos ágeis de investimento e de financiamento», «estabelecer que a assunção de compromissos, no âmbito da execução de medidas e ou investimentos previstos, depende exclusivamente de receita própria das administrações portuárias, de fundos privados e da comparticipação da União Europeia». E é impossível não ver o perigo de futuras desafectações, da entrega de zonas com potencial económico para investimentos que prometem lucros mais rápidos e maiores, como os ligados à actividade turística ou à pura especulação imobiliária. Ou para novos Centros Champalimaud a ocupar os terrenos da extinta Escola de Pesca e da Marinha de Comércio.
A questão da ligação eléctrica a navios nos portos
Esta é uma das medidas de investimento destacadas, e que se encontram previstas praticamente em todos os portos. Mas não se pense que é algo que foi agora pensado, planeado e começado a executar. Em Lisboa, depois da CDU o ter levantado diversas vezes na autarquia, o projecto está em (lenta) concretização, pelo menos desde 2022. Na APDL [Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo] também já leva algum tempo. Em vez de sentir necessidade de justificar as causas da obra ainda não estar concretizada (algumas são objectivas, há estudos e projectos para fazer, por exemplo, e não se fazem em três dias... mas também não têm de demorar três anos), o Governo entretém-se (e entretém-nos) a fingir que é decisão sua construir este equipamento (que faz falta, de facto).
O que nenhum deles explica é porque, estando os terminais de mercadorias concessionados a quatro empresas privadas (TSA, Sotagus, TMB e ETE) e uma em privatização (Silopor), estando o Terminal de Cruzeiros concessionado à privada Lisbon Cruise Terminal, estando a REN privatizada e a distribuição de electricidade privatizada (E-REDES), esta obra, que vai servir esses terminais, e se estima ir custar 4,5 milhões de euros, vai ser paga... pela empresa pública APL [Administração do Porto de Lisboa].
Como nota de rodapé, sublinhar que o que está a ser estudado (ver, por exemplo, as décimas Jornadas de Engenharia Costeira e Atlântica de Abril de 2022) é a «Ligação Eléctrica a Navios de Cruzeiro e de Mercadorias nos Portos». Mas o Governo fala sempre em «Onshore Power Supply (OPS)», algo que deve pensar, no seu provincianismo, ser seguramente muito mais moderno e avançado. Ou parecer.
A concessão por 75 anos
Recorda a «Estratégia» que o prazo máximo para as concessões portuárias foi ampliado para 75 anos, «em função do período de tempo necessário para amortização e remuneração, em normais condições de rendibilidade da exploração, do capital investido pelo concessionário». O argumento é descabelado: só no papel serão precisos 75 anos para recuperar seja que investimento for que realmente seja concretizado agora. Aliás, vários ciclos de investimento na modernização das infra-estruturas seriam sempre necessários num período tão longo. A única razão para concessionar a 75 anos é a de transferir propriedade pública para a posse de privados de forma encapotada. Os perigos para as próximas gerações são gigantescos.
Anúncios de milhões
O Governo anuncia que com esta estratégia prevê, até 2035, nas cargas portuárias movimentadas «atingir cerca de 125 milhões de toneladas (+50 % face a 2023), 6,5 milhões de TEU (+70 %) e 3 milhões de passageiros (+30 %)» com «quase 4 mil milhões de euros de investimento». Bem, a anterior Estratégia 2017-2026 era ainda mais atrevida: prometia um aumento do volume de cargas de 88% (mas estas reduziram no período) e prometia que o transporte de contentores aumentaria 200% (aumentou só 10%), tudo por 2,5 mil milhões de euros de investimento (que prometiam seria 83% privado, 11 % público nacional, 6 % europeu).
«O que nenhum deles explica é porque, estando os terminais de mercadorias concessionados a quatro empresas privadas (TSA, Sotagus, TMB e ETE) e uma em privatização (Silopor), estando o Terminal de Cruzeiros concessionado à privada Lisbon Cruise Terminal, estando a REN privatizada e a distribuição de electricidade privatizada (E-REDES), esta obra, que vai servir esses terminais, e se estima ir custar 4,5 milhões de euros, vai ser paga... pela empresa pública APL [Administração do Porto de Lisboa].»
Não se conhece qualquer balanço a quanto foi de facto o investimento concretizado, e muito menos de quanto foi de facto o real investimento privado, mas este foi residual. Nestes campanhas publicitárias, o detalhe com que se anunciam promessas (o actual governo fala de 75% do investimento privado) contrasta sempre com a falta de rigor ou ausência da prestação de contas. Já o anterior PETI previa crescimentos de 50% na carga portuária que tão pouco se concretizaram. A que se devem estes sistemáticas diferenças? A três questões:
– Todas as estimativas são exageradas (ou mesmo inventadas) para efeitos de propaganda. Tanto o volume de investimento público como, sobretudo, o volume de investimento privado, como os resultados que se esperam alcançar. A falta de seriedade é proporcional à impunidade com que a comunicação social trata estas questões;
– Muitos dos investimentos anunciados não se concretizam no prazo do plano, e transitam para o próximo plano, e aparecem virgens nas novas promessas, pela mesma falta de vigilância, memória e seriedade;
– A política que está a ser seguida é errada, e não produz os resultados que promete. É preciso romper com este caminho.
É pois nestas três vertentes que a política que tem vindo a ser executada deve ser criticada, sendo que ela é no essencial sempre a mesma política, assente na liberalização e privatização da nossa economia.
O anúncio e a aprovação destas estratégias representam, mais que uma estratégia, uma operação de propaganda. É assim que para cada um dos nove portos listados na estratégia já foi escrita para ser divulgada pela Lusa e publicada pela imprensa preguiçosa e subserviente uma notícia como esta «Governo prevê 931 milhões de euros para o Porto de Leixões com novo terminal no molhe norte». É uma notícia verdadeira (o Governo prevê) que cria uma impressão falsa (que algo remotamente parecido com o que é previsto está em execução ou vai acontecer).
Por exemplo, o maior investimento anunciado, o do Terminal Vasco da Gama, já vem sendo anunciado e reanunciado desde, pelo menos 2017. Nessa altura era um investimento privado de 642 milhões e a criação de 1350 postos de trabalho o que saía nos titulares da imprensa. Agora vão ser 701 milhões. Na realidade, e até hoje, zero.
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