|Maria Benário

Direitos para os Investigadores Científicos: quem vota a favor?

O discurso contra a precariedade nem sempre se traduz em acção parlamentar, como comprovam as votações do Livre ou PS relativamente à revogação do Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI).

Atualmente, 90% dos investigadores do Sistema Científico e Tecnológico Nacional são precários. Entre estes, há um grupo especialmente vulnerável: os bolseiros de investigação.

Qual é então a diferença dos bolseiros de investigação com os investigadores contratados? Os bolseiros de investigação recolhem dados e fazem experiências, como outros investigadores. Testam hipóteses, como os outros investigadores. Desenvolvem software, como outros investigadores. Publicam artigos, como outros investigadores. No fundo, tal como todos os outros investigadores, fazem ciência e produzem conhecimento no âmbito de projetos financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), por instituições de Ensino Superior ou por entidades não académicas — projectos que essas mesmas instituições consideraram relevantes para a comunidade, o país ou, nalguns casos, para empresas.

Se as funções são idênticas, onde está então a diferença? Apenas no vínculo laboral. Ao abrigo do estatuto do bolseiro, as instituições podem “contratar” investigadores sem lhes garantir os mais básicos direitos laborais como subsídio de desemprego, 13.º e 14.º mês, contribuições para a Segurança Social ou direitos de parentalidade.

Quem vota a favor? Quem se abstém? Quem vota contra?

No passado dia 11 de Março, o PCP propôs, mais uma vez, a revogação deste estatuto e a substituição de todas as bolsas por contratos de trabalho. Quem votou a favor? Apenas BE, PAN e o próprio PCP, deixando de fora os habituais partidos que mais têm promovido as políticas neoliberais e de precariedade laboral em vários setores, PSD-CDS, PS, IL, Chega mas também o partido “Livre”. Se a posição dos primeiros é expectável, a posição do Livre é relativamente surpreendente e evidencia uma certa contradição com o discurso promovido de «salários dignos e um forte combate à precariedade laboral», ou, como disse Francisco Paupério (sexto candidato do Livre nas listas de Lisboa) no debate sobre Ciência e Investigação promovido pela ABIC.

«O programa do Livre admite bolsas até dois anos: para contornar dificuldades administrativas. Trata-se, no entanto, de um argumento difícil de aceitar — não só por legitimar a precariedade como forma de resposta a entraves burocráticos, mas também por ignorar, ou tentar ocultar, o facto de que a atribuição de bolsas também exige a abertura de concursos públicos.»

«Os bolseiros são, na sua esmagadora maioria, investigadores altamente qualificados e que desempenham funções essenciais no desenvolvimento científico e tecnológico do país. (…) Sempre soubemos que fomos trabalhadores a tempo inteiro (...). Por isso, defendemos que os bolseiros devem ter acesso a contratos de trabalho com todos os direitos laborais (...), incluindo segurança social, proteção em caso de doença, parentalidade, centros de trabalho, acesso ao subsídio de desemprego…».

Confrontado com a contradição entre estas palavras e a abstenção do Livre na votação, Paupério justificou-se dizendo que há momentos de transição entre projectos em que contratar envolve muita burocracia e longos tempos de espera – e que, nesses casos, a bolsa serviria para «agilizar» o processo. É essa a razão pela qual o programa do Livre admite bolsas até dois anos: para contornar dificuldades administrativas (proposta 7 do ponto F, página 77). Trata-se, no entanto, de um argumento difícil de aceitar – não só por legitimar a precariedade como forma de resposta a entraves burocráticos, mas também por ignorar, ou tentar ocultar, o facto de que a atribuição de bolsas também exige a abertura de concursos públicos.

No debate do ano passado, Patrícia Gonçalves, a actual terceira candidata do Livre por Lisboa, afirmava: «Nós precisamos de bolsas para atribuir a estudantes de mestrado, a cientistas convidados em visita, etc., que são configurações que até são favoráveis às pessoas que delas usufruem».

Aqui, a lógica é outra. A ideia implícita é que, por estarem num ciclo de mestrado, esses investigadores são antes de mais "estudantes" – e que, por isso, uma bolsa (sem direitos laborais) seria um benefício. Uma posição que ignora o essencial: muitos destes estudantes realizam o mesmo tipo de trabalho científico que colegas com mais formação, e que estão contratados.

Não é preciso muita investigação para identificar uma visão que normaliza a precariedade

Se é verdade que existe uma diferença ao nível da autonomia entre investigadores com diferentes tipos de formação, nada justifica a diferença no tipo de vínculo laboral. Como se o facto de se estar numa fase anterior da formação justificasse a ausência de direitos, como se não fosse possível garantir a todos os investigadores condições dignas, com remunerações proporcionais ao seu nível de qualificação e experiência.

«Se partidos como o PS e o Livre querem ser coerentes com os valores que apregoam – justiça social, dignidade no trabalho, combate à precariedade – não podem continuar a legitimar este regime. A investigação científica não é um hobby, nem uma “etapa formativa” perpétua: é trabalho.»

Esta visão legitima que, numa mesma bancada do laboratório, uma investigadora tenha contrato, direitos e salário digno, e outra, ao seu lado, não tenha direito sequer à licença de maternidade. Legitima que se paguem bolsas abaixo do salário mínimo (como no caso das bolsas de iniciação científica), mesmo exigindo exclusividade. Isto é, exige-se entrega total ao trabalho, mas sem garantir sequer o rendimento mínimo que o próprio Estado definiu como aceitável.

O argumento de que as bolsas «facilitam» ignora anos de instabilidade, adiamento de vidas, emigração forçada, burnout e desvalorização crónica.

Ao hesitar em romper com este modelo, o Livre protege, na prática, uma lógica de austeridade disfarçada e de aproveitamento do trabalho qualificado sem garantias contratuais. Em vez de defender contratos justos e protegidos, perpetua a ideia de que os investigadores devem agradecer a oportunidade de trabalhar – mesmo sem direitos.

Se partidos como o PS e o Livre querem ser coerentes com os valores que apregoam – justiça social, dignidade no trabalho, combate à precariedade – não podem continuar a legitimar este regime. A investigação científica não é um hobby, nem uma “etapa formativa” perpétua: é trabalho.

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