A proposta, que não é nova, nem exclusiva da IL – nas eleições de 2019 já havia sido defendida também pelo CDS-PP, sendo igualmente uma das bandeiras do Chega –, é apresentada como uma espécie de solução milagrosa para os problemas do País, sustentada na peculiar ideia de colocar os de mais altos rendimentos a contribuir menos para as funções sociais do Estado, como o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a Escola Pública e a Segurança Social. Ou, nas palavras de Cotrim de Figueiredo, uma taxa única de IRS que «não penaliza o aumento de rendimento».
Embora o líder da IL argumente, tal como no debate com Rui Rio, esta segunda-feira, que a chamada flat tax é «mais justa» do que o sistema de IRS em vigor (que Cotrim Figueiredo diz ser «excessivamente complexo e progressivo»), a verdade é que acabar com a progressividade do imposto não só compromete a justiça social, já que quem menos ganha passaria a pagar mais, como ameaçaria a sustentabilidade das contas públicas.
Conforme consagrado na Constituição da República, o imposto sobre o rendimento pessoal (IRS) «visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar». Porém, na realidade ele é dual, já que, a par da aplicação da progressividade, há rendimentos, como por exemplo os de capitais (juros e dividendos), que, ou não são tributados, beneficiando de excepções e de práticas evasivas como os paraísos fiscais, ou são tributados através de uma taxa liberatória, actualmente de 28%, assim como os prediais, que a IL propõe descer para 15%.
Pese embora o INE conclua que no ano passado houve a maior «carga fiscal» de sempre no País, uma leitura mais atenta permite concluir que o esforço tributário continua a não ser igual para todos. A propósito dos números recentemente divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), que determinam que a «carga fiscal» representou 34,8% do Produto Interno Bruto (PIB), e que foi a maior de sempre, impõe-se uma análise mais detalhada. Desde logo porque o conceito «carga fiscal», para além de induzir uma evidente carga negativa, mistura receitas que têm proveniência e objectivos distintos: a receita fiscal – oriunda dos impostos que servem para o Estado cumprir as suas obrigações, e as contribuições sociais – descontos realizados sobre os salários, que visam garantir a protecção dos trabalhadores, seja na velhice, seja para fazer face a situações como a doença. Assim, e apesar de em termos globais a «carga fiscal» ter atingido os 70,4 mil milhões de euros, manteve-se significativamente inferior à média da União Europeia (UE). O que significa que estes valores arrecadados pelo Estado estão ainda aquém das necessidades que o País tem para fazer face ao desenvolvimento de políticas, nomeadamente de maior investimento nas funções sociais. Por outro lado, recorde-se que o PIB sofreu, em 2020, uma contracção histórica de 7,6%, depois do crescimento que vinha registando nos últimos anos. Na verdade, a receita arrecadada por via dos impostos e das contribuições socais foi mesmo inferior à de 2019. Assim se explica que, mesmo num ano de perda de rendimentos e aumento do desemprego, que levou a uma diminuição da receita, o peso da «carga fiscal» aumente também em face desta diminuição acentuada do PIB. Descartando as contribuições sociais, cuja evolução depende da criação do emprego e dos salários, ou seja, um aumento representa uma evolução positiva no mercado de trabalho, a questão principal a colocar é pois a de saber se, em termos tributários, é pedido o mesmo esforço a todos os contribuintes. O INE explica, em comunicado, que a receita com impostos directos diminuiu 3,7%, o que decorre da diminuição em 17,9% da receita do imposto sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC). Mas também do registo de um aumento de 3,1% da receita do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS). E é aqui que reside a pedra de toque desta questão, uma vez que continuam a ser sobretudo os trabalhadores e os reformados que vêem os seus rendimentos a serem chamados para estes resultados. E se se tiver em conta que, segundo o INE, estes números se justificam com «as medidas de protecção do emprego e das remunerações» no contexto pandémico, levanta-se a hipótese de, se estas medidas tivessem ido mais longe, estes números poderem ter reflexos disso. Veja-se que, também as contribuições sociais efectivas conseguiram manter uma variação positiva, de 1,2%, mesmo num ano de cortes nos rendimentos e de aumento do desemprego. Por outro lado, «os impostos indirectos, com um decréscimo de 9%, constituíram a componente que mais contribuiu para a redução da receita fiscal»: a receita com o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) diminuiu 10,6% e a receita com o imposto sobre produtos petrolíferos e energéticos recuou 9,4%, muito como resultado de quebras no consumo e da persistente fuga e evasão fiscal. O que os dados divulgados pelo INE traduzem é a manutenção da injustiça fiscal, resultante de um sistema que está montado para desonerar os rendimentos de capital, incidindo sobre os de quem trabalha e trabalhou, seja directamente por via do IRS, seja através dos impostos indirectos, pagos essencialmente pelos trabalhadores e que são «cegos» por tratarem de igual forma quem tem situações bem distintas. Em 2020, mesmo no contexto de uma crise associada à pandemia, não se procurou implementar uma política de maior justiça fiscal, nomeadamente pela taxação do capital e dos grandes grupos económicos e fortunas que mantiveram ou aumentaram os seus lucros. Nem tão pouco se avançou, conforme está plasmado no Programa do Governo PS, com o aumento dos escalões do IRS (que introduzem maior progressividade, pondo a pagar mais, quem mais tem) ou com o englobamento obrigatório de todos os rendimentos. O sistema fiscal português continua a permitir aos detentores de rendimentos de capital optar por pagar uma taxa fixa, já sem referir aos inúmeros mecanismos que possibilitam o não pagamento de quaisquer impostos sobre o capital. Assim, ao contrário de se darem passos para tornar a fiscalidade mais justa, acentuou-se no ano passado o seu carácter perverso, já que, apesar de ter caído a receita fiscal e a quase totalidade da receita dos impostos, a verdade é que a receita de IRS subiu 3,1% (isto é, mais 419 milhões de euros arrecadados). O que significa que o IRS correspondeu, no ano passado, a 69,7% da receita dos impostos directos e a 28,3% da receita fiscal total (que inclui quer os impostos directos, quer os indirectos). Só recuando a 2014 se encontra um peso do IRS nos impostos cobrados superior ao registado em 2020. A tradução destes números permite perceber que são os rendimentos dos trabalhadores, dos reformados e dos pensionistas que constituem o grosso da fonte das receitas do Estado, num País marcado pela elevada desigualdade na repartição da riqueza e do rendimento entre o trabalho e o capital, que o sistema fiscal não só não esbate, como acentua. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Nacional|
2020 foi mais um ano de injustiça fiscal
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A proposta dos liberais é passar de um sistema progressivo, onde quem mais ganha mais contribui para o financiamento das funções sociais do Estado, para a aplicação de uma taxa flat de 15%, «aplicada por igual a todos os rendimentos e para todos os contribuintes», admitindo transitoriamente um sistema de duas taxas: de 15% até 30 000 euros e de 28% no remanescente.
Na divulgação da medida, a IL apoia-se no argumento de que essa é a realidade noutros países, negligenciando as necessidades de intervenção do Estado, que se revelaram com toda a acutilância e premência no último ano, e que são garantidas pelas funções e apoios sociais do Estado português. Por outro lado, reduzir a contribuição destinada a financiar funções sociais do Estado tornaria mais fácil transferi-las para a alçada do sector privado.
Como demonstram os dados divulgados no passado mês de Dezembro pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2020, 18,4% das pessoas estavam em risco de pobreza. Mas, se analisada a taxa de risco de pobreza antes de qualquer prestação social, o número sobe para uns astronómicos 43,5%.
Acabar com a progressividade e introduzir uma taxa única, para além de penalizar os detentores de rendimentos mais baixos – não só pela aplicação directa da medida, mas também, e sobretudo, pelos bens e serviços que hoje são garantidos e que seriam hipotecados em virtude da diminuição de receita fiscal –, seria uma benesse e um acelerador das já elevadas desigualdades nosso país, tendo em conta ser uma medida desenhada para beneficiar os mais ricos à custa do desenvolvimento do País e da já ferida justiça social.
À luz das tabelas de retenção do IRS para 2022, uma pessoa com um salário de cinco mil euros e com dois filhos menores paga 1565 euros de IRS, mas com uma taxa de 15% passaria a pagar 750 euros. Mesmo considerando deduções previstas nalgumas propostas, a redução fiscal para os mais ricos é o objectivo que se pretende alcançar.
Por mais voltas que se dê, uma taxa única de IRS não só não altera nada da injusta arquitectura do sistema fiscal português – cuja receita provém de forma maioritária dos impostos indirectos, e a que resulta dos impostos directos tem como principal origem os rendimentos de quem trabalha e trabalhou –, como agrava as injustiças que o sistema fiscal deveria corrigir.
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