O capital, depois de se apropriar de um sector estratégico, esquece todas as belas promessas feitas antes de se apropriar dele e começa um processo de inversão do discurso e da prática para, basicamente, reduzir custos à conta do Estado (pagando menos impostos, transferindo responsabilidades sociais, reduzindo a regulação, reduzindo serviços nas zonas não solventes), e aumentar receitas (ao aumentar os preços dos serviços, desde logo, mas também ao captar todo o tipo de subsídios).
Neste processo, um bom CEO é capaz de estender a mão a pedir uns milhões e criar a ilusão que está a abrir a carteira dele para nos dar algo. Vamos ver dois exemplos recentes desta arte.
O CEO da Ericsson
Numa entrevista em Junho, apresentada como «O CEO da Ericsson apela a mais investimento no sector das telecomunicações, com o governo a entrar no jogo», Juan Olivera explica que os grandes problemas do sector são os seguintes: «Há o problema do custo do espectro» (ou seja, queremos deixar de pagar por explorar o espectro electromagnético que é domínio público), «há falta de potencial ambição em inovar» (ou seja, o capital privado não está com vontade de investir1) e «existe falta de apoio, por exemplo do governo em garantir que a tecnologia chega a todo o lado» (ou seja, passem para cá a massa).
Sobre as zonas brancas, aquelas onde as telecomunicações ainda não chegam, diz-nos que «É preciso encontrar-se um modelo regulatório que transforme a conectividade com apoio público ou não será feito». Isto é, num modelo não liberalizado as zonas de procura solvente permitem arrecadar as receitas para pagar os investimentos nas zonas não solventes, onde a procura não é suficiente para remunerar o investimento (perequação de custos), como faz hoje a CP, onde os lucros da CP Lisboa cobrem uma grande parte do prejuízo da CP Regional, ou como fazia a ANA pública que usou as receitas geradas no Aeroporto da Portela para financiar a modernização da rede aeroportuária nacional. No modelo liberalizado, os lucros das zonas solventes são amealhados pelos capitalistas, e as zonas não solventes vêem os serviços degradar-se até que o Estado faça, ou pague, o investimento.
Por outro lado, confirma algo que o PCP afirmou quando o processo dos leilões do 5G e a Lei das Comunicações Electrónicas foi aprovada na Assembleia da República. Diz o CEO que «A obrigação em Portugal é cumprida sem se implementar uma única estação nas zonas rurais porque é mais lucrativo fazê-lo no centro da cidade». Compare-se com o que o PCP então disse «Toda a lógica desta proposta de Lei das Comunicações Electrónicas está erguida sobre a axiomática neoliberal, promove a concorrência em vez da cooperação, desperdiça recurso e saberes, corrói a coesão social e territorial, cria oportunidades de negócio para meia dúzia deixando ao Estado os custos com a procura não solvente». Veja-se a coincidência. Só que a intervenção do PCP foi feita antes da Lei ser aprovada, como alerta para evitar criar a dependência, enquanto a intervenção do CEO é de quem já tem a faca e o queijo na mão, e está, da forma mais polida possível, a querer extorquir o povo português: querem telecomunicações no interior? Paguem!
Aliás, o CEO até defende «que toda a infraestrutura móvel seja considerada crítica», com o que se está de acordo, mas pensando, por um lado, que por isso ela não deve ser privatizada e, por outro, em extorquir mais uns apoios públicos para distribuir aos accionistas da Ericsson e depois poder receber o merecido prémio2.
Entretanto, com malabarismos destes, o capital consegue o espantoso feito de apresentar como boa uma tese que se resume a isto: o Estado deve fazer todo o investimento. No que é público através de PPP, garantindo o financiamento delas e, no que é privado, a fundo perdido para dinamizar a economia. Resumido, o Estado faz o investimento, os privados arrecadam os lucros.
O CEO dos CTT
Em Novembro, foi o CEO dos CTT quem nos comunicou (e haverá pessoa mais idónea para o fazer?) que o serviço postal universal «irá requerer contribuições do Orçamento do Estado» a partir de 2028, dado que não seria sustentável manter o actual modelo de «auto-financiamento» na futura concessão.
Entretanto, informa-nos que é preciso encontrar «novas formas de financiamento» do serviço postal universal no próximo contrato de concessão, que, claro, terão de vir do «Orçamento de Estado», e explica que «É nossa convicção forte, e uma certeza absoluta pessoal, que o actual modelo de financiamento do serviço postal universal não será viável depois de 2028, porque os volumes têm caído tanto que os preços se irão tornar desproporcionalmente elevados».
O «actual auto-financiamento» é uma forma muito simpática de dizer que é o povo, através do, cada vez mais, alto preço dos correios, que financia o serviço público, que é lucrativo. Não são os accionistas dos CTT, esses só se financiam com os CTT, quer através dos dividendos que cada ano recolhem, quer através dos empréstimos alavancados nas acções detidas pelos CTT.
Os CTT sempre deram lucro, continuam a dar lucro e o dito CEO prevê que a empresa continue a dar lucro. Mas quer aumentar esses lucros através da extorsão ao Estado. Como? os CTT foram sendo separados em vários blocos operacionais, pegando no património dos CTT e vendendo uma parte para distribuir aos accionistas e fazendo uma operação financeira com o restante. Aliás, hoje o Serviço Postal paga rendas do essencial dos equipamentos que antes da privatização eram seus, mas que foram transferidos para o Banco. Um conjunto de operações muito rentáveis do serviço postal como sejam os vales e a venda dos títulos do Tesouro, que separaram as contas do CTT Expresso, para onde canalizam as encomendas (cujo volume de vendas tem aumentado e muito). É tudo engenharia, e preparado para colocar o povo português perante a espada e a parede: ou pagam, ou largamos o serviço postal (afinal, neste modelo de loucos, para que tal aconteça basta os CTT não se apresentarem ao concurso de atribuição do serviço postal público e este acaba).
Mais uma vez, o truque é desviar a atenção da complementaridade das diferentes operações entre o serviço postal, a distribuição de encomendas e o banco CTT que usa a rede de estações, lojas e postos dos CTT. Se o negócio se reduz no serviço postal (pelo desenvolvimento tecnológico) ele cresce, pela mesma razão, no serviço de encomendas. E não se pense que o serviço postal desapareceu3 ou deixou de ter relevância económica e social, o serviço postal transportou em 2024 algo como 385 milhões de objectos, gerando uma receita de 470 milhões de euros.
O Estado tinha lucro com os CTT. Com a privatização, começou logo a pagar mais porque é o maior cliente dos CTT e, por isso, a maior vítima do brutal aumento de preços desde a privatização. E agora vai acabar, porque o Governo PSD/CDS vai implementar as «ordens» recebidas do CEO dos CTT, conforme as GOP 2026 («regulação eficaz para garantir o seu carácter público, universal e sustentável»), e pagar aos CTT para aumentar os seus lucros.
Concluindo:
É preciso descodificar esta linguagem elaborada com que rodeiam as suas operações de chantagem e saque dos recursos públicos, porque o país nada ganhou com a liberalização das telecomunicações.
Esta discussão importa, nomeadamente, porque é preciso ganhar consciência de que a liberalização e privatização dos sectores estratégicos tem que ser revertida, e deveriam servir de exemplo para travar as novas liberalizações e privatizações em curso.
- 1. Porque aposta na especulação, onde rende muito mais até as bolhas rebentarem...
- 2. E os lucros não são propriamente pequenos: 1,16 mil milhões de dólares no terceiro trimestre de 2025.
- 3. Sem deixar de lembrar que a brutal perda de qualidade do serviço desde a privatização explica uma parte da redução da procura.
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