Os protagonistas são os mesmos de sempre – o Estado a pagar, a União Europeia a mandar, os tribunais arbitrais a decidir, as grandes empresas a embolsar, os grandes escritórios de advogados a engordar. Vamos por partes.
A CSR é paga conjuntamente com os combustíveis e destina-se a financiar a manutenção da infra-estrutura rodoviária do País, sendo entregue à Infraestruturas de Portugal. Foi criada pela lei 55/2007, que determina que «A contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis».
Em Fevereiro de 2022, o Tribunal de Justiça da União Europeia deliberou que a CSR viola o «artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008», pois «não prossegue "motivos específicos", na acepção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afectadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários.»
Mas decide mais, decide que «o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indirecto contrário à Directiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.»
O que trocado por miúdos significa o seguinte: a CSR é ilegal, pois fazer a manutenção da infra-estrutura não é um motivo específico, e as gasolineiras que a pagaram, e depois a cobraram aos seus clientes, podem agora cobrar ao Estado esses valores e ganhar esse lucro. Reparem o conceito de justiça do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)! Devolver às petrolíferas o que os seus clientes pagaram ao Estado!!!
Com base nisto, o CAAD [Centro de Arbitragem Administrativa], ou seja, a justiça privada administrada através de um tribunal arbitral, já condenou o Estado português a pagar 4,8 milhões de euros à Vapo Atlantic (uma sociedade que tem como objecto social, entre outras actividades, a exploração de postos de abastecimento e comércio por grosso de produtos petrolíferos) pela CSR paga pelos seus clientes durante o ano de 2017.
«Mas decide mais, decide que "o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indirecto contrário à Directiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo".»
E, já este ano, condenou o Estado português a pagar à mesma empresa 5,5 milhões pelo ano de 2018. Entretanto, a ANTRAM, a patronal do transporte rodoviário de mercadorias, anunciou que prepara já um processo para reclamar a CSR paga nos últimos quatro anos pelos seus associados. É fácil esperar que outras patronais, bem como as grandes empresas, bem como o conjunto das petrolíferas (apesar de declarações em contrário de algumas), estarão a realizar os mesmos preparativos. E seguramente, inúmeros consumidores sentir-se-ão tentados a avançar com acções similares.
Para termos uma ideia da dimensão do processo, as receitas dos últimos quatro anos (únicas reclamáveis) são de 2,6 mil milhões de euros, e, em limite, o Estado poder-se-ia ver confrontado com pedidos de 5,2 mil milhões, pois a «Justiça» europeia atribui esse direito, quer a quem entregou a taxa ao Estado, quer a quem efectivamente pagou a taxa. E os tribunais correm o risco de se verem entupidos com milhões de processos de reclamação (dos pequenos, que os tribunais privados não aceitam pois não dão lucro). E os escritórios de advogados, incluindo todos os intervenientes nesta história, com milhões de novos potenciais clientes.
A dimensão do processo não será tão grande, desde logo porque a maioria dos consumidores individuais não terá meios de prova nem vontade para avançar para tribunal. Mas as empresas – vendedoras ou consumidoras – têm esses meios de prova e muitas avançarão.
Já só poderão reclamar das taxas pagas a partir de 2018, excepto as que tenham processos em tribunal já a decorrer. O que significa que a decisão do CAAD de obrigar o Estado a pagar 4,8 milhões à VAPO por uma CSR que esta recebeu dos seus clientes em 2017 não sofre perigo de contestação por parte destes e trata-se de dinheiro em caixa, de um verdadeiro assalto aos cofres do Estado. O que só vem relevar a imoralidade da decisão. E traz novamente à tona o velho problema dos tribunais arbitrais, e de como o Estado se submete a estes tribunais arbitrais, que produzem decisões invariavelmente contrárias ao interesse público. E muitas vezes, como é o caso, à própria lógica e bom-senso.
Aliás, é esse o sentido da pergunta dirigida pelo PCP ao Governo: porque continua o Governo a permitir que os processos da Autoridade Tributária de milhões de euros sejam decididos por tribunais arbitrais, pela justiça privada?
«O que significa que a decisão do CAAD de obrigar o Estado a pagar 4,8 milhões à VAPO por uma CSR que esta recebeu dos seus clientes em 2017 não sofre perigo de contestação por parte destes e trata-se de dinheiro em caixa, de um verdadeiro assalto aos cofres do Estado.»
A decisão do tribunal arbitral, de Janeiro deste ano, vem confirmar ser inconsequente a forma como o Governo tratou esta questão em Setembro, através da PPL 31/2022, que integrou a CSR no ISP, acabando com a ilegalidade formal apontada pelo TJUE, e fazendo uma interpretação vinculativa de efeitos retroactivos que, era evidente, seria igualmente objecto de contestação judicial, havendo já escritórios de advogados a defenderem a tese de que a proposta do Governo de alterar a lei e «clarificar» o conteúdo com carácter retroactivo é, isso sim, um reconhecimento do carácter ilegal da CSR.
Dirão alguns: mais um imbróglio! Mas não! O imbróglio não é este caso em concreto. É todo o cerco feito ao Estado por este conjunto de entidades, um cerco destinado a drenar os seus recursos para o bolso de privados, sejam os capitalistas ou os muito bem remunerados intervenientes no processo de saque.
Nem o País se deve ou pode submeter a uma «Justiça» supranacional, nem o Estado deve submeter-se a pseudo-tribunais privados, nem a intencional complexificação jurídica que cria a oportunidade de litigância pode prosseguir. É preciso parar o saque!
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