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2023 em revista

Por esta altura, todos os anos, as mais prestigiadas revistas do mundo  escolhem a sua figura do ano, que nunca somos nós. Por isso, regresso à elaboração de uma lista de acontecimentos que marcaram o ano deste protagonista coletivo que somos nós.

A secretária-geral da CGTP-IN, Isabel Camarinha, esteve presente na vigília dos trabalhadores dos bares dos comboios da CP (Apeadeiro 2020) em Santa Apolónia, reafirmando a solidariedade da central sindical com os 130 trabalhadores em luta. Lisboa, 7 de Março de 2023 
Trabalhadores dos bares dos comboios em luta Créditos / Sindicato de Hotelaria do Sul

Dezembro é o mês dos balanços e sumários. Da nossa vida pessoal às publicações nos media, da cultura à política, elaboramos, mais ou menos declaradamente, listas que classificam o melhor ou o pior do nosso ano. Centenas de influencers (e aspirantes) competem pelo fator surpresa das suas escolhas, nas redes sociais, e até o nosso colega do lado jura ter feito a melhor playlist no Spotify com os melhores discos do ano. Eu próprio fiz a minha, com a convicção de que será completamente diferente de todas as outras. Somos – todos nós, ao nosso jeito – a personagem principal de uma história que nos vamos contando e é nestes momentos que também ajudamos a traçar o cenário no qual queremos assumir o nosso protagonismo. Largo as listas dos discos, dos livros, dos espetáculos e das vaidades e concentro-me a olhar para o ano de uma perspetiva diferente daquela que habitualmente vejo refletida nos media.

Até ao fim deste mês, as mais prestigiadas revistas do mundo irão escolher a sua figura do ano e todos os anos, como já aqui havia escrito em 2021 (https://www.abrilabril.pt/trabalho/figura-do-ano), há uma coisa de que podemos ter a certeza: a figura do ano nunca somos nós. Por isso, regresso à elaboração de uma lista de acontecimentos que marcaram o ano deste protagonista coletivo que somos nós. Não há nela uma ordem ou grau de classificação.

● Imigrantes em Portugal

Nos últimos anos têm procurado melhores condições de vida e de trabalho em Portugal. Oriundos de diferentes geografias, são sobretudo os trabalhadores asiáticos e brasileiros que mais se fazem notar e que, por isso, são também o alvo mais fácil das mais abjetas manifestações de racismo e xenofobia.

«têm de se sujeitar às mais inaceitáveis dinâmicas de exploração, que têm no racismo o instrumento mais eficaz para a sua relativização. São, por isso, heróis do nosso tempo e protagonistas centrais da luta de classes por todo o mundo.»

Desde situações de escravatura explícita à banalização de comentários preconceituosos a si dirigidos pelo mais insuspeito do bom e moderado português, estes trabalhadores não só têm de enfrentar a saída das suas terras, como ainda têm de se sujeitar às mais inaceitáveis dinâmicas de exploração, que têm no racismo o instrumento mais eficaz para a sua relativização. São, por isso, heróis do nosso tempo e protagonistas centrais da luta de classes por todo o mundo.

● Trabalhadores da Global Media

Ao longo da última década, os trabalhadores do Diário de Notícias, do Jornal de Notícias, d’O Jogo e da TSF assistiram a despedimentos, a mudanças de proprietários, à venda dos edifícios históricos onde trabalhavam (e que faziam parte do património das cidades de Lisboa e do Porto). Em setembro, cansados da desvalorização salarial e já com dois meses de salários pagos fora do prazo habitual, os trabalhadores da TSF reuniram em plenário e votaram unanimemente por uma paralisação de 24 horas. Pela primeira vez em 35 anos, a TSF não teve emissão. Adivinhavam-se já outras mudanças e em outubro uma nova compra e venda das participações no grupo Grupo Global Media, que detém estes órgãos de comunicação social, voltou a trazer alterações na administração, num processo ao qual a transparência parece faltar e anuncia-se já um despedimento coletivo, ao qual os trabalhadores do JN reagiram com uma ação à porta do jornal. A luta destes trabalhadores não é apenas pelo seu posto de trabalho e pelos seus salários (o que seria, por si, mais do que legítimo), mas também pela liberdade no jornalismo – elemento central da nossa vida democrática, ameaçado pela obscuridade das negociatas.

● Trabalhadores das IPSS

Desempenham funções com caráter de serviço público. Cuidam dos nossos dentro de instituições que nasceram para dar resposta a necessidades para as quais os sucessivos governos parecem não querer encontrar soluções.

«A luta destes trabalhadores não é apenas pelo seu posto de trabalho e pelos seus salários (o que seria, por si, mais do que legítimo), mas também pela liberdade no jornalismo – elemento central da nossa vida democrática, ameaçado pela obscuridade das negociatas.»

Mal pagos, com horários por turnos que limitam a vida familiar, social e cultural, estes trabalhadores reivindicam mais salários e mais condições de instituições que muitas vezes são subfinanciadas. Num setor que se caracteriza pelo cuidado especial com a população que precisa destes serviços, a luta destes trabalhadores no último ano merece a nossa mais profunda solidariedade.

● Trabalhadores da Administração Pública

Algo de muito errado devem ter feito os trabalhadores da Administração Pública para serem o alvo preferencial do desprezo dos sucessivos governos. Cortes nos salários, fim das carreiras profissionais, congelamento da progressão na carreira, sistema de avaliação limitado por quotas, intransigência na aplicação de um suplemento de risco – são muitas as reivindicações destes trabalhadores que os governos têm tentado ignorar ou anular, recorrendo a métodos de chantagem e ameaça subtis. Mas os trabalhadores da Administração Pública não se têm deixado intimidar e, por causa da persistência da sua luta, conseguiram que, após o orçamento do ano passado, o Governo tivesse de avançar com um aumento salarial acima do previsto. Ainda que muito abaixo do valor da inflação, acabando por ser quase insignificante, tudo isso resultou das ações de luta – greves e manifestações –, que condicionaram as opções do governo do PS.

● Trabalhadores do setor alimentar

Apesar da extensão dos cabos das televisões e jornais não chegar à porta das empresas onde decorreram ao longo do ano centenas de ações de luta, com trabalhadores organizados nos seus sindicatos, a verdade é que essas ações existiram e muitas delas com conquistas dos trabalhadores. No setor alimentar, muitas vezes em ações inéditas, foram muitos os trabalhadores que, face ao brutal aumento do custo de vida e à estagnação dos salários, se reuniram à porta das empresas em protestos que paralisaram a sua atividade operacional. Da corajosa luta das trabalhadoras da Dan Cake, passando pelos trabalhadores da Nobre, da Izidoro ou da Matutano, foram muitas as ações que desencadearam um inevitável recuo na intransigência das empresas ou que as condicionaram contra a sua vontade. Já no final de novembro, ficámos a saber (https://www.abrilabril.pt/trabalho/trabalhadores-venceram-matutano-condenada-por-impor-horario-de-laboracao-continua) que a Matutano foi condenada por impor horário de laboração contínua. A vitória destes trabalhadores é um exemplo de como a luta é sempre o caminho.

● Trabalhadores do Auchan da Amadora

Não há fórum, cerimónia ou jantar de amigos onde não repitam a lenga-lenga da responsabilidade social das empresas. A empresa moderna, hoje, não tem nada que ver com os industriais exploradores barrigudos das caricaturas do séc. XIX, garantem-nos nos seus sorrisos elegantes, temperados e moderados.

«Falam-nos dos colaboradores porque «trabalhador» é um conceito anacrónico e fazemos todos de conta que a luta de classes acabou, que somos todos parte de uma grande família – a equipa!»

Falam-nos dos colaboradores porque «trabalhador» é um conceito anacrónico e fazemos todos de conta que a luta de classes acabou, que somos todos parte de uma grande família – a equipa! Mas é na realidade concreta, longe do olhar alienado, que a verdadeira essência do capitalismo vem à tona. Em 2023, na sua loja da Amadora, a multinacional francesa Auchan decidiu castigar os trabalhadores que iniciaram uma grande ação de luta, na defesa dos seus direitos. Como se lia no AbrilAbril em julho deste ano, da intenção de transferir oito trabalhadores grevistas, na Auchan da Amadora, passou-se à suspensão com vista ao despedimento (https://www.abrilabril.pt/trabalho/auchan-da-amadora-empresa-ameaca-despedir-todos-os-trabalhadores-grevistas). Com muita determinação e coragem, estes trabalhadores têm enfrentado um gigante, certos da justeza da sua luta.

● Professores

A paixão pela educação nem sempre é compatível com o respeito pelo setor profissional que a materializa. A imagem de um professor austero, que condiciona a nossa liberdade, como na canção dos Pink Floyd, deve ter traumatizado muita gente que, chegando ao poder, decide castigar os professores, rejeitando acolher as suas reivindicações. Em 2023, as organizações sindicais dos professores foram denunciando a postura despótica do governo do PS e realizaram dezenas de ações de luta pela recuperação do tempo de serviço, pelas vagas e quotas de avaliação, pela mobilidade por doença, a aposentação, e pelos os horários de trabalho. Em vez de acolher democraticamente o direito à greve e avançar para negociações sérias, o Ministério da Educação decidiu aplicar serviços mínimos nas greves de junho. Em outubro, depois da ação interposta pelas organizações sindicais, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou ilegais os serviços mínimos decretados pelo governo do PS. Em setembro, com o início do ano letivo, outra realidade bateu à porta.

«Em 2023, muitos professores, independentemente da idade, continuaram a ser colocados a centenas de quilómetros das suas casas»

Em 2023, muitos professores, independentemente da idade, continuaram a ser colocados a centenas de quilómetros das suas casas, com prejuízo sério na sua vida familiar e na sua realidade financeira, num momento em que a crise da habitação não é apenas um problema da capital do País. Apesar das tentativas de descredibilização das suas organizações sindicais históricas e apesar do divisionismo provocado por aventureirismos, os professores não se deixaram rebaixar e mantêm-se firmes na defesa dos seus direitos e da escola pública.

● Trabalhadores dos bares da CP

Em janeiro de 2023 conhecemos um dos casos mais graves de desrespeito e violação dos direitos dos trabalhadores em empresas portuguesas. A empresa Apeadeiro 2020, concessionária do serviço de Bar e Restauração nas viagens de longo curso da CP, deixou de pagar os salários aos trabalhadores. Dois meses depois, os trabalhadores iniciaram uma vigília à porta da estação de Santa Apolónia e da estação de Campanhã, numa luta que duraria até junho, quando uma nova empresa assumiu a concessão. Em setembro, através do AbrilAbril, soubemos que os problemas não haviam terminado (https://www.abrilabril.pt/trabalho/newrail-nova-concessao-novas-lutas-nos-bares-dos-comboios-da-cp). Apesar de a nova concessionária ter pagado os salários em falta, recusou-se a fazer os pagamentos para a Segurança Social. Entre outras reivindicações pela garantia dos seus direitos, continua a exigir-se que a CP integre os trabalhadores nos seus quadros e que acabe com a concessão de um serviço necessário e permanente nos comboios. Com uma grande coragem, resistência e com um sacrifício inimaginável, estes trabalhadores são um exemplo de unidade na luta pelo seu salário.

● Luta em defesa do SNS

Ao longo dos anos, o subfinanciamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem-se mostrado como um dos mais graves problemas da nossa democracia. Apesar dos vários alertas para o estado em que se encontrava o SNS, o governo não só não quis resolver, como ainda inventou soluções de remendo que continuam sem dar resposta à necessidade das populações no acesso aos cuidados de saúde.

«Apesar dos vários alertas para o estado em que se encontrava o SNS, o governo não só não quis resolver, como ainda inventou soluções de remendo que continuam sem dar resposta à necessidade das populações no acesso aos cuidados de saúde.»

Foram muitas as comissões de utentes criadas nos últimos dois anos, num sinal de que a situação é de enorme gravidade. Acresce, ainda, a desvalorização dos profissionais de saúde que este ano, para além da luta de médicos e enfermeiros do SNS, contou com uma importante greve dos enfermeiros do setor privado e a sempre persistente e corajosa luta de assistentes técnicos e operacionais, com os seus salários indignos e horários desregulados, numa profissão não apenas de grande responsabilidade, mas sobretudo de grande dureza, do ponto de vista humano.

● Luta pelo direito à habitação e por uma vida justa

Foram das maiores manifestações do ano, tendo sido realizadas dezenas de iniciativas por todo o território nacional. O aumento violento do custo de vida e a habitação foram, em 2023, o mais complexo e dramático problema, com impactos incalculáveis na vida de todos nós. Mas as populações que mais sofrem com o aumento descontrolado das rendas e das taxas de juro não se calaram e saíram à rua exigindo casas para viver, pelo direito à cidade e por uma vida justa. Foram centenas de milhares de pessoas que desfilaram pelas ruas das principais cidades do País, com um destaque especial para os habitantes dos bairros periféricos que há muito sentem esta violência sobre o direito à habitação e que cada vez mais vão sendo despojados dos mais elementares direitos.

● Palestina

Uma criança a cada dez minutos. É esta a estatística que parece ainda não ser suficiente para classificar o que se passa na Faixa de Gaza de genocídio. Apesar do cinismo e da desumanização, apesar da relativização e da indecência, na procura pela liberdade e pela paz, Palestina vencerá.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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