|Venezuela

A Venezuela que eu vi (II)

Jornais, rádios e televisões repetem até à exaustão que há uma ditadura e uma crise humanitária na Venezuela. E eu flutuo numa realidade paralela. Parto à procura dessa crise humanitária de que todos falam.

Há uma realidade martelada que embriaga e dá ressaca. Como cantou Victor Jara, «é difícil encontrar claridade na sombra quando o sol que nos ilumina descolora a verdade». Jornais, rádios e televisões repetem até à exaustão que há uma ditadura e uma crise humanitária na Venezuela. E eu flutuo numa realidade paralela. Parece que aterrei no país errado. Apesar do bloqueio económico à pátria de Bolívar e Chávez, não vejo a pobreza que já vi noutros países para onde jorram linhas de crédito. A Argentina que assinou, no ano passado, com o FMI o maior empréstimo de que há memória afunda-se num lodo de pobreza e miséria de que ninguém escreve. A Colômbia, por sua vez, fechou o ano com 252 opositores assassinados, entre líderes de movimentos sociais e activistas de direitos humanos.

Banho de chavismo em La Victoria

Então, deixo Caracas para trás e parto à procura dessa crise humanitária de que todos falam. A uma hora da capital, antes de chegarmos a Maracay, paramos em La Victoria, pequena cidade de 200 mil habitantes que deve o nome a uma importante batalha liderada pelo independentista José Félix Ribas contras as tropas de José Tomás Boves. Sem nada combinado, decidimos visitar um dos muitos ginásios verticais espalhados pelo país. Aquilo que era para ser uma pequena paragem acabou por ser uma manifestação espontânea da força do chavismo. Ao descobrirem que havia jornalistas estrangeiros que queriam conhecer aquele projecto desportivo e cultural, desceram utentes, funcionários, dirigentes, militares, entre mulheres, homens e crianças. Atropelavam-se para explicar o que significava o ginásio vertical e pediam-nos que mostrássemos a verdade ao mundo. Admito que foi difícil conter a emoção. Longe dos anos da revolução de Abril que não pude viver, via naquelas mulheres e homens os rostos dos que em 1974 fizeram de Portugal um mar de esperança. Do nada, desataram a cantar abraçados o Zeca Afonso venezuelano, Ali Primera. Levantavam os punhos e davam vivas a Hugo Chávez e a Nicolás Maduro. Entusiasmados, conduziram-nos pelos diferentes andares do edifício.

Num dos pisos, dezenas de modernas máquinas de musculação e ginástica ocupavam sala ampla semelhante a qualquer ginásio europeu, com a diferença que aqui não se paga. Três jovens de toalha ao ombro surpreendidos pela visita riem-se com a pergunta sobre a fome na Venezuela. Um deles, levanta a t-shirt e mostra a barriga. Falam da importância do desporto como ferramenta de inclusão, sobretudo para a juventude. Subimos mais um andar e descobrimos um espaço para a dança e o teatro. Foi-se juntando mais gente e chegámos ao último piso onde se havia um campo de futsal com uma vista incrível sobre as montanhas ao redor. Este ginásio vertical construído pelo governo e gerido pelo conselho comunal é um pólo de participação democrática e de dinamização cultural.

De regresso ao primeiro piso, onde se situa o restaurante e um espaço amplo para espectáculos, exposições e debates, as cozinheiras trouxeram-nos doces tradicionais venezuelanos, vários músicos foram buscar uma harpa, um quatro, guitarra de quatro cordas, e de repente estava montada uma festa. O responsável local do Partido Comunista da Venezuela chegou com mais gente e acabámos por só conseguir abandonar o ginásio vertical várias horas e muitas conversas depois. Um dos jovens puxou-me à parte e levou-me a uma sala escondida com vários aparelhos preparados para servir de rádio local. Orgulhoso, explicou-me que dali se ia poder ouvir a revolução em todas as partes. Era já noite quando o nosso carro iraniano se fez à estrada depois de a população e os militares terem insistido que voltássemos no dia seguinte. Mas era impossível. Andava em busca de uma crise humanitária e de uma ditadura que todavia não tinha encontrado.

Em Choroní

Decidimos procurar nas praias. Fomos para Choroní e tivemos de atravessar as montanhas onde durante décadas se esconderam guerrilheiros das Forças Armadas de Libertação Nacional. Mas não havia qualquer sinal de desastre. A praia estava cheia de banhistas e de vendedores de cerveja, peixe e marisco. Não havia bolas de Berlim mas havia cocos apanhados no momento e bolos com cobertura de chocolate. Numa das mais bonitas praias da Venezuela, mulheres e homens tiravam selfies, crianças faziam buracos na areia, surfistas desafiavam ondas, algum mergulhador fazia pesca submarina. O mesmo que poderíamos ver em qualquer praia portuguesa mas com água a temperaturas bem mais agradáveis. Então, ouvimos dizer que havia uma assembleia de pescadores.

Sentados em cadeiras, no chão, na amurada, de pé, um terraço cheio de pescadores gritava e gesticulava. Todos se interrompiam, de forma absolutamente desordenada, e só se calavam quando o responsável eleito por eles pedia silêncio. De alguma forma que não consegui escrutinar, acabavam por se entender e tomavam decisões importantes. Era importante que os barcos que não fossem pescar não estivessem na boca do rio, e assim foi decidido. Era importante que todos dessem uma quota do pescado para que as crianças nas escolas pudessem comer peixe, e assim foi decidido. Era importante acabar com os especuladores e intermediários que faziam negócios à custa de quem trabalha, e assim foi decidido. Parecia uma democracia caótica mas mais democrática do que qualquer um dos nossos regimes ordenados. Cá fora, o porta-voz, acompanhado de dezenas de pescadores curiosos, explicou-me que havia de facto uma guerra económica e que só a organização popular é que podia contornar as consequências do bloqueio. E deixou claro o que faria se houvesse uma invasão. Trocaria as redes de pesca por uma arma para defender a sua pátria.

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