O Programa Alimentar Mundial estima que os efeitos da guerra e sanções empurrarão 47 milhões de pessoas para uma situação de insegurança alimentar em 2022. A grande maiora destas pessoas vive no continente africano, dependente dos cereais importados da Rússia e da Ucrânia (juntos, representam quase um 1/3 deste mercado).
Se a Ucrânia se vê impossibilitada de exportar os seus cereais – em consequência da situação de guerra em que se encontra actualmente –, os cereais russos, indispensáveis para milhões de pessoas (Ruanda, Tanzânia, Senegal, Egipto, Benim e Somália são, em diferentes graus, dependentes deste mercado), não chegam a quem deles necessita por causa das sanções aplicadas pela União Europeia (UE) e EUA.
Um relatório da Global Crisis Response Group, divulgado ao fim de três meses de guerra, alerta para os impactos «sistémicos, severos e acelerados» da guerra na segurança alimentar, na energia e nas finanças do mundo, ressalvou António Guterres, secretário-geral do ONU. Ao «derramamento de sangue e sofrimento» das populações civis, acresce «uma onda sem precedentes de fome e destituição», afectando, sobretudo, as populações em situação de maior fragilidade, económica e social.
Guterres anunciou, na sessão de apresentação do relatório, a criação de duas task forces coordenadas por Rebeca Grynspan, responsável da ONU para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), e Martin Griffiths, responsável pela ajuda humanitária. Estes grupos já estão no terreno, a trabalhar com as partes envolvidas, para garantir o acesso de alimentos e fertilizantes russos e ucranianos aos mercados globais.
As partes envolvidas na limitação do acesso aos cereais foram, de resto, identificadas nessa mesma conferência: Moscovo e Kiev, em guerra; Ancara, que se tem estabelecido como mediadora na relação entre os dois estados e, claro está, os proponentes das políticas sancionatórias, Bruxelas e Washington.
União Africana à procura de «tréguas» na Rússia
Macky Sall, presidente do Senegal e da União Africana, visitou a Rússia no início do mês de Junho, procurando «contribuir para uma trégua do conflito na Ucrânia e para a libertação das reservas de cereais e fertilizantes, cujo bloqueio afecta especialmente os países africanos».
Em declarações proferidas no encontro, Sall denunciou a forma como as «sanções contra a Rússia agravaram a situação do abastecimento de cereais e fertilizantes aos países africanos. (…) provocando consequências em termos da segurança alimentar no continente».
A posição assumida pela União Africana expõe toda uma outra perspectiva, frequentemente ignorada pelos meios de comunicação ocidental e os responsáveis políticos da «comunidade internacional»: os UE e os EUA não podem continuar a jogar com a vida de milhões de pessoas para afectar economicamente o seu inimigo, a Rússia.
A dissonância entre os príncipios da UE e EUA e as vidas de centenas de milhões de pessoas no países em desenvolvimento ficou clara na votação que responsabilizava Moscovo pela crise humanitária: Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, da CPLP, por exemplo, optaram pela abstenção.