|Jorge C.

Sebastião Salgado e o mundo que habitamos

Dissociar Sebastião Salgado da sua intencionalidade política representa bem o movimento de despolitização que o capitalismo tem tentado agravar nas últimas décadas. 

Sebastião Salgado
Créditos / lounge.obviousmag.org

Desde a primeira imagem gravada numa folha de papel, nas primeiras décadas do séc. XIX, a fotografia desempenhou um papel de registo histórico que estava, até então, dependente da capacidade de reprodução a posteriori da pintura. O realismo da fotografia foi a característica inquestionável que a aproximou mais da reportagem e do arquivo documental do que da arte. Décadas mais tarde, a fotografia seria relegada para um segundo plano, com o advento da imagem em movimento e das possibilidades abertas pelo cinema. 

À convenção sobre as formas de expressão artística – Arquitetura, Escultura, Pintura, Música, Literatura e Dança – acrescentou-se, então, uma sétima arte: o Cinema. A fotografia ficava, assim, fora da órbita da constelação da arte, significando apenas uma ferramenta de reportagem, documental, de fixação exata de um momento exato. A subalternização do fotógrafo levou a que esta fosse uma profissão sem ambição artística, mas com uma afirmação profissional significativa, com um contributo inestimável para o jornalismo e para a produção de cinema.

A admissão da fotografia no universo da arte, das suas academias, elites e críticos, é um fenómeno contemporâneo, da transição de século. Com alguma audácia ou irreverência curatorial nas maiores galerias do mundo, a fotografia começa lentamente a ser acomodada no catálogo das artes, mas nunca sem desconfiança. Para tal, foi essencial a projeção mediática e a consagração de trabalhos que transbordavam as fronteiras entre a arte e o fotojornalismo e projetavam o movimento criativo do fotógrafo, as suas sensibilidades e opções – éticas e estéticas. 

É nesta fronteira diluída que vamos encontrar Sebastião Salgado, o fotógrafo brasileiro da humanidade, que na década de 1970 se afasta do fotojornalismo convencional e encontra nos explorados do mundo o objeto de interesse para um trabalho que extravasava a reportagem e entrava nos territórios da arte de intervenção. Escolhas inequívocas, partindo da relação dos homens com a natureza e da sua relação entre si, marcada nos rostos e nos corpos. 

Na fotografia de Sebastião Salgado há uma denúncia mobilizadora, que opera em nós como um repto: é esta a humanidade com a qual sonhámos? Ao mesmo tempo, no violento contraste entre o poder deslumbrante da floresta e o poder repressivo dos homens sobre os seus semelhantes, encontramos no seu trabalho uma linha de coesão que nos é dada pela opção do preto-e-branco. A paisagem humana e a paisagem natural confundem-se, diluem-se, para nos dizer que este é o lugar que habitamos juntos. É esta opção que nos revela, também, o caráter político de Sebastião Salgado e o seu papel transformador. 

«É nesta fronteira diluída que vamos encontrar Sebastião Salgado, o fotógrafo brasileiro da humanidade, que na década de 1970 se afasta do fotojornalismo convencional e encontra nos explorados do mundo o objeto de interesse para um trabalho que extravasava a reportagem e entrava nos territórios da arte de intervenção.»

O posicionamento político de Sebastião Salgado está inequivocamente no anti-imperialismo e no anticapitalismo. Ele escolhe evidenciar a dimensão dialética da humanidade, a relação do homem com o homem, do homem com a natureza, do homem com o trabalho. As suas escolhas revelam, também, uma grande coragem. Sem amarras, com uma grande independência, Salgado rasga os convénios mediáticos das elites e entra pela porta da frente das grandes exposições e galerias do mundo, ofuscadas pela sua consagração entre as massas populares – o velho dilema das instituições mercadorizadas. 

Mas, Salgado não se deixa perder ou deslumbrar, nem pela consagração, nem pelo fétiche de fotografar a tragédia. Exemplo disso é a sua passagem por Portugal e a atenção que dedicou à Revolução nascida com o 25 de Abril, ao processo de construção de um país democrático e popular, no meio dos dilemas e contradições próprias desse mesmo processo revolucionário. Aqui irá encontrar, também, um movimento com o qual se identificava.

É precisamente por inspiração da teoria marxista que irá desenvolver um projeto sobre a relação dos homens com o trabalho produtivo, relatado numa peça divulgada aqui, no AbrilAbril. Esse projeto, que o levou a outras geografias, chegará a Portugal na Festa do Avante!, um lugar ideal para a apresentação de um longo e profundo trabalho que se ocupa das relações de poder e da luta de classes. 

É, por isso, impossível dissociar Sebastião Salgado da dimensão política da sua obra. Dissociar Sebastião Salgado da sua intencionalidade política representa bem o movimento de despolitização que o capitalismo tem tentado agravar nas últimas décadas. Esse ataque às palavras, às imagens e aos sons não é apenas um ataque aos artistas, é sobretudo um ataque aos explorados, à classe trabalhadora e também à imposição dos interesses económicos sobre a natureza, na sua exploração selvagem dos recursos naturais e com efeitos devastadores para o nosso futuro. 

Para homenagear Sebastião Salgado, agora que nos deixou, é preciso insistir nessa sua dimensão, mostrando a integralidade da sua obra e combatendo a sua mutilação; é preciso rejeitar a sua apropriação pelas narrativas neocolonialistas e neoliberais que nos pretendem distrair da realidade material e do processo histórico que está cravado naquelas imagens. São imagens que nos devolvem a urgência de transformar o mundo, de lutar por esse mundo sem exploradores e sem explorados, onde juntos habitamos a casa comum.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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