|Jorge C.

O medo de Carlos Verona

A história do desporto é, também, a história da luta de classes. As competições desportivas de massas foram sempre um território de conflitos sociais e, por isso mesmo, um palco inevitável para a afirmação inequívoca das comunidades.

Créditos / El Periodico

No distante agosto de 1936, 19 anos antes de Rosa Parks ter recusado ceder o seu lugar a um homem branco num autocarro, o atleta Jesse Owens entrou na história por ganhar quatro medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Berlim, diante de Adolf Hitler, em pleno nazismo. No regresso aos Estados Unidos da América (EUA), a receção ficou bem longe do expectável, para um feito de tais dimensões. Mas, nos EUA, a segregação racial e o racismo eram estimulados política e legalmente e Owens sofreu na pele a afronta de triunfar nas Olimpíadas, quando nem o democrata Franklin Roosevelt o acolheu na Casa Branca – nem uma cartinha de felicitações. Trinta anos mais tarde, confrontado com o Projeto Olímpico para os Direitos Humanos – um movimento de atletas solidários na luta antirracista, liderado por Harry Edwards – Owens, para espanto dos seus pares, afirmava que «não há lugar para a política no mundo dos atletas». 

Numa das etapas da Vuelta de 2025, que decorria no País Basco, mais de meio século depois destes acontecimentos, Carlos Verona, ciclista da Lidl-Trek, manifestou o seu desagrado por, ao longo de todo o percurso, a população que assistia à prova ter erguido e agitado bandeiras da Palestina. Aos microfones de vários órgãos de comunicação social, o atleta insurgia-se porque a política não deveria ter lugar no desporto, lembrando, assim, a histórica demarcação de Owens. 

Nas últimas décadas tem havido um esforço institucional acrescido para proibir qualquer manifestação política nas competições desportivas, tanto pelo lado dos atletas, como pelo lado do público. De forma mais ou menos explícita, as organizações nacionais e internacionais que tutelam as diferentes modalidades, onde se destacam o Comité Olímpico e a UEFA, têm usado todos os meios à sua disposição para impor o apagamento de mensagens políticas. Mas esse esforço não é uma novidade.

A história do desporto é, também, a história da luta de classes. As competições desportivas de massas foram sempre um território de conflitos sociais e, por isso mesmo, um palco inevitável para a afirmação inequívoca das comunidades, fosse através do público, fosse através dos atletas. Da luta pela autodeterminação dos povos, passando pela luta antifascista e antirracista, até à defesa do desporto como fenómeno popular e ao anticapitalismo, as competições de massas têm sido objeto de intervenção política e um campo de confrontação de classes inescapável. O poder temeu sempre o espaço que era dado aos que o desafiavam e nem em momentos de maior autoritarismo e repressão conseguiu silenciá-los. 

A Vuelta foi, aliás, palco de conflitos com repercussões no próprio itinerário da prova. Como nos relata Ramon Usall, em Un siglo cuesta arriba – Historia popular y politica del ciclismo (Altamarea, 2024), em 1978, a maior prova de ciclismo de Espanha foi marcada por um ambiente político hostil no País Basco e por um boicote à prova, num dos momentos mais críticos da sua luta independentista.  

«Da luta pela autodeterminação dos povos, passando pela luta antifascista e antirracista, até à defesa do desporto como fenómeno popular e ao anticapitalismo, as competições de massas têm sido objeto de intervenção política e um campo de confrontação de classes inescapável.»

As etapas que habitualmente decorriam em Euskadi acabariam por ser eliminadas da Vuelta do ano seguinte, tendo passado 33 anos sem lá regressar. Para os independentistas bascos, a decisão serviu de argumento para validar a ideia de que Euskadi não é Espanha. De resto, o livro de Usall mostra bem como o ciclismo foi sempre um espaço de intervenção política e território de expressão popular. 

Não por acaso, no momento em que escrevo estas linhas, a última etapa da Vuelta deste ano, em Madrid, volta a ser alvo de boicote por manifestantes contra o fim do genocídio em Gaza e é interrompida e cancelada.

Há, também, exemplos de grande coragem noutras modalidades, em tempos de repressão. Ficaram famosos os três jogadores do Clube de Futebol «Os Belenenses» – Artur Quaresma, Mariano Amaro e José Simões – que, em 1938, se recusaram a fazer uma saudação fascista diante de Salazar, num jogo da seleção nacional de futebol contra a seleção espanhola, nas Salésias. Mariano Amaro, capitão de equipa, e Quaresma, para além da recusa, ergueram um punho cerrado, sendo posteriormente detidos pela PVDE e expulsos da seleção. Também Tommie Smith, John Carlos (EUA) e Peter Norman (Austrália), num pódio dos Jogos Olímpicos, em 1968, no México, ergueram os punhos em protesto contra o racismo e a segregação nos EUA, tendo sido expulsos da competição e sofrido consequências dramáticas nas suas vidas pessoais, numa história cujos contornos só hoje conhecemos. Muitos foram os atletas que nunca deixaram de denunciar os abusos de poder, a violência, a repressão e as desigualdades sociais, ao longo da história, demonstrando a evidência de uma luta de classes dentro do desporto. 

«Há, também, exemplos de grande coragem noutras modalidades, em tempos de repressão. Ficaram famosos os três jogadores do Clube de Futebol "Os Belenenses" – Artur Quaresma, Mariano Amaro e José Simões – que, em 1938, se recusaram a fazer uma saudação fascista diante de Salazar, num jogo da seleção nacional de futebol contra a seleção espanhola, nas Salésias.»

Num outro ângulo, temos o movimento associativo popular – um lugar de afirmação da luta pela justiça social, pela liberdade e pela igualdade. Foi nas suas fileiras que muito se resistiu ao fascismo, em Portugal, e foi essa a casa de muitos movimentos da juventude para a criação e produção de uma cultura progressista e democrática.

Indissociável da realidade político-económica e social das comunidades, o associativismo resiste, hoje, a uma ofensiva dissimuladamente voraz do capitalismo, desde a falta de apoios públicos para dar resposta ao preço das rendas e despesas correntes, às próprias condições de vida dos seus associados, cujas dificuldades para dedicar tempo às coletividades são um sintoma das suas próprias condições de vida. 

Para além do movimento associativo, foi no movimento Ultra internacional que mais se destacou (e destaca) a resistência ao poder e a intervenção política popular. Numa disputa de território com a extrema-direita, financiada com o propósito de dividir e descredibilizar os movimentos progressistas organizados em claques, os Ultras foram e são, muitas vezes, os blocos de resistência à imposição do capitalismo sobre o desporto. Podemos e devemos reforçar, aqui, a evocação de «Os Belenenses», dos seus sócios e da sua claque Ultra – a Fúria Azul – na luta contra o modelo do futebol-negócio, que atirou o clube para um caminho de pedras, mas que não o vergou. Essa resistência não acontece, porém, sem um modo de manifestação e intervenção que é visto como marginal ou criminoso pelas instituições desportivas: «coreografias», cânticos e pirotecnia. Poderíamos, até, chamar-lhes, hoje, os «bandidos sociais» do século XXI, na esteira de Eric Hobsbawm.

O desagrado de Carlos Verona colide, portanto, com a história do desporto popular e da sua resistência ao poder hegemónico e colide, também, com o exercício da liberdade de intervir politicamente. A sua posição sobre a política no desporto não só é uma afronta à história do desporto, como é uma afronta ao princípio da solidariedade entre os povos e, em particular, à urgência de dar voz ao protesto contra um genocídio em curso. Talvez Carlos Verona não tenha reparado que, nas últimas oito décadas, há um povo que tem sido violentamente reprimido, vendo a sua pátria ocupada e colonizada e que, hoje, é alvo de um genocídio pelo Estado sionista de Israel. Poderíamos dizer que se trata de simples alienação, mas os esforços institucionais para silenciar este tipo de manifestações em contexto desportivo dizem-nos outra coisa: o que aqui temos é a imposição do medo. 

Instigado pelos organismos do poder que, ao longo dos anos, recorrendo a um discurso dissuasor, a sanções e a represálias, promoveram uma repulsa por manifestações políticas explícitas, o medo é a ferramenta de controlo disponível pelo neoliberalismo para esmagar os seus inimigos. Através dos seus próprios instrumentos ideológicos, as instituições coniventes e cúmplices com o modelo capitalista do desporto limitaram o acesso a recintos desportivos, transformando-os em parques de diversão e centros de consumo. Da formação à fruição, elitizaram o desporto e recorreram a um amplo catálogo de proibições e restrições, blindando o edifício desportivo de qualquer manifestação popular. 

«O desagrado de Carlos Verona colide, portanto, com a história do desporto popular e da sua resistência ao poder hegemónico e colide, também, com o exercício da liberdade de intervir politicamente.»

O papel das forças de segurança tem sido, também ele, fundamental para este propósito. Dispositivo de eleição do poder para garantir o «monopólio da violência», as forças de segurança são postas ao serviço de entidades privadas, defendendo os seus interesses e não os interesses da população, sob a capa da segurança pública contra os riscos de vandalismo e de criminalidade. Para tal, muito contribuíram os movimentos de extrema-direita que se infiltraram nas claques de futebol, impondo a violência discricionária, o racismo e a xenofobia. Cria-se o problema e resolve-se com maior repressão, confundindo segurança com securitismo. 

Numa realidade que é, cada vez mais, dominada pelos mercados financeiros, os clubes e associações desportivas vivem com um grau elevado de dificuldades e de dependência de financiamento, tanto da banca como de empresas patrocinadoras. Regressando a Un siglo cuesta arriba – Historia popular y politica del ciclismo, Ursall conta-nos que foi a empresa que organiza a Vuelta, a Unipublic, que impôs o fim da passagem da prova pelo País Basco, numa demonstração clássica de força. Veremos se faz o mesmo com Madrid.

Num contexto de hegemonia do neoliberalismo, são cada vez menos os que conseguem resistir à chantagem e ao assédio dos grupos económicos, aceitando ser cúmplices de imposições antidemocráticas. Dirigentes, equipas técnicas e atletas são, desde muito cedo, desaconselhados a manifestarem-se politicamente. O medo de represálias com implicações no seu trabalho e na sua sobrevivência desportiva (mediática e empresarial) força-os à cumplicidade com esse modelo hegemónico. É, por isso, digno de nota que o grande patrocinador da equipa de Verona, a Lidl, seja uma das empresas que integra uma lista de entidades a boicotar por cumplicidade com Israel.

Creio que foi esse o olhar amedrontado de Carlos Verona que consegui ver naquela breve (e ainda assim demasiado longa) entrevista. É o olhar de quem não quer problemas com a sua própria equipa, de quem viu, por exemplo, artistas a serem cancelados pelas empresas promotoras de espetáculos, como o foram, recentemente, as bandas Kneecap e Bob Vylan. Esse medo, imposto de cima para baixo, opera de forma muito eficaz. Mesmo que a sua vontade seja apenas de se demarcar de posições que podem afetar a sua carreira, o resultado é bem mais amplo do que isso, acabando por antagonizar os seus pares e as massas populares que ali se fazem ouvir. Mas esse medo não consegue, ainda assim, silenciar a urgente e necessária intervenção política no desporto, como se veria no boicote da última etapa da Vuelta de 2025. Porque há, na humanidade, uma coragem popular e solidária contagiante – a mesma que derrubou regimes repressivos e que enfrentou os canhões. Foi e será sempre essa coragem que fica na história. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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