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|Movimento dos Países Não-Alinhados

Sanjay Seth: Autodeterminação, um meio ou um fim?

O AbrilAbril conversou com Sanjay Seth, historiador (Goldsmiths College), depois de uma mesa-redonda em que este abordou o imaginário de Bandung, no âmbito da exposição organizada pelo IHC sobre Amílcar Cabral.

Sanjay Seth  
Sanjay Seth  Créditos / IHC

Em alguns sítios diz-se que Amílcar Cabral esteve presente na conferência de Bandung, e não esteve. Mas Bandung foi, no entanto, um momento muito importante para o seu percurso político. Diria que o não ter estado presente não alterou este facto?

Sim, estou inteiramente de acordo. E gostaria de fazer duas observações. Uma é o facto de ser interessante a quantidade de pessoas que se diz terem estado em Bandung e que não estiveram. E penso no que isso nos diz das proporções míticas que esse acontecimento atingiu, e não uso a palavra no mau sentido. É uma espécie de reconhecimento do facto de Bandung ter tido efeitos secundários. E associamos algumas pessoas a Bandung, de certa forma com razão, mas não porque tenham estado fisicamente presentes. Penso que Cabral foi um entre muitos, porque este foi um acontecimento histórico, a reunião dos líderes de 29 países recentemente independentes. Estamos a falar de 1955, a maioria destes países tinha-se tornado independente nos anos anteriores. Foi, portanto, um sinal claro do advento de um novo mundo, pelo menos em termos políticos, de novas nações, e foi um acelerador desse processo. Por isso, muitos, incluindo Cabral, não precisavam de estar presentes para que isso os influenciasse, porque era como que um sinal de que era possível um outro mundo em que os povos colonizados não teriam de permanecer colonizados para sempre.

Até esse momento, o mundo não-ocidental era um objecto do mundo ocidental. E continuou a ser um objecto mesmo quando as ideias e os princípios da independência começavam a ser debatidos. Estou a citá-lo da sua obra «Marxist Theory and Nationalist Politics, The Case of Colonial India». Quando é que isso mudou? Quando é que a discussão sobre o futuro dos territórios coloniais deixou de ser exclusivamente sobre a forma como isso deveria influenciar o mundo ocidental, nomeadamente a luta de classes, na perspectiva dos trabalhadores nas metrópoles?

É uma questão muito importante, mas é difícil de responder… Como defendo no livro a que faz referência, no mundo ocidental, isso acontece, por exemplo, com Lenine, que considero incrivelmente astuto ao reconhecer que o que estava a acontecer no início dos movimentos nacionalistas, de revoltas contra o domínio ocidental, não era apenas um facto confinado a essas colónias específicas, mas teria consequências históricas potencialmente mundiais. Assim, penso que Lenine e, subsequentemente, a internacional comunista, são um dos primeiros lugares onde existe uma consciência deste facto, entre as instituições que ainda são essencialmente ocidentais.

«Todos os oprimidos [por um colonizador], seja quem for que os oprima, são oprimidos por um fenómeno comum, o imperialismo, o capitalismo global.»

Penso que Bandung é importante mas não por ser o início, porque vem muito mais tarde. Os holandeses já tinham tomado consciência da Indonésia quando se registam rebeliões no final do século XIX e início do século XX. Os britânicos têm consciência das reivindicações da Índia e das suas colónias africanas. Mas a ideia de que não se trata de «colonizador contra colonizado», mas de que se trata de um fenómeno global, penso que é essa a verdadeira mudança. Teoricamente, essa mudança acontece sobretudo com Lenine e a teoria do imperialismo, que permite agora pensar que não se trata da Índia contra a Inglaterra, etc., mas sim de um fenómeno global, do capitalismo global. E todos os oprimidos, seja quem for que os oprima, são oprimidos por um fenómeno comum, o imperialismo, o capitalismo global. Penso que isso acontece, politicamente, com a descolonização. Bandung não é o único, mas é um dos primeiros marcos realmente importantes nesse sentido.

Amílcar Cabral disse que o movimento dos não-alinhados não significava neutralidade de princípios. Significava apenas que esses países não se deviam alinhar pelas decisões dos outros. Portanto, não-alinhamento não é virar as costas aos valores fundamentais e aos princípios de justiça. Será esta uma forma instrumental de alcançar o objectivo da independência? Ou era claro, na altura, que os dois modelos com os quais este movimento não se alinhava eram muito diferentes em termos de princípios e também em termos de cooperação internacional?

Penso que sim. As nações que pertenciam ao movimento dos não-alinhados e os seus líderes e principais figuras eram muito diversos, alguns mais radicais e marxistas, ou muito próximos do marxismo… Por exemplo, Nehru dizia-se socialista e penso que acreditava mesmo nisso, mas estava a uma grande distância de Fanon ou Cabral em termos de radicalismo. Portanto, era sempre uma mistura. No mínimo, era a reivindicação de países que eram esmagadoramente pobres, que tinham sofrido séculos, se não séculos, décadas de colonialismo, recém-emergidos no mundo como países independentes, sempre em perigo de serem essencialmente reduzidos a satélites de uma das superpotências, para criar um espaço em que pudessem evitar esse destino.

«Não foi apenas para terem o seu próprio parlamento e a sua bandeira que lutaram. Lutaram para que ter um parlamento e uma bandeira lhes permitisse melhorar a vida do seu povo e melhorar a vida de outros povos que, como eles, sofreram com o imperialismo e o colonialismo.»

A um certo nível, isso é instrumental, mas penso que até nisso há um princípio envolvido, que é o facto de não terem lutado pela independência para, mais ou menos, a renunciarem no momento em que a alcançaram, o que era um destino potencial para muitos. Quer dizer, os países da Organização do Tratado do Sudeste Asiático, que foram sugados para os acordos de segurança americanos, renunciaram efectivamente a uma grande parte da sua independência depois de terem lutado para a conseguir. Assim, mesmo quando se tratava de uma questão táctica, penso que havia um princípio envolvido. Mas já nessa altura havia um outro princípio entre os membros mais radicais do movimento dos não-alinhados, que era, para o dizer de uma forma demasiado simples, que não queriam conquistar a independência só por conquistar a independência. Conquistaram a sua independência porque ela seria o veículo através do qual mudariam o mundo de forma mais fundamental. Por isso, não foi apenas para terem o seu próprio parlamento e a sua bandeira que lutaram. Lutaram para que ter um parlamento e uma bandeira lhes permitisse melhorar a vida do seu povo e melhorar a vida de outros povos que, como eles, sofreram com o imperialismo e o colonialismo. Na ala radical do movimento dos não-alinhados, penso que esse princípio estava bem presente. Nem sempre foi concretizado, mas existia como inspiração, como força motriz.

Portanto, por um lado, temos dois blocos que são muito diferentes. Mas, por outro lado, ambos são diferentes, nessa fase, das forças imperialistas europeias, de cuja órbita estes países queriam definitivamente afastar-se. Mas hoje parece muito óbvio que os países não-alinhados não queriam propriamente uma terceira coisa… queriam ser bem sucedidos num caminho de soberania e desenvolvimento, que até podia contar com a cooperação e solidariedade de uma das potências…

Mais uma vez, a diversidade do movimento dos não-alinhados torna difícil responder a essa questão, porque depende. Alguns deles eram socialistas e, de certa forma, mais próximos da União Soviética. A outra coisa que estamos a deixar de fora é a ascensão da China como força e a cisão sino-soviética, o que significa que ser simpatizante do campo socialista é agora uma questão muito mais complicada, porque o campo socialista pode não significar a União Soviética. Pode significar a China. Pode significar a Jugoslávia. Assim, penso que o que vemos entre os dirigentes mais radicais é um desejo de encontrar uma via socialista, o que significa não seguir a via americana. Mas também significa não tomar necessariamente como garantido o modelo soviético ou a tutela do PCUS como a única outra opção para a rejeição do modelo americano.

Uma ideia também do seu livro é que, nestes países que estavam a lutar pela independência ou que já tinham alcançado a independência recentemente, a relação entre o marxismo e o nacionalismo foi útil, mas foi desequilibrada. Estaria condenada desde o início?

Não, penso que não, porque depende da forma como julgamos esses países, o que também depende das nossas simpatias políticas. Mas podemos apontar, por exemplo, a China e o Vietname como exemplos em que o marxismo e o nacionalismo se combinaram sem que um deles tenha sido sacrificado pelo outro. Dito isto, é claro que foi sempre uma tarefa delicada, porque não são a mesma coisa. É possível ser-se marxista sem se ser nacionalista, e é fácil ser-se – e temos muitos exemplos – um nacionalista que não só não é marxista como está disposto a aceitar a exploração do seu próprio povo, mesmo quando este luta pela libertação nacional. Portanto, é certo que não havia uma harmonia pré-determinada. Mas não creio que houvesse necessariamente um antagonismo.

«Foi um fenómeno notável o facto de a União Soviética ter criado nacionalidades. Protegeu-as, mesmo quando não havia uma língua escrita.»

E, mais uma vez, volto a Lenine, correndo o risco de parecer fetichista, que penso ter reflectido profundamente sobre esta questão e, na verdade, não porque simpatizasse com o nacionalismo em si, mas porque reconhecia que, como ele dizia, o nacionalismo dos países opressores e dos países oprimidos é diferente. E não se pode julgar da mesma forma um povo que foi dominado e explorado por outro durante muito tempo. Não se pode dizer-lhes que o nacionalismo é uma afectação burguesa, «livrem-se dele!». Afinal de contas, pode ser que esse seja um ingrediente necessário da sua luta por um mundo mais justo. E a justiça não é redutível ao nacionalismo, mas também não o exclui necessariamente.

A União Soviética é também um bom exemplo, por vezes esquecemo-nos dela, porque não foi através da supressão das diferentes culturas que se criou algo que pudesse funcionar como um Estado para o melhor interesse de todas as nações que o compunham…

De facto, alguns estudos recentes, estou a pensar no trabalho de Slezkine, que tem estado aqui em Portugal a dar várias palestras nos últimos tempos, mas também noutros trabalhos, todos eles apontam para o facto de ser notável, seja para o bem ou para o mal – para o caso vamos pôr isso entre parêntesis – mas que foi um fenómeno notável o facto de a União Soviética ter criado nacionalidades. Protegeu-as, mesmo quando não havia uma língua escrita. Encomendou a produção de gramáticas. Obrigou o ensino. Toda a gente andava com um cartão onde constava a sua nacionalidade, bem como a sua cidadania da União Soviética. Quer dizer, num discurso delirante que Putin fez há cerca de um ano, ele quase culpa Lenine pelo desmembramento da União Soviética por ter permitido a coexistência de várias culturas. A história surpreende-nos constantemente…

Como é que o movimento dos não-alinhados e Bandung nos podem ajudar hoje a compreender a relação de forças entre potências num mundo que não é bipolar, mas também não é unipolar? Como é que esse momento histórico nos pode ajudar a compreender o que está a acontecer hoje?

É uma pergunta muito difícil. Se tenho algo de útil a dizer sobre isso, é que, na verdade, penso que a experiência é, em parte, uma de aprendizagem. Penso que a autodeterminação nunca deve ser um princípio absoluto, até porque quem é o «eu» que se está a determinar? Quer dizer, mesmo quando falamos de autodeterminação, trata-se de entidades complexas, qualquer que seja o país, há sempre pessoas que dizem: «Espera aí, não quero fazer parte deste “eu” que está prestes a tornar-se uma nação». E dada a centralidade da forma do Estado-nação, isso normalmente assume a forma de dizer: "Quero a minha própria nação".

«Há algo de infantil em defender apenas a autonomia. A autodeterminação pode ser opressiva em qualquer parte.»

Portanto, o «eu» é sempre uma entidade complicada e construída. Por isso, não vale a pena fetichizá-la e gritar «autodeterminação!». A autodeterminação é sempre um bem em relação a um bem maior. Penso que para os nacionalistas radicais, os nacionalistas revolucionários, a autodeterminação era um bem porque era um meio necessário para um fim mais alargado e importante, que era a justiça para o nosso povo, a possibilidade de educar os nossos filhos que não podem ir à escola, as pessoas que não têm o que comer, etc. Isto não tem nada a ver directamente com a Ucrânia ou com qualquer outro exemplo. Mas penso que, no seu melhor, o nacionalismo revolucionário de que temos estado a falar, o nacionalismo radical, não fetichizava a autodeterminação em si. Dizia que qualquer forma de autodeterminação que promovesse objectivos mais substanciais devia ser apoiada. Agora, o que isso significa em qualquer circunstância individual dependerá das circunstâncias e as pessoas divergirão, quer se trate da Ucrânia ou de qualquer outro caso. Mas penso que há algo de infantil em defender apenas a autonomia. A autodeterminação pode ser opressiva em qualquer parte. Há sempre um processo de infinita regressão potencial em cada uma dessas reivindicações, porque estamos a falar de entidades complexas compostas por muitas outras. É por isso que eu estava a falar hoje na mesa-redonda sobre o fracasso da forma de Estado-nação. Quando o fetichizamos, quando fazemos dele um absoluto, um fim, pode tornar-se um disfarce para todo o tipo de absurdos.

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