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Sabrina Fernandes. «O comunismo é o desejo de novos problemas»

Sabrina Fernandes é militante, socióloga, economista, professora e youtuber brasileira, conhecida pelo seu canal de Youtube chamado Tese Onze. A conversa para o AbrilAbril foi feita aproveitando a sua presença em Portugal.

 

Sabrina Fernandes é militante, socióloga e autora do programa no Youtube Tese Onze, com centenas de milhares de seguidores. 
Sabrina Fernandes é militante, socióloga e autora do programa no Youtube Tese Onze, com centenas de milhares de seguidores. CréditosDR / DR

A autora dos livros Sintomas Mórbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira e Se Quiser Mudar o Mundo: Um guia político para quem se importa confessa que a sua tese favorita de Marx sobre Feuerbach é aquela que explica que se é verdade que os seres humanos são fruto das circunstâncias em que vivem e da sua educação, são também esses seres humanos que mudam as suas circunstâncias através da práxis revolucionária, que lhes permite simultaneamente entender a sua realidade e transformá-la. No entanto, devido à prioridade que dá à ideia que é necessário mudar o mundo, para além de o entender, adoptou Tese Onze, para nome do seu programa no Youtube, com centenas de milhares de seguidores.

A entrevista foi feita depois de Sabrina Fernandes ter participado, no Museu do Aljube, numa palestra com o título: «A alternativa internacionalista diante da crise autoritária».

Já a entrevista versou sobre uma das grandes preocupações de Sabrina: como ultrapassar a crise da esquerda que, para a autora, é uma crise de práxis que convive com a fragmentação crescente da esquerda. No fundo é preciso conseguir coordenar esforços de esquerdas plurais sem com isso aceitar qualquer oportunismo que se proponha uma mera vivência num capitalismo que se afirma sem fim à vista.

Falou na sua conferência de autoritarismo, que parece um primo do totalitarismo. Acha que é um conceito que pode ser colocado dentro do quadro da luta de classes?

O conceito de totalitarismo é algo que remete ao período da guerra fria, a uma ideia que há regimes que são fechados e que são autoritários que precisam de ser combatidos. Acaba por ser um conceito enviesado que esconde a presença do autoritarismo dentro de regimes liberais. É, por isso, um conceito limitado, e é mais vantajoso a gente trabalhar com a ideia de autoritarismo, justamente que revela que ele pode existir com a realização de uma vontade ou sanha autoritária num regime ditatorial, ou acabando a sustentar outras políticas que são normalizadas e chamadas de democráticas. Como por exemplo numa sociedade como os Estados Unidos da América, que se pretende democrática mas que promove a guerra em todo o mundo e encarcera grande parte dos seus próprios cidadãos negros.

No fundo, usando as ideias de Carl Schmitt, as sociedades ditas democráticas sustentam-se porque nos seus limites existe a possibilidade de serem autoritárias.

O que se vê nesse modelo no centro do capitalismo é que, à conta do poder económico, têm essa possibilidade de parecer mais democrático para dentro, enquanto vão fazendo muitos estragos para fora.

Há uma espécie de deriva autoritária com o crescimento de um populismo de extrema-direita em muitos países do mundo. Há um historiador americano, Thomas Frank, que provocatoriamente afirma que há muitos pobres que votam na direita e muitos ricos que votam na esquerda. Não há, de certa maneira, uma espécie de abandono das classes populares pela esquerda?

Os ricos não votam na esquerda, é um ponto assente. Podemos falar de pessoas que têm um certo nível de estabilidade financeira que geralmente garante acesso à educação, em economias mais estabelecidas, que fazem com que tenham um contacto directo com processos de politização. Mas os ricos, de verdade, quando se fala do grande capital e das elites burguesas, que na realidade controlam os bastidores e tendem a favorecer regimes mais neoliberais. Inclusive, quando apoiam alguns sectores que se declaram de esquerda, fazem-no desde que possam preservar políticas capitalistas que não ousem contrariar os mercados.

O outro ponto, é que se pode falar de uma falência da táctica de esquerda, nas últimas décadas. Principalmente, se se considerar que após a queda do muro de Berlim não foi só Francis Fukuyama a falar do fim da história. Parte da esquerda comprou essa narrativa: «tentamos, não conseguimos. Logo é preciso passar adiante e tentar humanizar as coisas dentro desde sistema». Aí a gente tem o embate daquela esquerda que normalizou o sistema actual. E outras esquerdas que começaram a reimaginar coisas, falando que «um outro mundo é possível», no movimento dos Fóruns Sociais. Mas não basta dizer que outro mundo é possível, a sociedade precisa de saber que tipo de mundo é possível. Esta alternativa é muito mais difícil de definir e construir quando a própria esquerda não se consegue entender acerca de alguns aspectos centrais.

O problema não é o próprio uso da palavra esquerda? No saco da «esquerda» há quem aceite o capitalismo e quem não o aceite. Porque ao utilizar esse conceito, mais do que sublinhar a ideia da necessidade de uma luta de classes, permite a confusão com sectores que pregam uma conciliação de classes?

Eu não colocaria esses sectores conciliatórios como de esquerda. Esses conceitos estão permanentemente em disputa, até mesmo o que significa uma política anticapitalista. Eric Olin Wright, antes de morrer, escreveu um livro sobre o que significava ser anticapitalista no século XXI, que eu discordo em vários pontos que me parecem mais uma tentativa de humanização do sistema que a sua superação. Todos esses conceitos estão, portanto, em permanente disputa. O interesse de se manter uma tipologia entre esquerda e direita, é que a partir dali há um antagonismo leve e pode partir daí para antagonismos mais pesados.

Esquerda e direita não são sobre luta de classes, mas como se organizam os campos políticos. Dentro da esquerda, tem de se batalhar pelo conceito de luta de classes que nos vai levar para o lado do socialismo e do comunismo. Mas mesmo a luta de classes não é suficiente para explicar qual é o projecto que pretendemos.

Um trabalhador pode estar consciente que está numa luta de classes, porque ele tem um antagonismo quotidiano com o seu patrão. Mas para onde ele vai a partir daí, depende de um processo de politização. E se se entrar no conceito de socialismo, há várias versões e interpretações. Quando se fala de comunismo pode ser numa versão marxista ou anarco-comunista. Por isso, o nosso trabalho não é só sobre disputa de narrativa, não se limita a pensar como se vai explicar isso e como isso vai fazer sentido na vida das pessoas. A luta de classes é importante para que a pessoa compreenda onde ela se insere na sociedade: «eu sou da classe trabalhadora e eu estou numa posição de ser explorado». Aí, é preciso ir atrelando outras explicações, algumas delas só vão fazer sentido quando o trabalhador se organiza e começa a lutar.

Nesse processo, o que se tem de perceber é que só falar para as pessoas que uma coisa é algo nunca vai ser suficiente. Tem de haver um relacionamento permanente. O processo de trabalhar com a classe trabalhadora é uma forma permanente de politização.

Quando se mete no mesmo saco toda a esquerda, e se acha que é tudo igual, tem de se perceber que isso tem que ver com o «senso comum» que a ideologia dominante está inculcando nas pessoas. A nossa tarefa, frente a isso, é ir desvendando e tornando claro esses mecanismos. Quando a gente o faz, acredito que chega um momento que pouco importa como se chama aquilo, importa muito mais a política concreta que estamos a estabelecer.

No debate da segunda volta das eleições francesas, entre Macron e Marine Le Pen, quem falou em trabalhadores, uberização, salários dignos e nos custos ambientais que tinham de ser pagos pelos que poluam mais, e não pelos que menos ganham, foi a candidata de extrema-direita. Houve uma apropriação do terreno da esquerda pela Le Pen. Mas, no final, a esquerda foi obrigada a votar no candidato liberal para impedir a chegada ao poder da extrema-direita, o que acaba por normalizar o discurso neoliberal. Como é possível ultrapassar a divisão das classes populares e recuperar aquelas que votam na extrema-direita?

No caso da França há um erro prévio, que é a própria fragmentação da esquerda alternativa a Macron que não conseguiu entender-se na primeira volta das presidenciais. Apenas vimos essa tentativa nas legislativas. Muitas vezes, quando se é colocado entre a espada e a parede, é por que não se conseguiu seguir a melhor estratégia. Por outro lado, a apropriação da extrema-direita de partes do programa da esquerda, significa que muitas vezes os debates não são feitos na forma correcta e não expõem os verdadeiros antagonismos. Esses debates permitem a aparência ideológica de fazer parecer a extrema-direita como anti-sistémica, quando na realidade o que eles fazem é trabalhar com os afectos de insatisfação e frustração que as sociedades têm, sem pôr em causa o capitalismo.

Aquilo que classifica de ultra-política.

É um pouco da ultra-política, mas é também aquilo que Vladimir Safatle fala sobre «o circuito dos afectos». A sociedade sente-se profundamente desamparada. E, nesse caso, a extrema-direita tem sabido navegar no meio desse desamparo social de uma forma que muitas vezes a esquerda tem dificuldades, nomeadamente a socialista. Por que para o campo socialista não basta dizer que se está desamparado e dizer que se resolve a situação. A esquerda socialista não se propõe resolver os problemas às pessoas numa bandeja. Para o campo socialista, as pessoas têm de se organizar para isso e envolver-se na sua própria emancipação. Trazer para dentro da luta é muito mais complicado do que transmitir uma mensagem dizendo que existe um inimigo exterior que está a atrapalhar tudo e que a extrema-direita vai-nos proteger. É por isso que a extrema-direita consegue mobilizar com mais facilidade.

Pode dizer-se que parte da esquerda social-democrata incorporou a ideia de meritocracia, em que se defende que as pessoas só não vivem melhor porque não fizeram individualmente nada para isso. Por outro lado, há uma esquerda que aposta na afirmação das identidades, aceitando muitas vezes uma política que põe o foco nos direitos individuais e ignora os direitos sociais.

Acho que aqui há dois problemas: a própria definição da política da identidade muitas vezes fecha um pouco a possibilidade de fazer uma solidariedade mais ampla. Pessoalmente, eu prefiro falar de políticas anti-opressão mais baseadas no colectivo.

Muitas vezes, no feminismo, aquilo que se passa dentro de casa está relacionado com dinâmicas externas. A mulher branca não podia trabalhar fora, porque a sociedade tinha estruturas que a coagiam, fazendo-a muito dependente do marido. A mulher branca, de classe média, quando conquista o direito de trabalhar fora de casa, coloca para dentro de casa uma mulher racializada para fazer o trabalho doméstico. Estas são as dinâmicas que ligam o pessoal com o político. O erro foi quando houve gente que começou a pensar: se o pessoal é político, o político é sobre mim. É político quando demonstra as diferentes camadas da estrutura que afecta a nossa vida. Pode ter referências muito directas no caso da violência doméstica. Mas uma experiência individual de violência doméstica não é uma experiência universal. Ela faz parte e compõe uma experiência estrutural, mas a experiência individual não é universal.

Então, muitas vezes, neste processo de explicar às pessoas que nós precisamos de as nossas experiências e aprender com elas, e ver que existem explicações políticas em relação a elas, muita gente acabou perdendo-se no meio do caminho. Talvez por falta de estar organizado num processo em que se lute por políticas públicas e por formas de emancipação mais geral, ficando simplesmente focado nos seus problemas pessoais. Um desvio agravado pela ideologia individualista da sociedade que nos quer fazer acreditar que só há pessoas.

Nesse contexto, multiplicam-se processos de revitimização, tendo lógicas em que acabam por travar processos e possibilidades de construir alianças. Porque de repente tudo parece transformar-se em assuntos sobre experiências e afectos individuais. Há pessoas que trabalham sobre estes fenómenos, como Asad Haider, no seu livro Armadilha da Identidade [entrevistado aqui para o AbrilAbril]. Sem dúvida alguma que estamos muito perdidos nestas questões, inclusive a esquerda socialista que está a confundir o ter de existir uma maior representatividade das mulheres, a nível institucional, com o necessário avanço do feminismo, e mais políticas LGBT a nível da sociedade. Essa confusão entre uma maior representatividade, o debate e as lutas que devem avançar, é algo que deve ser resolvido.

Por um lado, defende que a política não se deve esgotar nas instituições, mas por outro lado afirma resolutamente que é preciso uma outra política dos estados no combate à crise ecológica. Como vê hoje a questão do poder e a importância de conquistar o poder? Ou é possível mudar o mundo sem tomar o poder, como defende John Holloway? Qual é o papel que reserva aos partidos na luta política?

Os partidos são essenciais, mas eles são parte de um ecossistema mosaico de organizações diversas. Eu fui militante partidária vários anos, actualmente não sou porque acredito que o meu trabalho é melhor feito fora da fronteira partidária, porque isso permite-me trabalhar com vários partidos ao mesmo tempo. Para a minha realidade concreta, funciona melhor trabalhar em rede. Para outras pessoas o seu contributo é melhor dado no quadro da militância partidária. São precisos partidos, mas também são necessários movimentos sociais, redes e campanhas. A ideia de que vai haver uma organização primária que vai resolver todos os problemas, viu-se historicamente que não funciona.

As outras historicamente funcionaram? É que antes de haver partidos do movimento operário também houve outras organizações que não funcionaram.

É isso que estamos a tentar resolver, hoje em dia. A sociedade está cada vez mais complexa, a gente tem um nível de sindicalização que derrete porque a informalidade das relações laborais aumenta. Há vários partidos que estão muitas vezes mais preocupados em disputar o espaço do «quadradinho» do que em disputar a sociedade em si. Há muitos vícios que precisam de ser resolvidos, em vez de estarmos a pensar qual é o formato organizacional que vai resolver tudo isso. Eu acredito que se cada organização pode contribuir [para todos nós] com aquilo que consegue fazer melhor. Os partidos têm a possibilidade de trabalhar com a totalidade, os movimentos sociais estão focados em reivindicações específicas, os sindicatos estão muito mais voltado para a classe. O facto de os partidos terem essa possibilidade de articulação não significa que todo o militante precisa de ser um militante partidário. Eu sou uma pessoa nómada, não moro num país só, para mim não faz sentido estar atrelada a um partido único.

Sobre a questão da perspectiva internacionalista e a questão nacional. Na sua intervenção defendeu que havia vários tipos de nacionalismo. Algumas correntes da esquerda defendem que é necessário parar o processo de globalização e financeirização para poder actuar democraticamente sobre a economia. Acha que esse é o caminho certo?

Acho que uma crítica da financeirização é fundamental, porque se entra não só na discussão das coisas estarem «desatreladas» da produção, das coisas materiais da vida, como é que a financeirização está a tornar também as coisas cada vez mais complicadas em termos de identificação dos antagonismos. Quando falamos, por exemplo, do agronegócio, as pessoas têm ideia que o dono do agronegócio é aquele grande latifundiário que está parado sentado sob um grande pedaço de terra que só produz monocultura. Mas hoje em dia, o agronegócio é banco, é fundo de investimento. Actualmente, as sementes danosas são «empacotadas» em títulos de investimento, que são comprados por fundos de pensões de trabalhadores que estão sindicalizados em outra parte do mundo. A financeirização está a criar novas contradições que precisam de ser trabalhadas. Aqui coloca-se a questão do que é a privatização de certos direitos, por que é que o trabalhador sindicalizado está a gastar dinheiro em fundos de pensões? Porque não têm uma Segurança Social que do ponto de vista público seja realmente suficiente para garantir uma vida digna quando chegar à terceira idade.

Nesse combate contra a financeirização da vida em si tem que de falar verdade: o mercado financeiro cresce em brechas que estamos a deixar abertas. A economia financeira capitalista tem-se aproveitado disso, quando se vêem pessoas em pobreza, que deviam estar reformadas, mas que a sua reforma é tão miserável que elas começam a fazer entregas com aplicações como a Uber. O sistema capitalista vai falar de uma história de superação, a vida estava difícil e a pessoa conseguiu superar as dificuldades, mas isso só está a acontecer porque essas pessoas não tinham condições de uma vida digna.

Se se deixa os direitos sociais serem erodidos, a financeirização da vida vai tomar conta de tudo.

A ideia de uma desfinanceirização no quadro do capitalismo não se baseia num equívoco de que há sectores da burguesia nacional que são desenvolvimentistas e que se opõem a uma burguesia rentista? Hoje, os capitalistas que produzem carros não são também ligados à financeirização: o seu negócio de vender carros, também significa a criação dos créditos para os comprar, e as suas empresas estão maioritariamente cotadas em bolsa. Nas análises de André Singer essa foi uma das razões apontadas para a queda do governo de Dilma Rousseff: a incapacidade de encontrar o apoio de uma burguesia desenvolvimentista que se opusesse aos sectores que lucram com a financeirização, porque essa divisão de facto não existe mais.

Um dos problemas da contradição do lulismo em si, é não perceber que trabalhar com a burguesia desenvolvimentista ou rentista será sempre uma armadilha. Um problema que afecta boa parte do que se chama a maré rosa em grande parte da América Latina [a vitória de partidos de centro-esquerda e esquerda em vários países desse continente]. Existem alguns factores, voltando à questão da natureza, que nos auxiliam um pouco na análise. Quando se pensa que a água não será mercadoria, então vamo-nos opor não só a empresas que querem especular em relação ao valor da água, mas também a qualquer passo que pretenda retirar a água do controlo público.

A WikiLeaks revelou documentos, há bastante tempo, de como a Nestlé calculava o valor optimizado da água no deserto e qual seria o seu preço no futuro. A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, falou que o próximo recurso estratégico do futuro vai ser a água.

Se colocarmos uma barreira agora a estas tendências de especular, privatizar e financeirizar esse recurso fundamental à vida de todas as pessoas, vamos conseguir conquistar certas protecções.

Como aconteceu na Bolívia com a revolta de Cochabamba.

Sim, na Bolívia chegaram a esse processo de financeirização extrema da água e foi o povo que conseguiu derrotar essas intenções e leis na base de muitas manifestações e mortos. As pessoas sacrificaram-se para impedir que lhes fosse tirada a água. O problema é que muitas vezes isso não é colocado assim, é-nos dito que a água não vai ser privatizada, mas falam-nos numa parceria público-privada (PPP), como forma de administrar essa mesma água. E assim vão abrindo brechas. Tem de se dizer absolutamente: não. Não se pode aceitar que determinadas coisas possam ser pensadas numa lógica privada, porque em alguma altura vai-se abrir a porta a qualquer coisa muito pior. Acho que a educação é outro exemplo que devia merecer, nesse sentido, a nossa atenção. No Brasil - o Banco Mundial é um grande responsável pela difusão dessa ideia -, está a impor-se a concepção que não se pode ter educação pública, universal de qualidade para todas as pessoas em todos os níveis de ensino. Recentemente, determinados sectores políticos defenderam que se devia introduzir propinas, para aqueles que podem pagar, nas universidades públicas. Uma vez que se fizer isso, começa-se a dividir as pessoas entre aquelas que são beneficiadas pela política pública e aquelas que são consumidoras. O que muda toda a lógica do ensino público e abre a porta à sua privatização e destruição. A educação torna-se, assim, cada vez mais uma mercadoria, mesmo no sistema público.

Abriu-se essa porta, vai-se abrir portas para coisas muito piores. É uma Caixa de Pandora.

No seu livro Sintomas Mórbidos, a Encruzilhada da Esquerda Brasileira defende que mais que uma crise de representação, a esquerda vive uma crise de práxis, o que implica uma crise simultânea de capacidade de análise teórica e das formas da sua aplicação à luta de todos os dias. O que seria necessário para ultrapassar esta crise de práxis?

Uma coisa central para mudar isso é entender que a unidade é onde se chega e não de onde se parte. Existe uma dificuldade de entender que não é preciso concordarmos com tudo para se conseguir fazer qualquer coisa juntos. Isso está muito reflectido em processos tanto de sectarismo como de vanguardismo na esquerda. «A minha posição tem de vencer e aí eu vou aceitar vocês andarem com a gente» ou «todo o mundo vai ter de ir para a minha organização, caso contrário não é meu camarada e não vamos fazer coisas juntos». Isso mantem um círculo vicioso que não tem levado a lugar nenhum.

Se pensarmos num assunto concreto, como a fome no Brasil, entendemos que precisamos de reforma agrária, agro-ecologia, combater a crise ecológica, precisamos de uma outra função logística, de combater os agrotóxicos. Várias coisas são essenciais para combater o problema da fome. Mas não é possível fazer todas as coisas ao mesmo tempo e pelas mesmas pessoas. Daí a necessidade de juntar os esforços de muita gente. Existem pessoas que se dedicam à questão da reforma agrária, outras que se dedicam a técnicas de agro-ecologia e outras que estão a ajudar a garantir que nos espaços da sociedade, em que há mais carência, os alimentos cheguem lá. Outros estão a apostar em hortas locais, de modo a que as pessoas tenham mais autonomia alimentar. Tendo tudo isso, encontramo-nos na luta.

O centro do problema é as pessoas com fome, muita gente está interagindo com essas pessoas em todos os lugares, e quem está com fome percebe que precisam de se organizar e lutar. E aí costuma acontecer mais um problema: as organizações políticas começam a disputar as lideranças locais que surgem nesses processos de luta, e ficam a disputar em vez de entender que era mais produtivo apostar cada uma delas em funções em que têm um maior histórico e maior trabalho, deixando que eventualmente algo maior possa surgir do movimento e da sua pluralidade.

Mas dentro dessa pluralidade não é necessário ir criando um sujeito colectivo que possa disputar o poder e lutar contra o capitalismo?

As ideias não deixam de ser diferentes no momento do enfrentamento. Vê-se uma ocupação e aí vem o Estado e despeja as pessoas. Contra isso surgem outras pessoas e colectivos que se vão solidarizar com os que estão a ser despejados. Elas criam laços de confiança entre si e entendem que talvez aquela outra organização com a qual disputavam narrativas na sociedade tem ideias muito mais parecidas do que pensavam. E aí podem-se ter processos de fusão organizativa ou criarem-se momentos para resolver problemas mais temporários, como coligações, frentes e redes que podem trazer outros tipos de sinergias.

Essa defesa da importância de todas as lutas, e como elas se podem estender, não está muito próximo das ideias de Laclau sobre as demandas não satisfeitas, as cadeias de equivalência e como as lutas parciais podem ser universalizadas?

Não, porque eu acredito que nesse sentido tem de se ter uma política coordenada, embora não sectária. As coisas não se encaixam automaticamente, a gente tem de identificar essas sinergias e aí ter uma política coordenada. Eu acredito que as organizações devem incentivar a sua aproximação com outras organizações. E sobretudo é preciso, em vez de disputar e concorrer em terrenos de luta, trabalhar em conjunto.

Como é que se passa para a questão do poder de Estado?

Não existe apenas um poder.

Certo, mas o poder de Estado é uma cristalização de uma correlação de forças, e de alguma forma é preciso usá-lo para afrontar outros poderes, nomeadamente para combater poderes económicos que exploram e poluem.

Claro que isso tem importância. Sou contrária à tese de John Holloway. Eu acredito que é muito importante conquistar o poder. Mas fazê-lo não se limita à disputa institucional. É preciso alterar a correlação de forças. Precisa de ter uma alta capacidade de mobilização, que é uma das grandes falhas das experiências de esquerda, é que elas chegam ao governo e pensam que podem fazer mudanças com uma mobilização baixa, para que não estejam permanentemente a criticar o governo e o partido. É também fundamental manter a diferença entre partido e governo. Um dos erros do PT, no Brasil, foi que confundiu o partido e o governo.

É possível essa mobilização permanente? Usando uma metáfora, nós não estamos sempre em estado de paixão e certamente é impossível estar sempre em momento de explosão revolucionária. Não é necessário, passando essa fase, criar outras instituições de uma sociedade nova que permitam mudar as coisas sem um estado de mobilização permanente?

A paixão dura no máximo seis meses. Vamos dar um exemplo concreto político, podemos pensar nas comunas na Venezuela, que apesar das dificuldades que o país enfrenta, têm uma autonomia relativa tanto em relação ao PSUV (Partido Socialista Unificado da Venezuela), como em relação ao governo de Maduro. Isso é interessante, porque obriga o governo e o PSUV a dialogar com as comunas, porque se elas não estiverem de acordo as coisas não vão funcionar. Esta criação de outras instâncias, seja na Venezuela, que é ainda um país capitalista, seja historicamente na União Soviética com os sovietes, mostra que as coisas só podem avançar se forem criadas outras instâncias que façam com que mais gente se reconheça como sujeito político. E quando isso não é feito, o poder acaba por cair.

O político não pode ser apenas a pessoa que está a ocupar um certo cargo. A dificuldade concreta, pensando o que seria o poder popular, é que muitas vezes ele pode bater no partido e no governo. Por isso, o partido tem de ter um papel central na gestão desses conflitos, por que ele trabalha com a totalidade.

Cuba oferece um exemplo interessante, para se ser deputado da Assembleia cubana não é preciso ser do partido comunista. As pessoas podem candidatar-se. Têm-se, portanto, vários elementos de mediação. O Partido Comunista Cubano é o que governa Cuba, mas não é aquele que controla a Assembleia. Tem de fazer a mediação entre uma geração que viveu a prosperidade da revolução e aquela que só viveu o bloqueio, e que acaba tendo certas amarguras e conflitos como as coisas são geradas. O papel do partido é perceber que tem de ter uma independência em relação ao governo para conseguir fazer essa mediação. E o governo tem de perceber que isso é fundamental. Não pode absorver partidos e movimentos sociais para dentro do seu aparato e achar que isso é participação popular.

Temos de tomar o poder, mas fazê-lo direito para não ser absorvido pela instituição na lógica do poder que estava antes. O lulismo sofreu muito por conta disso, e tem de fazer a crítica desse período.

Por que é que se considera comunista?

Comunismo, em relação ao que Marx e Engels defendiam, é uma sociedade totalmente emancipada, que não tem as amarras da propriedade privada e as pessoas conseguem viver em harmonia entre si, em sociedade, sem a exploração alheia. A concretização disso é algo que ultrapassa a nossa imaginação de hoje. Muitos dos problemas do comunismo só os vamos ver quando estivermos no comunismo. Tudo o que se vai fazer nessa sociedade, teoricamente sem dinheiro, sem circuitos de mediação, vai naturalmente gerar problemas novos. Para mim, o comunismo é o desejo de novos problemas. É preciso superar os problemas do capitalismo, para que finalmente estejamos com problemas mais avançados e dispostos e envolvidos para os resolver.

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