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|crise do capitalismo

De 1929 a 2019 – o capitalismo não mudou (II)

Os problemas do capitalismo são hoje diferentes dos que impuseram o recurso ao fascismo há quase um século. Hoje os interesses dominantes são os do grande capital financeiro, que não tem pátria e não conhece fronteiras, defende o livre-cambismo e as políticas neoliberais.

Um sem-abrigo acorda depois de dormir a temperaturas de -3 °C, em Londres, uma das cidades mais caras do mundo. Inglaterra, 28 de Fevereiro de 2018.
Um sem-abrigo acorda depois de dormir a temperaturas de -3 °C, em Londres, uma das cidades mais caras do mundo. Inglaterra, 28 de Fevereiro de 2018.CréditosSean Smith

7.1 As crises cíclicas são um elemento inerente ao capitalismo, pelo menos desde 1825. Após os famosos trinta anos gloriosos posteriores à Segunda Guerra Mundial, muitos acreditaram (porque lhes convinha acreditar) que os bons resultados desse período (bom ritmo de crescimento económico, baixos níveis de desemprego e taxas de inflação aceitáveis) eram o resultado das políticas keynesianas. Esquecendo o aviso, do próprio Keynes, de que as situações de pleno emprego são raras e efémeras, falou-se de capitalismo sem crises e proclamou-se que a ciência económica tinha descoberto a cura para as doenças estruturais do capitalismo e tinha tornado obsoleto o marxismo, de uma vez por todas. Alguns (os defensores da teoria da convergência dos sistemas) acrescentaram mesmo que o capitalismo já não era capitalismo, chamando socialismo ao estado social de matriz keynesiana.

Mas foi sol de pouca dura. Os sinais da crise estrutural do capitalismo não tardaram:

1) em Agosto de 1971 os EUA romperam unilateralmente os Acordos de Bretton Woods, deixando de garantir a conversão do dólar em ouro a uma certa paridade: com o regime de câmbios flutuantes, o preço das divisas passou a ser regulado pelo mercado, isto é, pelos especuladores, começando então, na prática, a contra-revolução monetarista e o reinado do neoliberalismo;

2) as chamadas crises do petróleo (1973-1975 e 1978-1980), que trouxeram a estagflação e desvendaram a tendência para a baixa da taxa média de lucro no sector produtivo, deixando a descoberto as limitações das políticas keynesianas (afinal, nas economias capitalistas, os desequilíbrios, a instabilidade e a incerteza são a regra, não a excepção).

«a experiência dos últimos anos tem deixado claro, sem refutação possível, que o neoliberalismo não só não dispensou o estado, mas, ao contrário, tem exigido a presença activa de um poder político suficientemente forte para levar a cabo as violentas políticas neoliberais»

O compromisso keynesiano foi necessário para, depois da derrota do nazi-fascismo, substituir o capitalismo fascista pelo «capitalismo democrático do pós-Guerra» e para conseguir a «paz democrático-capitalista» (uso expressões de Wolfgang Streeck). Mas, nas novas condições de finais da década de 1970 (caracterizadas pela clara supremacia do capital financeiro sobre o capital produtivo), as instâncias dirigentes do sistema mundial capitalista convenceram-se de novo de que o capitalismo tinha garantida a eternidade, podendo, por isso, deitar fora o compromisso keynesiano, substituído pelo chamado Consenso de Washington, que veio codificar a nova estratégia do capitalismo à escala global, uma estratégia de clara inspiração neoliberal, que visa modificar, em benefício do capital, a correlação de forças entre o capital e o trabalho, contrariar a tendência para a baixa da taxa média de lucro e transferir para o grande capital o grosso dos ganhos da produtividade resultantes do desenvolvimento científico e tecnológico.

A verdade é que os apóstolos do neoliberalismo vinham de há muito fazendo o seu caminho. Por ocasião da publicação de O Caminho da Servidão (1944), Hayek foi convidado para uma série de conferências públicas nos EUA. O próprio Hayek reconhece a natureza do seu trabalho: «O que eu fiz na América foi uma experiência muito corruptora. (…) Tornamo-nos actores e eu não sabia que tinha essa qualidade em mim. Mas, tendo a oportunidade de jogar com uma audiência, comecei a gostar». Alguns anos mais tarde (1961), o mesmo espectáculo propagandístico foi montado à volta do livro de Milton Friedman Liberdade para Escolher, culminando com uma série de programas que ocuparam o horário nobre nas televisões de todo o mundo capitalista.

As experiências corruptoras como a de Hayek multiplicaram-se ao longo dos anos, por acção dos mesmos agentes em representação dos mesmos interesses, amplificadas pela acção dos grandes meios de comunicação social (meios de manipulação de massas), que fizeram do neoliberalismo a ideologia do pensamento único, uma espécie de religião, para cuja «única fé verdadeira» se diz que não há alternativa (o famoso argumento TINA – There Is No Alternative – da senhora Thatcher). Comentando este processo, escreve o Prémio Nobel Paul Krugman: «as preferências de mecenas universitários, a disponibilidade de bolsas de estudo e lucrativos contratos de consultoria, etc. devem ter encorajado [muitos] académicos não só a distraírem-se das ideias keynesianas, mas a esquecerem grande parte daquilo que se aprendeu com as décadas de 1930 e 1940». Foram estes os caminhos que conduziram à «idade das trevas da macroeconomia».

No âmbito da nova estratégia codificada no Consenso de Washington, argumentou-se (e argumenta-se) que as crises do capitalismo são o fruto das políticas keynesianas, que introduziram imperfeições e factores de rigidez no mercado de trabalho (liberdade sindical, direito à contratação colectiva, salário mínimo, subsídios de desemprego, o direito à segurança social, férias pagas) e impediram a actuação das leis naturais do mercado (as únicas leis que podem assegurar o equilíbrio geral em todos os mercados, incluindo o mercado de trabalho). E proclamou-se (e proclama-se) que os sindicatos (os «opressivos monopólios do trabalho» – Gottfried Haberler) «começam a ser incompatíveis com a economia de livre mercado», e querem destruir o estado (arvorando-os assim, como fez a senhora Thatcher, em inimigos internos, sobre os quais se justifica toda a repressão).

«Wolfgang Streeck denuncia o processo em curso de esvaziamento da democracia, que pretende garantir a «imunização do capitalismo contra intervenções da democracia de massas» […] para conquistar «duradouramente a confiança dos detentores e dos gestores do capital». E conclui: “o neoliberalismo necessita de um estado forte que consiga travar as interferências no livre jogo das forças do mercado”, […] “não é compatível com um estado democrático”»

Hayek vai mais longe: as políticas públicas que se propõem intervir na «ordem espontânea» constituem o caminho para a servidão, porque só as leis naturais do mercado permitem uma sociedade em que a liberdade seja efectivamente salvaguardada. E Milton Friedman identifica como inimigos internos «os homens de boas intenções que (…) desejam transformar a sociedade», através de políticas públicas. Como se vê, a ideologia neoliberal não significa apenas uma oposição radical à filosofia informadora e à prática concretizadora da democracia económica e social que ganhou foros de constitucionalidade em bom número de países. Ao considerar como inimigos internos, apesar das suas boas intenções, os defensores das políticas keynesianas promotoras do pleno emprego e da redistribuição do rendimento, ela revela uma vocação totalitária, associada a certas correntes da filosofia política que acusam o «excesso de carga do governo» (traduzindo: o estado social de matriz keynesiana) de ter conduzido à «ingovernabilidade das democracias» e o «excesso de democracia de ter provocado a «crise da democracia».

Regressa-se ao século XVIII: o que é natural é justo; o injusto está fora da natureza (era a tese dos fisiocratas).

8. As políticas de inspiração keynesiana entraram em perda com a reaganomics e o thatcherismo, em 1979/1980. No entanto, a partir dos anos 1980, registaram-se mais de cem crises em todo o mundo capitalista. Alguns exemplos: a crise dos países em desenvolvimento em 1982; a crise dos mercados de acções nos EUA em 1987; a crise (também nos EUA) dos mercados de obrigações de alto risco e das caixas económicas, em 1989/1990; a crise bancária dos países escandinavos no início da década de 1990; a crise no Japão, ao longo desta década; a crise do Sistema Monetário Europeu, em 1992/93; em 1994, nova crise no mercado obrigacionista americano; ainda em 1994/1995, a crise do peso mexicano; a crise das moedas asiáticas em 1997/98; a crise do rublo em 1998/99; o chamado e-crash (2000-2002), a crise que afectou a chamada nova economia (a economia das novas tecnologias: biotecnologia, informática, computação, telecomunicações), particularmente nos EUA e na Europa; a crise do real brasileiro em 1999; a grave crise financeira, económica, política e social da Argentina (2001/2002), por muitos considerada o maior desastre das receitas neoliberais impostas pelo FMI enquanto gestor de negócios do grande capital financeiro internacional.

«a crise [do subprime] não tardou a chegar à Europa, pondo em evidência a natureza da Europa neoliberal, cujas raízes estão no Tratado de Roma (1957). Razão tinha Pierre Mendès-France quando, ao fundamentar o seu voto contra o Tratado de Roma, na Assembleia Nacional Francesa (ao lado dos deputados comunistas), deixou este aviso: a tese de que “a concorrência pura e simples resolve todos os problemas”, virá a traduzir-se na “abdicação da democracia”»

Cumprindo o velho desejo de esconder a existência do estado capitalista enquanto estado de classe (enquanto ditadura da burguesia), os arautos da ideologia dominante esforçam-se por fazer passar a mensagem de que o capitalismo globalizado é um sistema libertário, que dispensa o estado ou se basta com uma espécie de estado mínimo.

A verdade é que, nos anos 1950, Raúl Prebisch (o argentino que foi o primeiro presidente da Comissão Económica para América Latina e o Caribe, o CEPAL) compreendeu que, no contexto da América Latina, o liberalismo (imposto pelo FMI aos países com dificuldades financeiras – as famosas pílulas do Dr. Jacobson) só poderia ser levado à prática manu militari (pela força das armas). E a experiência dos últimos anos tem deixado claro, sem refutação possível, que o neoliberalismo não só não dispensou o estado, mas, ao contrário, tem exigido a presença activa de um poder político suficientemente forte para levar a cabo as violentas políticas neoliberais codificadas no Consenso de Washington; para pôr de pé o que venho chamando de capitalismo do crime sistémico e para garantir a impunidade aos seus agentes, nomeadamente os bancos que, segundo The Economist, não são apenas demasiado grandes para falir (too big to fail) mas são também demasiado grandes para ir para a cadeia (too big to jail). «Mais do que nunca, o poder económico parece ter-se tornado, nos dias de hoje, poder político» – escreve Wolgang Streeck – um «poder político que já não se separa do poder económico e, sobretudo, do poder financeiro», como ensina Étienne Balibar. Este poder político é o moderno Leviathan, é a ditadura do grande capital financeiro.

Foi o poder político (os estados nacionais dos países dominantes e as organizações internacionais dominadas pelo capital financeiro e pelos seus estados) que construiu, pedra a pedra, o império neoliberal. Foi o poder político que impôs a liberdade absoluta de circulação de capitais (a mãe de todas as liberdades do capital); foi o poder político que desregulou todos os mercados, em especial os mercados financeiros, entregues ao «dinheiro organizado» (mais perigoso do que o «crime organizado», no dizer de Roosevelt); foi o poder político que privatizou os estados nacionais, tornando-os dependentes dos mercados para o financiamento das políticas públicas (é o que resulta do dogma da independência dos bancos centrais); foi o poder político que criou as estruturas em que assenta o capitalismo sem risco e sem falências (obra do estado garantidor); foi a ditadura do grande capital financeiro que criou o quadro estrutural que facilitou a epidemia de crises que vêm assolando o capitalismo.

Com base na experiência dos governos Thatcher, Andrew Gamble sustenta que «a doutrina-chave da Nova Direita e do projecto político que ela inspirou é a economia livre e o estado forte», capaz de «restaurar a autoridade a todos os níveis da sociedade» e dar combate aos inimigos externos e aos inimigos internos.

«Foram os dogmas [neoliberais] que ditaram o comportamento das autoridades da UE: a pretexto do combate à crise, lançaram um conjunto de políticas contraccionistas que agravaram a crise, políticas violentas de austeridade punitiva (falam alguns, cinicamente, de austeridade regeneradora…), que constituem uma verdadeira guerra contra os trabalhadores, condenados a espiar ‘crimes’ que outros cometeram e que estão a pôr em causa o estado social, a democracia e a paz, na Europa e no mundo»

Numa investigação de mais largo espectro, Wolfgang Streeck (o mais importante sociólogo alemão da actualidade), denuncia o processo em curso de esvaziamento da democracia, que pretende garantir a «imunização do capitalismo contra intervenções da democracia de massas», com o objectivo de impor e defender a justiça de mercado, para conquistar «duradouramente a confiança dos detentores e dos gestores do capital». E conclui: «o neoliberalismo necessita de um estado forte que consiga travar as interferências no livre jogo das forças do mercado»; «o neoliberalismo não é compatível com um estado democrático».

Esclarece o sociólogo alemão que estas políticas de esvaziamento da democracia têm sido levadas a cabo «através da reeducação neoliberal dos cidadãos» promovida pelas grandes centrais de produção e difusão da ideologia neoliberal. Mas deixa este alerta: elas podem também ser prosseguidas «através da abolição da democracia segundo o modelo chileno dos anos 1970» (opção que entende não estar disponível actualmente). O rigor dos estudos de Streeck obriga-nos a levar a sério esta questão fundamental: se as condições o permitirem (ou o impuserem…), as soluções brandas que vêm sendo adoptadas, apesar de musculadas e até violentas, poderão ser substituídas pelo modelo chileno dos anos 1970: o estado capitalista pode vestir-se e armar-se de novo como estado fascista, sem máscaras, deixando para trás o fascismo de mercado, o fascismo amigável de que falavam Paul Samuelson e Bertram Gross já no início da década de 1980.

9. Ultrapassada, a muito custo, a crise do peso mexicano, que ameaçou seriamente todo o sistema financeiro dos EUA, as reacções contra os especuladores profissionais foram de grande violência verbal. O mais radical terá sido Jacques Chirac, que os classificou como a sida da economia mundial. Apesar do alarme, nada se fez em termos políticos: o sistema financeiro continuou a especular com a vida de milhões de pessoas e a sida tomou conta da economia mundial. Os abalos das várias crises nas últimas décadas faziam esperar um terramoto de maiores dimensões. Porque as crises são inerentes ao capitalismo, e porque, como todos sabemos, o carnaval acaba sempre em quarta-feira de cinzas…

Em 2007/2008, rebentou nos EUA a mais grave crise do capitalismo depois da Grande Depressão. Tal como em 1929, o capitalismo americano (e mundial) vive um período caracterizado pela acentuada hegemonia do capital financeiro sobre o capital produtivo, por intensa actividade especulativa liderada pelo grande capital financeiro e por uma enorme desigualdade (desde meados dos anos 1980, a parte dos 1% mais ricos de entre os americanos passou de cerca de 10% do rendimento nacional para quase 25%, enquanto a parte que cabe aos 50% mais pobres diminuiu de cerca de 20% para pouco mais de 10%). À escala mundial, estudos recentes dizem-nos que 26 multimilionários detêm uma riqueza igual à da metade mais pobre da população mundial (cerca de 3,8 mil milhões de pessoas). É uma situação de verdadeiro apartheid social. É a «globalização da pobreza» (M. Chossudovsky), num tempo em que os ganhos da produtividade permitem a criação de riqueza a níveis até há pouco insuspeitados. É um mundo antropofágico, no seio do qual decorre uma verdadeira guerra civil à escala mundial que produz em cada ano tantas vítimas da fome ou de doenças causadas pela fome quantos os mortos da Segunda Guerra Mundial.

«Em 2012, o Tratado Orçamental veio constitucionalizar o neoliberalismo e as políticas de austeridade, oferecendo à senhora Merkel o que ela tinha exigido pouco antes da sua aprovação: “algo que nos garanta que, mesmo mudando os governos, as políticas não mudem”. Rematava-se a teia das regras alemãs que vinha sendo tecida pelo menos desde Maastricht, regras que são verdadeiras normas-travão, que visam exactamente impedir que qualquer governo, honrando o mandato popular recebido dos eleitores, tenha a veleidade de querer levar por diante políticas contrárias às plasmadas nessas regras»

A eclosão da chamada crise do subprime (porque começou por ser uma crise financeira, relacionada com as práticas especulativas em que se especializou o grande capital financeiro) confirmou o que a história do capitalismo ilustra: a especulação financeira tem sempre gerado crises. O próprio FBI chamara a atenção, publicamente, já em 2004, para o que designava uma «epidemia de fraudes hipotecárias». Mas as leis do casino prevaleceram. Quando o negócio faliu, o governo de George W. Bush, que sempre considerou a intervenção do estado na economia como um dos sinais da existência do império do mal, protagonizou a mais dispendiosa operação do estado desde os anos 1930 (700 mil milhões de dólares para salvar os bancos). O banco Lehman Brothers não resistiu aos ferimentos provocados pela especulação e anunciou falência em 15 de Setembro de 2008. G. W. Bush proclamou de imediato que não deixaria falir mais bancos. Estava inventado o capitalismo sem falências, ao menos para os bancos too big to fail. No final de 2008, a crise financeira degenerou em crise económica, que teve o momento mais simbólico no afundamento da General Motors, salva à custa de milhões e milhões de dólares saídos dos bolsos dos contribuintes.

9. Perante a crise, alguns sábios anunciaram que a Europa estava protegida, e os comentadores de serviço tentaram esconder, por todos os meios, a sua natureza de crise estrutural do capitalismo, apesar de todos saberem que as crises cíclicas fazem parte da história do capitalismo, e de serem conhecidos os factores estruturais que vêm tornando as crises cada vez mais frequentes e cada vez mais prolongadas e mais profundas.

Como era óbvio, a crise não tardou a chegar à Europa, pondo em evidência a natureza da Europa neoliberal, cujas raízes estão no Tratado de Roma (1957). Razão tinha Pierre Mendès-France quando, ao fundamentar o seu voto contra o Tratado de Roma, na Assembleia Nacional Francesa (ao lado dos deputados comunistas), deixou este aviso: a tese de que «a concorrência pura e simples resolve todos os problemas», virá a traduzir-se na «abdicação da democracia». Em 1983, François Mitterrand confessava-se «dividido entre duas ambições, a da construção da Europa e a da justiça social», reconhecendo assim que a justiça social não tinha lugar na Europa em construção desde 1957. Como sabemos, ele optou pela construção da Europa, sacrificando o famoso modelo social europeu. Esta foi a opção dos partidos socialistas e sociais-democratas da Europa. No plano institucional, o Acto Único Europeu (1986) e o Tratado de Maastricht (1991) concretizam a submissão da Europa ao Consenso de Washington, que viria a consolidar-se com o Tratado Orçamental (2012).

Foram os dogmas do Consenso de Washington que ditaram o comportamento das autoridades da União Europeia (UE): a pretexto do combate à crise, lançaram um conjunto de políticas contraccionistas que agravaram a crise, políticas violentas de austeridade punitiva (falam alguns, cinicamente, de austeridade regeneradora…), que constituem uma verdadeira guerra contra os trabalhadores, condenados a espiar crimes que outros cometeram e que estão a pôr em causa o estado social, a democracia e a paz, na Europa e no mundo.

São as opções políticas de quem aceita (como Joschka Fisher, ministro dos Negócios Estrangeiros de um governo liderado pelo SPD) que «ninguém pode fazer política contra os mercados», são opções por «políticas em conformidade com o mercado» (na versão da senhora Merkel). São opções políticas que aceitam que os mercados substituam a política, sabendo perfeitamente que este é o caminho da morte da democracia.

«O poder dos parlamentos afirmou-se como a pedra de toque da soberania nacional. Pois bem. Hoje, como sabemos, o nosso orçamento de estado é aprovado primeiro em Bruxelas por gente que ninguém conhece e que não responde perante nenhum órgão com legitimidade democrática nem perante o povo soberano. É com esses eurocratas que os governos discutem e negoceiam os orçamentos. Os parlamentos nacionais pouco mais fazem do que carimbar os orçamentos aprovados em Bruxelas»

As políticas de austeridade foram apresentadas como a única alternativa para combater a crise, apesar de todos sabermos o que Joseph Stiglitz recordou várias vezes: «não há exemplos de países que tenham recuperado de uma crise através da austeridade». Mas Phillipe Legrain, assessor de Durão Barroso enquanto presidente da Comissão Europeia, veio a público dizer que estas políticas foram impostas pelos grandes bancos alemães e franceses e foram levadas a cabo para os salvar da bancarrota. Nós já sabíamos, mas é sempre bom que quem está por dentro venha revelar as regras do jogo.

Como era de esperar e como desejavam os seus mentores, elas revelaram-se políticas de divergência económica e social entre os estados-membros da UE; elas «salvam bancos com quantias de dinheiro inimagináveis, mas desperdiçam o futuro das gerações jovens» (Ulrich Beck); elas conduziram vários países à falência para evitar a falência de bancos demasiado grandes para falir; elas condenam os países devedores («a nova classe baixa da UE») a sofrer «perdas de soberania e ofensas à sua dignidade nacional» (Ulrich Beck); elas exigem às suas vítimas (os pobres dos países mais pobres) «sacrifícios humanos em honra de deuses invisíveis» (Paul Krugman); elas produziram uma «catástrofe política e económica», conduzindo a uma situação que «viola as condições mínimas fundamentais de uma sociedade europeia na qual valha a pena viver» (citei Wolfgang Streeck); elas constituem «crimes económicos contra a humanidade» (L. Benería/C. Saravia, El País, 29 de Março de 2011); elas significam – confessa Jean-Claude Juncker – pecados contra a dignidade dos povos. Por outras palavras: elas constituem verdadeiros crimes contra a Humanidade.

9. Em 2012, o Tratado Orçamental (verdadeiro «golpe de estado europeu» – R.-M. Jennar) veio constitucionalizar o neoliberalismo e as políticas de austeridade, oferecendo à senhora Merkel o que ela tinha exigido pouco antes da sua aprovação: «algo que nos garanta que, mesmo mudando os governos, as políticas não mudem». Rematava-se a teia das regras alemãs que vinha sendo tecida pelo menos desde Maastricht, regras que são verdadeiras normas-travão, que visam exactamente impedir que qualquer governo, honrando o mandato popular recebido dos eleitores, tenha a veleidade de querer levar por diante políticas contrárias às plasmadas nessas regras. Submissos, os responsáveis pela Europa de Vichy vão engrossando a legião dos defensores do fim das ideologias, dizendo das suas próprias políticas neoliberais que elas não são de esquerda nem de direita, são as políticas necessárias (foi a tese de todos os Hollande…).

Cito o filósofo alemão liberal Jürgen Habermas: fica a suspeita de «os governos nacionais serem apenas actores no palco europeu» e de os parlamentos nacionais «se limitarem a aprovar obedientemente (...) as decisões tomadas previamente noutro lugar». Cito Felipe González: «os cidadãos pensam, com razão, que os governantes obedecem a interesses diferentes, impostos por poderes estranhos e superiores, a que chamamos mercados financeiros e/ou Europa».

«Este Tratado Orçamental perfila-se como um verdadeiro pacto colonial, que impõe aos povos dos países mais fracos a sua própria colonização (Ulrich Beck fala de neocolonialismo), o seu próprio subdesenvolvimento, pela via do empobrecimento, do confisco dos seus recursos e das suas empresas estratégicas, com a consequente destruição do mínimo de coesão social e da comunidade social em que assenta a soberania»

Quem conhece um pouco de História sabe que a democracia parlamentar (dita democracia representativa) começou a construir-se na Inglaterra (e mais tarde na França) durante o período de desagregação do feudalismo, quando as burguesias nacionais impuseram a separação entre o erário público e o património dos monarcas e confiaram aos parlamentos eleitos o direito (o poder) de discutir e aprovar o orçamento de estado, e a competência exclusiva para lançar impostos (No taxation without representation). Este poder dos parlamentos afirmou-se como a pedra de toque da soberania nacional. Pois bem. Hoje, como sabemos, o nosso orçamento de estado é aprovado primeiro em Bruxelas por gente que ninguém conhece e que não responde perante nenhum órgão com legitimidade democrática nem perante o povo soberano. É com esses eurocratas que os governos discutem e negoceiam os orçamentos. Os parlamentos nacionais pouco mais fazem do que carimbar os orçamentos aprovados em Bruxelas.

Concluo com Habermas: as regras consagradas no Tratado Orçamental não podem deixar de «corroer qualquer credibilidade democrática». E interrogo-me sobre o significado da democracia nesta Europa que se vangloria de ser o berço da democracia. Continua a haver eleições, mas proclama-se que as eleições não podem mudar as políticas. Será isto democracia? Em plena crise grega, o ministro Varoufakis, cansado de tanta humilhação, não se conteve e disse alto e bom som: «o que estão a fazer à Grécia tem um nome: terrorismo». Terrorismo de estado, imposto por poderes estranhos e superiores, pelos mercados financeiros, pela Europa.

Este Tratado Orçamental perfila-se como um verdadeiro pacto colonial, que impõe aos povos dos países mais fracos a sua própria colonização (Ulrich Beck fala de neocolonialismo), o seu próprio subdesenvolvimento, pela via do empobrecimento, do confisco dos seus recursos e das suas empresas estratégicas, com a consequente destruição do mínimo de coesão social e da comunidade social em que assenta a soberania.

10. Creio ser hoje pacífico que o nazi-fascismo surgiu, na Europa dos anos 1920/1930, no quadro de uma crise económica profunda, prolongada e generalizada a todo o mundo capitalista. A debilidade da economia não permitia resposta fácil às reivindicações dos trabalhadores.

A necessidade de garantir o governo da economia surgiu com o anúncio dos primeiros sinais da crise do capitalismo, num tempo em que o sistema assentava em estruturas empresariais fortemente concentradas e muito poderosas, que constituíam a base do poder de burguesias nacionais que dominavam boa parte da economia e controlavam o poder político. Aos olhos de muitos, foi-se impondo a necessidade de confiar ao estado a responsabilidade de governar a economia.

«Uma coisa é certa: o esvaziamento da soberania dos estados nacionais, apresentado como um projecto moderno contra o qual estariam apenas aqueles que não sabem acompanhar os ventos da História, não é uma ideia inocente. Os seus arautos sabem muito bem que as estruturas transnacionais do poder político não são estruturas democráticas e que o estado nacional continua, por isso mesmo, a constituir a única matriz da democracia e da liberdade, o único espaço no seio do qual os trabalhadores podem lutar pelos seus interesses dentro da legalidade»

No plano social, a tensão era crescente: as greves e a contestação social estavam na ordem do dia, obrigando por vezes a utilizar as forças armadas contra os trabalhadores (um quadro em que a luta de classes assume a natureza de verdadeira guerra civil). Mas a resposta à questão social tornou-se mais complicada nos países de economia mais atrasada (Itália, Espanha, Portugal e outros países do sul da Europa) ou mais debilitada (Alemanha), todos afectados também pela profunda e prolongada crise mundial do capitalismo. Nestes países, era particularmente difícil satisfazer as reivindicações dos trabalhadores e das suas organizações de classe.

No plano político, as dificuldades agudizavam-se, dada a contaminação provocada pela marcha vitoriosa da Revolução de Outubro, levando muitos responsáveis a recear que a revolução alastrasse a toda a Europa, nomeadamente aos países industrializados e desenvolvidos.

Naquelas condições históricas (da história do capitalismo na sua fase imperialista), tornou-se impossível às burguesias nacionais assegurar o seu domínio de classe no quadro da chamada democracia burguesa. A liquidação da ordem democrática foi a solução encontrada para mais facilmente destruir as organizações dos trabalhadores (partidos e sindicatos), para condenar os trabalhadores a prosseguir o bem comum (de mão dada com os grandes empresários monopolistas no seio das organizações corporativas) e para combater a ameaça comunista, que vinha com os ventos de leste, originários da Rússia dos sovietes.

O fascismo dos anos 1930/1940 foi anti-liberal, anti-democrata e anti-socialista. Assumiu a economia como uma questão de estado e foi proteccionista. Porque este era, nas condições da época, o perfil adequado para que o estado capitalista pudesse desempenhar a sua função, de acordo com os interesses das burguesias nacionais, que, na Alemanha, na Itália e no Japão, aspiravam também a conquistar um quinhão numa nova partilha dos territórios colonizados ou a colonizar.

Os problemas do capitalismo são hoje diferentes dos que impuseram o recurso ao fascismo há quase um século. Hoje não existe, com a premência de então, a ameaça da expansão do comunismo, e os interesses dominantes são hoje os interesses do grande capital financeiro, que não tem pátria e não conhece fronteiras, defende o livre-cambismo e as políticas neoliberais.

A sobrevivência deste capitalismo do crime sistémico pode exigir o regresso do terror à Europa e ao mundo. Em certa medida, a ditadura do grande capital financeiro vem-se traduzindo já em novas formas do poder político, de natureza transnacional, umas semi-secretas (Grupo de Bilderberg, Forum Davos, G7…), outras criadas «à porta fechada», sem ouvir os povos (como as instituições europeias, com destaque para o Eurogrupo, que nem sequer é referido em nenhum dos Tratados estruturantes da UE). Também a repressão e a violência assumirão novas formas, que já começaram a manifestar-se: campanhas de diabolização de dirigentes políticos incómodos; golpes palacianos; sanções económicas (verdadeira guerra económica, por vezes com efeitos tão dramáticos e tão mortais como os da guerra através das armas tradicionais); sabotagem de estruturas essenciais; bloqueios ilegais para provocar a escassez artificial de alimentos, medicamentos e outros bens essenciais…

Uma coisa é certa: o esvaziamento da soberania dos estados nacionais, apresentado como um projecto moderno contra o qual estariam apenas aqueles que não sabem acompanhar os ventos da História, não é uma ideia inocente. Os seus arautos sabem muito bem que as estruturas transnacionais do poder político não são (ou pelo menos não são ainda) estruturas democráticas e sabem muito bem que o estado nacional continua, por isso mesmo, a constituir a única matriz da democracia e da liberdade, o único espaço no seio do qual os trabalhadores podem lutar pelos seus interesses dentro da legalidade.

«Escreveu há tempos Joschka Fischer: “A Alemanha destruiu-se – a si e à ordem europeia – duas vezes no século XX. (…) Seria ao mesmo tempo trágico e irónico que uma Alemanha restaurada (…) trouxesse a ruína da ordem europeia pela terceira vez”. Dá arrepios ler isto. A História não se reescreve, mas também não se apaga. Não tenho tanta certeza de que não se repita. Por isso é que me assusta a possibilidade de a Europa se condenar, mais uma vez, a si própria e ao mundo, a uma nova era de barbárie»

Escreveu há tempos Joschka Fischer: «A Alemanha destruiu-se – a si e à ordem europeia – duas vezes no século XX. (…) Seria ao mesmo tempo trágico e irónico que uma Alemanha restaurada (…) trouxesse a ruína da ordem europeia pela terceira vez». Dá arrepios ler isto. A História não se reescreve, mas também não se apaga. Não tenho tanta certeza de que não se repita. Por isso é que me assusta a possibilidade de a Europa se condenar, mais uma vez, a si própria e ao mundo, a uma nova era de barbárie.

Nestas condições, é importante preservar a memória e não esquecer as lições da História. Desde logo para desmascarar as teses enunciadas nos EUA, no final da Segunda Guerra Mundial (que continuam hoje a alimentar certos discursos pretensamente científicos), por alguns cultores da sociologia e da psicologia social, segundo as quais a barbárie nazi-fascista era filha da mentalidade patológica de indivíduos perturbados que, em circunstâncias excepcionais, tinham conseguido chegar ao poder. Subjacente a esta tese (rabo escondido com o gato de fora…) está o propósito de fazer crer que capitalismo e as suas contradições não têm nada que ver com o horror trazido pelas duas guerras mundiais que marcaram a negro a história do século XX. Hoje, porém, sabemos todos – creio eu – que a Primeira Guerra Mundial não ocorreu porque um nacionalista sérvio matou um arquiduque numa rua de Sarajevo. E sabemos também que o nazi-fascismo não foi o fruto da personalidade psicopática e das ideias criminosas de Adolf Hitler ou do narcisismo e da mania de grandeza de Mussolini.

Para tanto, é essencial valorizar o trabalho teórico, que nos ajuda a compreender a realidade para melhor intervir sobre ela de acordo com as leis históricas da sua transformação. É essencial tomar consciência da «assimetria fundamental» que resulta da «globalização assimétrica» e que Ulrich Beck sintetiza magistralmente: a «assimetria entre poder e legitimidade» («um grande poder e pouca legitimidade do lado do capital e dos estados, um pequeno poder e uma elevada legitimidade do lado daqueles que protestam». É essencial levar a sério a luta ideológica, que nos ajuda a combater os interesses estabelecidos e as ideias feitas e que é, hoje mais do que nunca, um factor essencial das lutas políticas e das lutas sociais que fazem andar o mundo.

  • 1. Nota da redacção: continuação e conclusão do artigo cuja publicação foi iniciada ontem.

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