|José Goulão

O terrorismo, esse pilar da democracia liberal

Tem sido assim desde os anos 80 do século passado, mas a admiração e o afecto agora testemunhados publicamente ao mercenário terrorista responsável pela carnificina da guerra contra a Síria faz cair todas as máscaras, anula quaisquer exercícios de hipocrisia. 

CréditosMohammed Badra / EPA

Primeiro Emmanuel Macron, agora Donald Trump. As duas vertentes transatlânticas da chamada «civilização ocidental», ou «nossa civilização», aparentemente tão desavindas nestes tempos, competem agora em vénias ao chefe terrorista islâmico Abu Muhammad al-Jolani, que sequestrou o poder em Damasco em 8 de Dezembro último.

Esqueçam todas as divergências que dizem existir entre a União Europeia e a administração Trump na Casa Branca. Nada disso é para levar a sério, muito menos as supostas críticas feitas pelas instituições federalistas e os chefes de governo da maioria dos 27 ao indivíduo destrambelhado que governa os Estados Unidos da América. Quando se trata do terrorismo dito islâmico e dos seus expoentes, sejam a al-Qaida, o Isis ou «Estado Islâmico» e a miríade de heterónimos em que se mimetizam, Washington  e Bruxelas falam a uma só voz, a do apoio e da gratidão. Tem sido assim desde os anos 80 do século passado, mas a admiração e o afecto agora testemunhados publicamente ao mercenário terrorista responsável pela carnificina da guerra contra a Síria faz cair todas as máscaras, anula quaisquer exercícios de hipocrisia. 

Dr. Jekyll e Mr. Hyde

O culto da figura do carniceiro Abu Mohammad al-Jolani, agora conhecido como Ahmed al-Sharaa e vice-versa, é um tratado, ou poderá ser um case study, em português anglo-saxónico, sobre a «ordem internacional baseada em regras» pela qual se guia uma «civilização superior» como a ocidental, permanentemente envolvida no combate à «barbárie».

Há um al-Jolani que foi alto conselheiro dos chefes da al-Qaida e do Isis, depois comandou a al-Nusra, a designação adoptada pela al-Qaida na Síria e a seguir alterada para Tharir al-Sham. Esta mobilidade semântica articulou-se de modo a tentar fazer crer ao mundo que a organização actuando no cenário sírio se divorciara do gang fundado pela CIA e bin-Laden e justificar assim o seu lugar no núcleo dos terroristas «moderados» financiados pelo Ocidente. Mudaram os nomes mas a essência assassina manteve-se e a al-Qaida continuou a ser o chapéu cobrindo toda a comunidade «moderada». Nada a obstar. O então primeiro-ministro francês, o sionista Laurent Fabius, reconheceu numa reunião da coligação internacional de apoio aos «moderados» que «a al-Qaida está a fazer um bom trabalho» na Síria.

«Esqueçam todas as divergências que dizem existir entre a União Europeia e a administração Trump na Casa Branca. Nada disso é para levar a sério»

 

Al-Jolani, criminoso e mercenário que comandou alguns dos mais selváticos ataques contra civis praticados durante a guerra imposta à Síria, como que replicava o visual do seu ídolo bin-Laden: vestes tribais, cabelos em desalinho sob o turbante e barba longa e descuidada à «fundamentalista islâmico». Numa palavra, Mr. Hyde.

Ahmed al-Sharaa é visivelmente outra pessoa. Começou a apresentar-se ao mundo durante uma entrevista que lhe foi oferecida pela estação oficiosa da CIA, a Rádio Voz da América, e para a qual o equiparam à «ocidental», um pouco apressadamente, há que dizê-lo. Nessa ocasião, o magarefe actualmente conhecido como «presidente interino« da Síria compôs desajeitadamente a figura de um «estadista» pronto para «a paz», disposto a defender uma sociedade democrática na qual seriam assegurados os direitos das minorias étnicas e religiosas, comunidades milenares que representam a própria essência nacional multifacetada do país. É no papel de al-Sharaa que al-Jolani caminha agora pelo exterior das fronteiras do seu país para receber as homenagens, os agradecimentos e as promessas de apoios generosos dos principais dirigentes mundiais, sempre obsessivamente empenhados na «guerra contra o terrorismo». No recente encontro que teve com o presidente francês Emmanuel Macron, no Palácio do Eliseu, al-Sharaa estabeleceu até com o seu anfitrião uma plataforma de «coordenação na luta antiterrorista». Noutra palavra, Dr. Jekyll.

«Jovem, atraente e viril»

Fardando-se de al-Sharaa, enquanto os mercenários «islâmicos» comandados por al-Jolani prosseguem as operações de chacina contra as comunidades civis alauitas, drusas e cristãs – abandonadas estas pela «civilização cristã e ocidental» – o presidente «interino» sírio viajou até à Arábia Saudita, o seu berço na arte do terrorismo, ao encontro de Donald Trump. «Um tipo jovem, atraente e viril», assim o retratou o presidente norte-americano, talvez embeiçado pelo fato Armani que ele envergava, em contraste com a t-shirt cara, de marca e assinatura fascista mas de aspecto rasca que outro terrorista, Zelensky, apresentou na Casa Branca.

Tutor e protegido trocaram um caloroso aperto de mão em Riade na presença do verdadeiro chefe do sempre democrático regime saudita, Mohammed bin-Salman, o organizador do encontro. Para trás ficaram, como se percebe, as questiúnculas de somenos que Washington levantou quando bin-Salman mandou sequestrar na Turquia e esquartejar em pedaços facilmente dispersáveis o cidadão norte-americano e jornalista Jamal Kashoggi, por sinal também agente da CIA. Tudo ficou esquecido e enterrado no passado, com os restos da pobre criatura.

«Ahmed al-Sharaa é visivelmente outra pessoa. Começou a apresentar-se ao mundo durante uma entrevista que lhe foi oferecida pela estação oficiosa da CIA, a Rádio Voz da América, e para a qual o equiparam à "ocidental", um pouco apressadamente, há que dizê-lo.»

 

Trump prometeu a al-Sharaa e ao seu regime golpista levantar todas as sanções económicas que os Estados Unidos impuseram ao governo de Bashar Assad, um executivo que estava legitimamente em funções segundo os mecanismos constitucionais e de acordo com eleições participadas em massa – porém manchadas com o pecado original de terem produzido resultados contrários aos «desejos» ocidentais. Logo, por definição, as eleições foram uma burla; pelo contrário, o governo «interino» resultante de uma guerra terrorista imposta à Síria de fora para dentro é o garante da restauração da democracia e da estabilidade no país, de acordo com os mais influentes dirigentes ocidentais. Este governo sim, deverá ficar isento de sanções para que seja possível «um novo começo», declarou Trump na Arábia Saudita. Um «começo» que, no entanto, não deverá perturbar a continuidade de algumas actividades produtivas, como é o caso do roubo do petróleo do povo sírio pelos Estados Unidos da América.

«Ele é um verdadeiro líder, comandou uma ofensiva e é incrível», testemunhou, rendido, o presidente norte-americano. «Tem possibilidade de fazer um bom trabalho e de manter a calma» na Síria. Calma é, decerto, o atributo mais recomendável de al-Jolani. 

Washington levantou há poucas semanas a acusação de «terrorista» que pendia oficialmente sobre o presidente golpista sírio, embora a decisão seja omissa quanto à validade ou não da recompensa de 10 milhões de dólares prometida a quem o capturar. Compreende-se que, apesar disto, Trump tenha selado com um aperto de mão o reconhecimento das funções políticas do seu «atraente» interlocutor. O mandado de captura foi emitido contra al-Jolani e não contra al-Sharaa, que não haja mal entendidos nem quaisquer insinuações mal intencionadas.

Première no Eliseu

Soube-se há poucos dias que al-Sharaa enviara uma carta a Trump pedindo-lhe que exerça os seus bons ofícios para que seja possível uma «normalização» das relações entre a Síria e Israel.

O assunto é música para os ouvidos do presidente norte-americano: remove mais um grande obstáculo à concretização do extermínio do povo palestiniano – a começar pela limpeza da «Riviera» de Gaza – abre caminho para transformação da Síria numa plataforma de ameaça constante, ou mesmo de guerra, contra o Irão e amplia o poder sionista, isto é imperial e do «mundo livre», sobre a Ásia Ocidental. Um passo que facilita assim o tão desejado e estratégico entendimento entre não uma mas as «duas democracias» do Médio Oriente: Israel e Arábia Saudita. Pelo que fica demonstrado o quão úteis e civilizadoras têm sido as organizações terroristas ditas «islâmicas», designadamente a al-Qaida e o Isis, como instrumentos dos interesses ocidentais e braços armados da NATO.

Al-Sharaa levantara antes o assunto da «normalização» de relações com Israel durante o encontro que o presidente francês lhe concedeu no Palácio do Eliseu, um acontecimento que parece ter constrangido o aparelho de propaganda situacionista, pois não beneficiou da merecida publicidade. Agora com o aval do chefe do império, ainda que seja Trump, tudo ficará mais desanuviado e franco. Al-Sharaa passou a ser um dos «nossos».

A visita ao Eliseu foi uma première, um verdadeiro teste de fogo para a transfiguração ocasional do terrorista al-Jolani no estadista e diplomata al-Sharaa. 

Envergado o fato Armani e depois de uma passagem chez Jean Louis David para aparar a barba e o cabelo no mais afamado coiffeur masculino de Paris, o presidente «interino» sírio arribou ao coração da V República Francesa onde foi recebido pelo pequeno grumete dos Rothschilds. Macron apresentou-se com um fato do mesmo tom de azul e não disfarçou uma certa admiração ao mirar o homenzarrão árabe que tinha na frente. Evitou verbalizar o adjectivo «atraente» que Trump foi incapaz de conter; porém, somando o estilo de acolhimento aos frutos da conversa, percebe-se que o presidente francês ficou ali com um amigo para a vida. Dir-se-ia que al-Sharaa e al-Jolani, tirando a diferença de fardas, poderiam ser uma e a mesma pessoa.

«A visita ao Eliseu foi uma première, um verdadeiro teste de fogo para a transfiguração ocasional do terrorista al-Jolani no estadista e diplomata al-Sharaa.»

 

Emmanuel Macron manifestou ao visitante um certo receio pelo que julgava ser a contenção de Trump perante a situação na Síria, uma vez que ainda não reconhecera o novo regime. Preocupações infundadas, como se percebeu pouco depois através dos acontecimentos em Riade. O presidente francês prometeu a al-Sharaa envidar esforços junto não só da União Europeia mas também dos Estados Unidos para conseguir um «levantamento gradual» das sanções e para travar qualquer intenção de Washington de retirar as tropas de ocupação que mantém ilegalmente na Síria. Afinal, verifica-se que existe completa sintonia entre os dois lados do Atlântico, as sanções serão levantadas e as tropas ficarão.

Os formalistas poderão argumentar que Macron não representa a União Europeia porque talvez a desnorteada agremiação dos 27 ainda não tenha interiorizado completamente a muito favorável relação custo-benefício da estratégia golpista, terrorista e segregacionista montada para destruir Estados poderosos, como era o sírio.

As reservas formalistas, porém, não teriam qualquer razão de existir porque a democracia liberal continua a reforçar-se e a ampliar estrategicamente as capacidades para exercer um poder cada vez mais firme e discricionário através da integração dos conceitos de terrorismo, racismo e genocídio no seu património de valores. A resultante pode ser cada vez mais autoritária, mas nada que embacie o fulgor da democracia na qual nos debatemos.

Além disso, Bruxelas já dera sinais de ter aceitado sem constrangimentos a nova situação na Síria. Logo em Janeiro de 2025, um mês depois de consumado o assalto dos mercenários terroristas a Damasco, os ministros dos Negócios Estrangeiros de França e da Alemanha, então Jean-Noel Barrot e Annalena Baerbock, viajaram até à capital síria em nome da União Europeia para se avistarem com novíssimo presidente «interino».

No Eliseu, al-Sharaa pediu que a França «garanta apoio à frágil estabilidade síria» e «ajude a restaurar a ordem e a reconstruir um país devastado por 14 anos de guerra», situação de que al-Jolani foi um dos grandes responsáveis mas que também já ficou lá atrás, enterrada nos escombros e no passado, como centenas de milhares de seres humanos inocentes.

O visitante sírio acordou com Macron uma «coordenação antiterrorista», prevendo-se que os alvos dessa convergência operacional continuem a ser as indefesas comunidades civis alauitas, drusas e cristãs, vítimas de chacinas cometidas sob o pretexto do combate ao remanescente do Exército Nacional Sírio.

Al-Sharaa abordou também em Paris aquele que parece ser o seu objectivo prioritário: a «normalização das relações» com Israel. É certo que o aparelho militar sionista bombardeia diariamente território sírio, incluindo Damasco, e ocupa vastas áreas do Sul, muito para lá dos Montes Golã. E sabe-se o que acontece quando o Estado sionista ocupa territórios vizinhos. Numa primeira fase, segundo declarações oficiais, Telavive exige que esses territórios ««sejam desmilitarizados».

Nada disto, porém, desencoraja o presidente «interino» da Síria: «há negociações indirectas com Israel através de mediadores para diminuir as tensões e evitar a perda de controlo». Ao continuar a guerra diária de desgaste, Israel está apenas a fazer subir o preço de um próximo acordo, mas bem poderia poupar munições e vidas humanas, apesar de isso não representar qualquer estorvo: o «governo» de al-Sharaa/al-Jolani não poderá vir a render-se ao sionismo mais do que já se rendeu.

Seguindo o fio da história recente, compreende-se a atitude até um pouco obsessiva do senhor de Damasco em direcção ao Estado sionista. Lá no fundo, afinal, ele está-lhe grato e não esquece quem sempre o ajudou. Nos picos das operações terroristas contra a Síria, Israel disse presente quando se tornou necessário evacuar mercenários «islâmicos» feridos para hospitais de campanha montados nos Montes Golã ocupados ou mesmo para hospitais no interior de Israel.

«No Eliseu, al-Sharaa pediu que a França "garanta apoio à frágil estabilidade síria" e "ajude a restaurar a ordem e a reconstruir um país devastado por 14 anos de guerra", situação de que al-Jolani foi um dos grandes responsáveis mas que também já ficou lá atrás, enterrada nos escombros e no passado, como centenas de milhares de seres humanos inocentes.»

 

Al-Jolani/al-Sharaa tem certamente na memória, como muitos de nós, as imagens registadas durante as solidárias e carinhosas visitas hospitalares do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu aos terroristas da al-Qaida e do Isis feridos. O comportamento suscitou algumas tímidas reservas nos Estados Unidos. O Wall Street Journal contactou uma «fonte militar israelita» sobre o assunto, que se explicou assim: «Não perguntamos quem os feridos são nem pesquisamos as suas origens; logo que tenham alta mandamo-los para a fronteira para seguirem o seu caminho.» Menos pragmático foi outro «alto dirigente» político israelita citado pela imprensa norte-americana e segundo o qual «uma derrota da al-Qaida» na Síria seria «um desastre» para Israel. Felizmente para o sionismo e para a «civilização ocidental», a al-Qaida não foi derrotada.

Na perspectiva democrática, ocidental e civilizadora pode dizer-se, em relação à Síria, que tudo está bem quando acaba bem. O mesmo deve lembrar-se a propósito do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, sem esquecer a Palestina. O recurso aos grupos e regimes terroristas tem-se revelado um ovo de Colombo, uma estratégia vencedora nos propósitos inquestionáveis de consolidação da democracia liberal. A chacina de milhões de seres humanos seja na Síria, na Palestina, na Ucrânia e outros países completamente arrasados pela guerra é um preço que vale a pena pagar, como já dizia a humaníssima Madeleine Albright a propósito da matança de inocentes – 500 mil crianças – em consequência das sanções económicas contra o Iraque. Afinal, é a defesa da «nossa civilização» e dos «nossos valores» que está em causa. Como é da praxe para quem tem sempre razão, os fins justificam os meios, sem dúvida um princípio fundador da democracia liberal.

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