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O Mundial lava mais branco: capítulo 2030

A decisão sobre onde será organizado o próximo Mundial será tomada em Setembro de 2024. Até lá, há muito tempo para erguer uma oposição a que um estado colonialista, em pleno século XXI, se possa dar ao luxo de branquear a sua imagem enquanto prossegue uma política genocida.

O povo saarauí, colonizado, explorado e alvo de uma brutal repressão por parte do Reino de Marrocos, não desiste de ver concretizado o seu direito à autodeterminação
Créditos / changemaker.no

O anúncio da candidatura conjunta de Portugal, Espanha e Marrocos ao Mundial de Futebol Masculino de 2030, para além de alguma cobertura mediática e de reacções de governantes e responsáveis desportivos, não teve grande impacto. Mas devia ter tido, com o risco de que as lágrimas derramadas aquando do Mundial no Qatar não tenham qualquer substância ou humanidade.

Os atropelos de Marrocos ao povo saharaui, num caso flagrante de colonialismo e genocídio, não podem ser aceitáveis, nem serem recompensados com a organização do espectáculo maior do futebol.

Muito mais que desporto

A organização de um evento de grande alcance é sempre um cartão de visita para o país que o organiza. Quando falamos do maior evento do maior desporto mundial, o impacto é enorme. Nada disto é novo. No caso dos Jogos Olímpicos [JO], tirando os inaugurais sediados em Atenas como tributo às antigas olimpíadas, os três jogos seguintes foram realizados integrados nas «exposições mundiais» (eventos como a Expo 98).

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O futebol, o Mundial e o nosso dever de intervenção

Contra aqueles que acreditam que os problemas do Mundo se resolvem com o cancelamento dos mesmos nas agendas pessoais, o envolvimento e a intervenção nos acontecimentos como uma resposta aos problemas que estes podem estar a gerar. Uma oportunidade para pensar no que é o futebol e onde somos colocados pela realização deste Mundial no Qatar.

CréditosWalter Bieri / EPA

O que é o futebol

Desde sempre que, em quase tudo no mundo, se pretendeu ter a capacidade de dividir as coisas em dois, polarizando as escolhas como adesões inquestionáveis a um dos lados da contenda. Ao longo da sua história, o futebol foi apenas mais uma dessas coisas do mundo que se ama ou se odeia. Muitos e muitas dos apaixonados pelo desporto encaram o futebol como o irmão velho e rico que parece encostar-se ao seu privilégio para se impor sem qualquer preocupação com os restantes. O futebol enquanto ópio do povo também é uma ideia muito partilhada por uma determinada elite, tendente apenas a entender as dinâmicas negativas criadas por um acontecimento que convoca paixões e multidões onde quer que ocorra. Por outro lado, muitos daqueles que se embrenham no acontecimento futebolístico também o tendem a fazer de forma absoluta, incapazes de o questionar ou de analisar as diferentes escalas em que as coisas do futebol, como as de todas as outras coisas da vida, se podem dividir.

Gostar de futebol não é um contrato exclusivo com uma construção ilusória a partir de um desporto que tende a embrenhar-se numa dinâmica de dinheiro e poder. É, na verdade, muito do seu contrário. Porque apesar de todos os movimentos que se podem gerar em volta do terreno de jogo, o futebol continua a ser muito semelhante àquilo que sempre foi. Um período de tempo predeterminado, onde duas equipas de número igual de elementos tentam vencer a outra, dentro de um quadro de regras simples aceites pelas duas partes. Neste intervalo de noventa minutos, podemos assistir a todas as grandes dinâmicas da vida. A importância da preparação e do planeamento. A força da organização coletiva. A inebriante esperança de podermos ser melhores do que qualquer rival que nos desafie. A capacidade de transformar fraquezas em forças. A emoção de um objetivo alcançado. O drama de uma derrota inesperada. Tudo dentro desse quadro controlado de quem sabe que, amanhã, o nosso pensamento já estará a focar-se no desafio seguinte.

Mas o futebol é também um meio de transformação social. Dos jogadores, que chegam quase todos de classes menos privilegiadas e, através do seu talento e do seu trabalho, conquistam uma ascensão social inimaginável em qualquer outra área profissional. Das comunidades, que se organizam em redor de um clube e crescem e se desenvolvem como exemplos de cooperação e sucesso. Dos adeptos, que aí encontram maneiras de expressar as suas raivas e as suas esperanças, concentradas numa prática de afirmação que lhes é impedida em muitas outras áreas da sua vida. E de tantos, tantos outros, que acabam por encontrar no futebol uma maneira de explicar o seu mundo através de uma língua franca que lhes abre portas em qualquer labirinto. Tudo isto é o futebol, o futebol que apaixona, o que futebol que se reinventa, o futebol ao qual continuamos a aspirar.


Onde nos coloca este Mundial

A realização do Mundial no Qatar coloca-nos uma série de questões que são muito relevantes no quadro do mundo em que vivemos no ano de 2022. A ausência de transparência na atribuição deste evento, a quebra da tradição no período do ano em que ocorre, o posicionamento do país que o recebe na defesa dos direitos humanos, largamente deficitário em relação aos padrões mínimos exigíveis, os condicionamentos impostos a todos aqueles que visitem o país, as opções na defesa do planeta perante as ameaças das alterações climáticas e outras tantas notícias que chegam do Qatar são pontos que merecem preocupação e análise. Os Mundiais de futebol têm um historial de debate em relação aos países que os organizam. Assim foi em Itália em 1934, na Argentina em 1978 ou na Rússia em 2018, apenas para citar os casos mais paradigmáticos e comparáveis com o que vai acontecer no Qatar. Importante que em todos esses casos seja a memória do que estava mal em cada um desses países aquela que perdura na mente da maioria das pessoas.

Parafraseando Jorge Valdano, o Mundial do Qatar pode ser uma oportunidade. Aliás, a mesma oportunidade que o futebol sempre nos ofereceu. Para reconhecer o mundo para além do limite do nosso alcance e entendimento, para nos colocar perante o desconhecido, mas também para debater, discutir e denunciar tudo aquilo que nos vários países que disputam esta prova é digno de ser transformado. O futebol sempre foi e sempre será isso mesmo. A chamada de atenção para algo que merece ser observado. Aliás, o Qatar está já a passar por isso mesmo. A forma como várias notícias e campanhas têm sido desenvolvidas – acompanho de mais perto aquelas realizadas pela Amnistia Internacional e a Human Rights Watch, mas existem mais organizações com trabalhos bastante meritórios, tal como vários jornalistas – já obrigou o país a modificar comportamentos que impedem que a situação dos trabalhadores seja tão má como já foi. Será preciso ir mais longe – o foco nunca deve ser apenas e só aquilo que é afetado pelo Mundial, mas em todos os cidadãos e habitantes, nas suas diferentes profissões e posicionamentos, merecem receber a nossa atenção e palavra. De maneira a que o Mundial seja uma janela onde a voz de quem tem algo a dizer encontre o palco que procura.

Os tempos que vivemos são particularmente tensos. Mas o esforço que fazemos terá de ser o de manter a capacidade para identificar as melhores maneiras de intervir em cada espaço. Compreendo perfeitamente quem prefere “cancelar”, nas suas agendas pessoais, a existência deste Mundial. No entanto, não alinho na opção de tapar os olhos e os ouvidos perante as injustiças do mundo. Bem pelo contrário. O Mundial será uma oportunidade para continuarmos atentos ao que acontece no mundo. Enquanto, no terreno de jogo, os melhores jogadores do mundo tentarão uma vez mais, através da expressão do seu talento, da sua inteligência e do seu trabalho, transformar o mundo a cada toque na bola. Poderão considerar isso uma utopia. Mas acredito ser um pouco mais do que isso. Acredito ser a minha obrigação de me envolver nas coisas para que delas se aproveite algo mais, através da observação e da análise. Daí que se entre, a partir de agora, em modo-Mundial, aqui por casa. Com a mesma dedicação de sempre.

Artigo publicado numa primeira versão no site luiscristovao.com 

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Durante um mês, um país tem a capacidade de ser o centro do mundo. Entre centenas de milhares de visitantes e horas intermináveis de transmissões televisivas, todos os olhos são postos na cultura, nas peculiaridades ou nas infra-estruturas dos anfitriões. A partir daqui, uma máquina entra em movimento para manufacturar uma imagem artificial do país. O tradicional exacerbado, o moderno feito corriqueiro, o cidadão torna-se embaixador e o quotidiano é assunto de Estado. Na resposta a um inquérito realizado durante o Euro 2004, 77% dos jornalistas inquiridos disseram que a opinião deles sobre Portugal tinha melhorado durante a cobertura do evento 1.

Entre cerimónias de abertura e encerramento, uma caravela quinhentista no Porto deu lugar a uma «caravela futurista» em Lisboa, em cima da qual uma luso-canadiana cantava enquanto pauliteiros de Miranda faziam a sua rotina, um cenário visto por 153 milhões de pessoas.

Todo este processo é natural. Todo o organizador quer passar uma boa imagem e associar a grandeza do evento à do próprio país. A questão não recai na ambição de quem procura organizar um Mundial, mas no processo de selecção. As edições que ao longo da história se tornaram infames devido ao lugar onde foram realizadas, como os JO de 1936 em Berlim, o Mundial da Argentina em 1978 e, mais recentemente, o Mundial do Qatar, são em última análise responsabilidade dos júris que lhes atribuíram a organização, e dos organismos desportivos e políticos que anuíram as candidaturas.

Um boicote efectivo ao Mundial no Qatar estava condenado a partir do momento em que ele só começou já a candidatura tinha ganho, os estádios estavam construídos (e os operários soterrados) e as equipas apuradas. Depois de alegadamente 880 milhões de euros terem entrado na FIFA através de subornos da Al Jazeera para o Qatar vencer a nomeação em 2010, de 220 mil milhões de dólares terem sido investidos na construção, com o primeiro estádio construído em 2019 e outros tantos milhares de milhões gastos na produção de bolas, apps, cromos, músicas, design e outra produção, nunca um movimento de boicote que começou a tomar destaque meses antes iria conseguir forçar a mudança do evento.

Apesar do boicote não ter sido apelado por organismos do Estado e do futebol português, não se pode deixar de salientar as reacções que tiveram relativamente à realização do evento no Qatar. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que o Qatar não respeitava os direitos humanos e lamentou as mortes durante a construção dos estádios. Já o primeiro-ministro, António Costa, disse que iria ao país apoiar a selecção mas que não iria apoiar «o regime do Catar, a violação dos direitos humanos no Catar e a discriminação das mulheres no Catar». Fernando Gomes, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, em entrevista à Marca também mostrou desagrado perante os atropelos aos direitos humanos e que se devia apoiar os trabalhadores migrantes e as suas famílias. Declarações como estas, por quem as fez, não podem ser espuma dos dias e têm que vincar os seus protagonistas, sobretudo aquando da candidatura à realização de um Mundial.

Porque se a responsabilidade de onde se organiza um evento desta natureza recai em última instância sobre o júri que vota, a partir da inovação do Euro 2000, com a organização partilhada entre Bélgica e Holanda, a partilha do protagonismo por diferentes países trouxe uma nova dinâmica e uma nova responsabilidade. Para além do prestígio que se espera receber com a prova, é salientado os laços entre os países, com esses laços a serem um dos factores que «vende» a candidatura. É essa a imagem «fraterna» que se quer passar no Mundial de 2026, organizado por Canadá, EUA e México, evocando a unidade do mercado comum criado em 1994 com a assinatura da NAFTA. Foi também o laço e a unidade europeia que presidiu à ideia de incluir a Ucrânia como parceira da candidatura ibérica ao Mundial de 2030. Nascida como mais uma campanha de relações públicas na guerra com a Rússia, apesar de não haver decisão formal, não parece que a candidatura ucraniana avance, até pela imposição da lógica dos factos de contar para erguer e organizar um evento de larga escala durante o estado de guerra.

Um holofote sobre Marrocos é uma sombra sobre o Sahara Ocidental

Eis que surge Marrocos. País que desde 1994 se tem candidatado a receber o Mundial de futebol, os seus líderes encontraram nos países ibéricos os parceiros para finalmente poder cumprir a sua ambição de ter os olhos do mundo postos na sua recriação do país. Marrocos não é um estado pária, mas a sua ocupação do Sahara Ocidental levou a relações tensas no plano internacional. Entre 1984 e 2017, Marrocos não fez parte da União Africana, a maior organização continental de África, sendo que o Sahara Ocidental também é Estado-membro. Presentemente, 45 Estados reconhecem a independência do Sahara Ocidental, que Marrocos não reconhece.

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Reportagem

Sahara Ocidental. Esquecidos no deserto

Numa altura em que os saharauis, cansados de esperar pelo direito internacional e as promessas das Nações Unidas, voltam a pegar em armas, recordo a última vez que estive com um povo deixado no meio do deserto a quem roubaram a terra.

Créditos / Jorge Nogueira

São pedras a perder de vista. Lápides irregulares espalham-se sobre a areia por centenas de metros. O cemitério domina o campo de refugiados de Smara. As tendas e as casas de cor da terra estão lá em baixo, ocupam o horizonte, confundem-se com o deserto.

Cada pedra assinala alguém que morreu. A maioria dos habitantes fugiu aos bombardeamentos marroquinos em 1976, mas muitos já nasceram, viveram e terminaram aqui para todo o sempre. São a prova que o conflito do Sahara Ocidental dura há tempo de mais.

O motorista saharaui que nos acompanha, Deimi, aproveita para se prostrar junto ao lugar onde repousa um familiar. A morte é dura em todo o lado, aqui parece mais desesperada.

«Os velhos quando sentem que vão morrer pedem-nos para ser enterrados nos territórios libertados. Ninguém quer morrer aqui», diz-nos Sidahmed Ahmedbaceid (Sidi), o guia.

As pedras contam as histórias das pessoas que morreram no exílio. Uma pedra se for um homem, três pedras (junto à cabeça, barriga e pés) se for uma mulher, como Fnaina Chei Ahmed, que morreu a 1 de Março de 2010.

Quando morrem, os corpos são perfumados, embrulhados num lençol e deitados à terra do deserto. Familiares e amigos oferecem cabras e comida. Toda a gente pode comer em honra do morto. A vida e a morte neste lugar inóspito são assuntos de toda a comunidade. Se voltarem à sua pátria, os saharauis vão levar os mortos consigo. Até lá vai crescendo este cemitério das areias.

«No ano passado todo aquele lado não estava ocupado», garante Sidi.

A primeira vez que estive nos campos de refugiados na fronteira entre a Argélia e o Sahara Ocidental, as pessoas acreditavam que o referendo se realizaria no ano seguinte. Marquei com algumas famílias fazer a reportagem do regresso às localidades de onde fugiram nos territórios ocupados por Marrocos. Tinha a intenção de testemunhar a marcha de mais de 100 mil pessoas a atravessarem o deserto com os seus parcos haveres em busca da terra prometida. Passaram dez anos, a diplomacia e a missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara (Minurso) não resolveram o que a guerra deixou ficar. Esquecidos no meio do deserto continuaram a estar dezenas de milhar de pessoas que há 45 anos esperam que as deixem viver na sua terra.

Ao longo da viagem de quatro horas no Boeing 727, da Air Argel, que nos levou de Sevilha ao Aeroporto Militar de Tindouf, alguns passageiros transformaram-se enquanto o avião percorria os céus. As jovens saharauis que estavam vestidas de uma forma sensual, à ocidental, envergaram a partir do meio da viagem as vestes tradicionais das mulheres do deserto. Parecia que tinham conseguido detectar no ar, a milhares de metros de altitude, uma fronteira cultural entre a Europa e o Norte de África. Na escala no Aeroporto Boumedienne, em Argel, as calças justas, os decotes, e os cabelos à vista deram lugar aos tecidos coloridos da melfa, com as caras semi-tapadas, a que se somaram as luvas e os óculos escuros quando desembarcamos. Ao preceito religioso acrescenta-se a ditadura da moda. As mulheres do Sahara Ocidental têm como ideal de beleza não estarem queimadas pelo Sol.

A cidade militar argelina tem história na vida das tribos do deserto. Tindouf era tradicionalmente um oásis nas rotas das caravanas, lugar de encontro dos nómadas das tribos. Berbéres e tuaregues que não respeitavam as fronteiras traçadas a régua e esquadro pelas potências coloniais europeias. De Smara a Nema, de Ayoun a Nouakchott, as caras parecem as mesmas. As várias tribos, que falam o dialecto hassania, partilham hábitos, caminhos e culturas que as fronteiras não conseguiam impedir. Têm autoridades próprias e formas de política comum. Não é por acaso que quando a França coloniza a Argélia das primeiras medidas que toma para controlar as populações é impedir o acesso livre dos nómadas ao oásis de Tindouf.

Depois de passar os controlos do exército à volta da cidade militar, a estrada avança directamente para Smara, o maior dos campos de refugiados dos saharauis que dista pouco mais de 20 quilómetros. Uma grande mudança: até há pouco tempo todo o trajecto era feito literalmente pela areia do deserto, neste momento, só o longínquo campo de Dakhla, a cerca de 150 quilómetros, ainda não está completamente ligado por estrada.

Mais de 150 mil pessoas obrigadas a viver no deserto

O número de refugiados que vive nos campos de El Aiun, Dakhla, Smara, Rabouni e 27 de Fevereiro é um segredo de Estado. A Polisário fala, informalmente, em 150 mil pessoas, o triplo daquelas que fugiram em 1976 aos ataques aéreos marroquinos com bombas de fósforo e napalm. Os marroquinos garantem que aqui vivem, «raptadas» pelos militares argelinos e pelos milicianos da Frente Polisário, menos de 70 mil pessoas.

De qualquer forma, estamos perante um prodígio de sobrevivência humana, dezenas de milhar de pessoas habitam uma das zonas mais inóspitas do planeta, com temperaturas escaldantes. Aqui só há duas estações: o Inverno e o Verão. E este ano, devido às mudanças climatéricas, quase não choveu. A vida tem de respeitar a dureza do clima. Só é possível trabalhar de manhã ou depois das 18h. O resto do tempo, o sol queima sem piedade quem se aventura.

Mohamed Fadhar Labed estudou três anos em Cuba e agora aprende inglês em Smara, em aulas dadas por três professoras voluntárias de uma organização não governamental (ONG) dos Estados Unidos da América. Por vezes serve de guia às delegações estrangeiras, levando-as pelos arruamentos de terra do campo. Tinha sete anos, em 1976, lembra-se do dia em que teve de fugir com a família da sua aldeia.

«Ficou marcado na minha cabeça, a minha mãe tinha tido uma criança. Em resultado da fuga e dos bombardeamentos a bebé não sobreviveu», contou.

A população da aldeia escondeu-se até que as camionetas e os carros argelinos, conduzidos pela Polisário, empreenderam este grande êxodo para Tindouf.

Vamos para os arredores do acampamento de Smara para casa do tio de Fadhar Labed. Até há dois anos, viviam no centro do acampamento, as chuvas destruíram-lhes a casa. As construções são feitas de tijolos de areia cozida ao sol, que não resistem às águas. Hoje, estão numa zona mais alta. O tio é um homem mais velho, que quando falei com ele, servia o exército há 25 anos. Viu muitos amigos morrerem em combate. Afirma estar cansado do cessar-fogo de 1991. Diz que não teme os marroquinos – «não têm coragem». O povo do deserto está habituado a combater.

«O chá verde e o muito açúcar escorrem de copo em copo como se fosse mel. Diz a tradição que o primeiro chá é amargo como a vida, o segundo forte como o amor e o terceiro suave como a morte.»

Quando pergunto de que tribo é, recusa-se a responder. Diz que isso hoje não tem importância nenhuma, que o Sahara Ocidental é uma nação democrática que ultrapassou as identidades tribais. Tal como o sobrinho, é um rguibet, tribo guerreira com grande influência no Sahara Ocidental, Marrocos, Argélia e Mauritânia. Faz o chá. A cerimónia do chá é tão omnipresente nas reportagens sobre vida dos saharauis como na realidade. As mãos ágeis vão deitando o líquido como se de um exercício de ilusionismo se tratasse. O chá verde e o muito açúcar escorrem de copo em copo como se fosse mel. Diz a tradição que o primeiro chá é amargo como a vida, o segundo forte como o amor e o terceiro suave como a morte.

Tudo aqui é tradição. O pai andou no deserto. O avô andou no deserto. O avô do avô andou no deserto. O velho combatente diz que todos – desde que a memória dos seus existe – viveram a cruzar as dunas de areias com caravanas de camelos. O segredo das estrelas, das sombras e das árvores que permitem os nómadas conhecerem os caminhos do deserto são passados de pai para filho. Apesar de viverem fechados num campo, em alguns meses do ano leva os filhos para as zonas libertadas no interior do deserto para que aprendam a continuar a dura vida dos nómadas.

É por isso que quando vamos visitar uma base militar, a três horas de Rabouni, parece normal que o motorista do nosso jipe se oriente no deserto como se circulasse numa cidade com ruas. Vira com a decisão de quem conhece todas as pedras e caminhos. Cruzamo-nos com uma caravana com cerca de 50 camelos. Vêm de Meharrize, uma «terra libertada» no Sahara Ocidental. A seca obrigou-os a procurar pastagens junto dos acampamentos. Os dois homens que conduzem os animais fizeram a longa viagem alimentando-se sobretudo de leite de camelo. Provavelmente, serão obrigados a vender um ou dois animais para comprar comida para os outros sobreviverem. Voltarão à sua terra assim que chover. Antes de nos irmos embora, o nosso guia oferece uma garrafa de água de litro e meio e um sumo ao homem da caravana. Aqui partilha-se tudo.

Fartos de esperar numa paz podre

No meio do deserto está a base militar onde todos os jovens dos campos recebem formação militar durante um ano. Os jovens de cabelo rapado marcham na parada sob um sol mortal. A instrução militar não será fácil nesta espécie de caldeirão. Assistimos às aulas em que os recrutas montam e desmontam as AK 47 e aprendem a conhecer os diferentes efeitos das granadas ofensivas e defensivas, e a evitarem minas e outros explosivos.

Somos recebidos por três combatentes. No exército saharaui não há divisas nem postos. Cada combatente tem a sua tarefa. Como simples soldado até comandante de batalhão. A conversa é bastante limitada. A perguntas sobre as manobras militares marroquinas junto ao muro e sobre questões políticas, os nossos interlocutores remetem-nos para o Ministério da Defesa. Estranhamente, o diálogo é bastante aberto sobre o cessar-fogo estabelecido em 1991 com Marrocos. Um dos comandantes diz-nos directamente: «estamos fartos de esperar». Acrescentando que, em sua opinião, a guerra lhe parece a melhor solução. «Em dez dias resolvíamos o problema», garante.

Quando contraponho que não basta pensar que se tem razão, que a desproporção de forças no terreno é esmagadora – Marrocos tem mais de 200 mil militares, metade dos quais no Sahara Ocidental, contra 15 a 20 mil combatentes saharauis –, o mesmo comandante afirma que «a diferença de números e de tecnologia sempre foi enorme, mas a diferença ainda maior é na coragem».

Para Bullema Abdel, o combatente responsável pela Saúde na base, «os marroquinos não sabem porque razão estão a combater, nós sabemos que lutamos pela nossa terra».

O conflito no Sahara Ocidental arrasta-se desde 1975. A potência colonizadora aceitou fazer um referendo sobre o estatuto da província. Em Outubro do mesmo ano, o rei Hassan II de Marrocos organizou a chamada «marcha verde»: 350 mil marroquinos avançaram sobre o Sahara. A Espanha capitulou e aceitou entregar o território a Marrocos e à Mauritânia. Os saharauis, organizados pela Frente Polisário, fundada em 1973, contestaram a anexação. A seu favor tinham a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1972 que afirmava «o direito do povo saharaui à autodeterminação». O Tribunal Internacional de Haia dá, a 16 de Outubro de 1975, parcialmente razão aos argumentos marroquinos das ligações históricas das tribos nómadas com o xerifado marroquino, mas argumenta com o princípio do direito internacional e da inviolabilidade das fronteiras coloniais, para concluir também pelo «direito do povo do Sahara Ocidental à auto-determinação». Depois da ocupação militar marroquina, as populações nómadas são bombardeadas e mais de 50 mil pessoas refugiam-se em campos de refugiados do deserto argelino. No terreno militar os combatentes saharauis, usando tácticas de guerrilha e aproveitando-se da mobilidade dos seus veículos Land Rover, infligem pesadas baixas às tropas marroquinas e mauritanas. Atacam cidades em Marrocos e chegam duas vezes à capital da Mauritânia. Numa dessas operações, o primeiro líder da Polisário, Mustafa Sayed Ouali, cai em combate. Na sequência da guerra, o governo de Nouakchott é derrubado e acorda o fim das hostilidades com a Polisário, entregando os territórios sobre ocupação mauritana. Marrocos anexa estes territórios. As tropas de Rabat constroem a partir de Agosto de 1980 um muro fortificado com mais de 2800 quilómetros, guardado por 80 mil soldados, que isola o chamado triângulo útil do Sahara: as principais cidades, as zonas de exploração das grandes reservas de fosfatos e a costa muito rica em peixe. A guerra de guerrilha torna-se mais difícil.

Do ponto de vista diplomático, a ocupação do Sahara Ocidental não foi aceite por quase nenhum país e a República Árabe Saharaui Democrática é membro da OUA (Organização de Unidade Africana) e foi reconhecida por 70 países. Em 1991, por pressão das Nações Unidas, instaurou-se o cessar-fogo. Marrocos, Polisário e Argélia comprometem-se a iniciar um processo de paz que leve à realização de um referendo, organizado pela ONU, para decidir se o território fica no Reino de Marrocos ou será independente. O corpo eleitoral que podia participar no referendo foi alvo de uma verdadeira batalha. Ficou estabelecido que seria com base nas pessoas que viviam no território, e seus descendentes, recenseados em 1972 pelas autoridades espanholas. Por pressão marroquina, foram incluídas tribos do sahara marroquino. Apesar desse acordo, depois do referendo de Timor Leste, Marrocos voltou atrás e recusou discutir a soberania do território. O novo rei de Marrocos, Mohammed VI, propõe agora um estatuto de autonomia para o território e recusa qualquer hipótese de referendar a autodeterminação.

As imagens que testemunham a luta

Mohamed Mouloud viveu todos estes acontecimentos numa posição particular: com uma máquina fotográfica numa mão e uma kalashnikov na outra. Para provar o que diz, mostra-nos a sua fotografia da época. As fotos do passado são de mulheres vestidas à soldado, jovens de cabelo comprido, mais parecidos com os revolucionários cubanos do que com o aspecto actual dos saharauis.

A história de Mouloud começa cedo. Depois de uma manifestação pela independência, reprimida pelos marroquinos, em Dezembro de 1975, deixou a família toda para trás e fugiu para as zonas controladas pela Polisário. Deram-lhe, a ele e a mais dois, a tarefa muito especial de fazer reportagens da frente de combate. Aprenderam a fotografar sem nenhum curso.

«Tirávamos muitas, alguma havia de sair bem», diz. São deles as fotos iconográficas do primeiro líder da Polisário, Mustafa Sayed Ouali, pouco antes de morrer, que aparecem em muros e pósteres por todo o lado.

«Parece a foto de Che tirada por Korda, era um homem muito carismático», diz Moulouda, lembrando que «fazer mais de dois mil quilómetros no deserto, para atacar duas vezes a capital da Mauritânia não é para qualquer um».

O fotógrafo recorda a forma como as pessoas o escutavam com 28 anos. «Dizia-nos que só seríamos livres quando os marroquinos e os mauritanos fossem livres, quando toda a gente o fosse».

A tentar viver

Mouloud deixou a frente de combate. Tem um filho no Ministério da Informação e outro como repórter do exército. Abriu três lojas no acampamento 27 de Fevereiro. Uma de recordações, outra de comida e bebidas e a terceira de telemóveis.

Quem não vai ao Sahara há dez anos nota agora imensas diferenças. Os campos têm lojas e comércios privados. Todos os rapazes e raparigas exibem telemóveis. Nas ruas, para além dos jipes das ONG e do governo, vêem-se muitos Mercedes. Segundo o nosso guia, Sidi, estes carros custam aqui 2.500 euros.

As famílias que trabalham fora ajudam nessas novas despesas e consumos. Os donos das lojas são muito reservados. Falámos com um que nos disse que abriu o comércio há cinco anos e que «dá para ocupar o tempo». Nada mais. O silêncio é a regra do negócio.

Andando pelos caminhos de Smara pode-se ir a um ciber-café, sem café, comprar águas, cabeça de camelo, roupa, telemóveis, cortar o cabelo – quando o barbeiro não considera que temos areia a mais na cabeça –, e até relógios de parede. Os refugiados fartaram-se de esperar e estão a tentar viver.

Reportagem escrita, com base em várias viagens feitas ao Sahara Ocidental há mais de dez anos.

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Que não existam dúvidas que a ambição de Marrocos em organizar um evento desta magnitude se prende com a normalização da ocupação sobre o povo saharaui. Organizações como as Nações Unidas ou a União Europeia defendem o direito à autodeterminação do Sahara Ocidental e países como Brasil, Austrália ou Suécia podem ratificar votos já aprovados na legislatura para reconhecer a independência. A procura de normalizar a ocupação é um dos eixos centrais da política externa marroquina, daí o pedido de voltar a se juntar à União Africana, a capacidade de ter conseguido que 39 países tivessem revogado o reconhecimento da independência do Sahara Ocidental, e ainda no ano passado, o primeiro-ministro espanhol socialista Pedro Sánchez conseguiu capitular a posição espanhola relativo ao Sahara Ocidental, apoiando o «plano» marroquino de autonomia para o Sahara Ocidental, ou seja, reconhecer a ocupação e genocídio dos saharáui.

Já em Portugal, António Costa, no 47.º Congresso da UEFA, disse que a candidatura conjunta «une, pelo desporto e os seus melhores valores, dois continentes: Europa e África», enquanto Fernando Gomes afirmou que «a candidatura não é só de Portugal, Espanha e Marrocos, é nossa, é de toda a Europa unida». Governo e FPF tecem assim uma imagem de uma proximidade, mais do que geográfica, de valores, entre os três países, alargando até o espectro de uma unidade entre o continente europeu e africano. As sistemáticas violações do direito internacional e direitos humanos de Marrocos sobre os saharaui são assim varridas para debaixo do tapete. Longe estão as preocupações invocadas sobre o Qatar, sob a perspectiva de voltar a ter pauliteiros de Miranda em relvado.

Entretanto, os relatórios de diversas organizações internacionais denunciam o autoritarismo e atropelos do Marrocos. A Human Rights Watch, a Amnistia Internacional e até o insuspeito Departamento de Estado dos EUA apontam a falta de transparência nos órgãos judiciais, abuso policial, tortura, censura, limites à liberdade de reunião e associação, discriminação contra mulheres e comunidade LGBT e políticas contra migrantes e refugiados.

«As sistemáticas violações do direito internacional e direitos humanos de Marrocos sobre os saharaui são assim varridas para debaixo do tapete. Longe estão as preocupações invocadas sobre o Qatar, sob a perspectiva de voltar a ter pauliteiros de Miranda em relvado.»

A violência sexual é uma estratégia comum das autoridades marroquinas para intimidar mulheres saharáuis. Em Março do ano passado, Mohamed Lamine Haddi foi brutalmente agredido na prisão, depois de um tribunal fantoche, por querer protestar as condições de cárcere e a recusa de acesso a medicamentos. Em Junho, 37 migrantes foram mortos e 77 desaparecidos a tentar entrar em Melilla, tendo sido recebidos com força letal por parte de forças de segurança marroquinas. Também durante o ano passado, o Governo marroquino promoveu 32 processos-crime contra jornalistas e suspendeu seis jornais. Até mesmo o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos foi impedido pela sétima vez consecutiva de visitar os territórios ocupados. 

A decisão sobre onde será organizado o próximo Mundial será tomada em Setembro de 2024. Até lá, há muito tempo para erguer uma oposição a que um estado colonialista, em pleno século XXI, se possa dar ao luxo de branquear a sua imagem enquanto prossegue uma política genocida. Não há países sem os seus telhados de vidro, mas se assumirmos que o relativismo moral pode imperar é caminho aberto para consolidar uma visão do desporto onde apenas o sucesso económico importa: a consagração do futebol negócio.

A Associação de Amizade Portugal - Sahara Ocidental (AAPSO) já enviou uma carta aberta endereçada ao presidente da FPF, a 13 de Março, para que reconsidere a sua posição. A 29 do mesmo mês, foi recebida pela FPF onde teve a oportunidade de entregar documentação que demonstra os atropelos do regime marroquino. Porém, é necessário ir mais longe, tornar tema de debate público que papel é que queremos que Portugal tenha no desporto e nas relações internacionais: A promoção do desporto para todos e amizade com todos os povos ou a venda da dignidade da vida humana em troco de cifrões e protagonismo político, mesmo que atropelando povos mártires no processo?

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