O anúncio da candidatura conjunta de Portugal, Espanha e Marrocos ao Mundial de Futebol Masculino de 2030, para além de alguma cobertura mediática e de reacções de governantes e responsáveis desportivos, não teve grande impacto. Mas devia ter tido, com o risco de que as lágrimas derramadas aquando do Mundial no Qatar não tenham qualquer substância ou humanidade.
Os atropelos de Marrocos ao povo saharaui, num caso flagrante de colonialismo e genocídio, não podem ser aceitáveis, nem serem recompensados com a organização do espectáculo maior do futebol.
Muito mais que desporto
A organização de um evento de grande alcance é sempre um cartão de visita para o país que o organiza. Quando falamos do maior evento do maior desporto mundial, o impacto é enorme. Nada disto é novo. No caso dos Jogos Olímpicos [JO], tirando os inaugurais sediados em Atenas como tributo às antigas olimpíadas, os três jogos seguintes foram realizados integrados nas «exposições mundiais» (eventos como a Expo 98).
Durante um mês, um país tem a capacidade de ser o centro do mundo. Entre centenas de milhares de visitantes e horas intermináveis de transmissões televisivas, todos os olhos são postos na cultura, nas peculiaridades ou nas infra-estruturas dos anfitriões. A partir daqui, uma máquina entra em movimento para manufacturar uma imagem artificial do país. O tradicional exacerbado, o moderno feito corriqueiro, o cidadão torna-se embaixador e o quotidiano é assunto de Estado. Na resposta a um inquérito realizado durante o Euro 2004, 77% dos jornalistas inquiridos disseram que a opinião deles sobre Portugal tinha melhorado durante a cobertura do evento [fn]Evaluation of the cognitive image of a country/destination by the media during the coverage of mega-events: the case of UEFA EURO 2004TM in Portugal[/fn].
Entre cerimónias de abertura e encerramento, uma caravela quinhentista no Porto deu lugar a uma «caravela futurista» em Lisboa, em cima da qual uma luso-canadiana cantava enquanto pauliteiros de Miranda faziam a sua rotina, um cenário visto por 153 milhões de pessoas.
Todo este processo é natural. Todo o organizador quer passar uma boa imagem e associar a grandeza do evento à do próprio país. A questão não recai na ambição de quem procura organizar um Mundial, mas no processo de selecção. As edições que ao longo da história se tornaram infames devido ao lugar onde foram realizadas, como os JO de 1936 em Berlim, o Mundial da Argentina em 1978 e, mais recentemente, o Mundial do Qatar, são em última análise responsabilidade dos júris que lhes atribuíram a organização, e dos organismos desportivos e políticos que anuíram as candidaturas.
Um boicote efectivo ao Mundial no Qatar estava condenado a partir do momento em que ele só começou já a candidatura tinha ganho, os estádios estavam construídos (e os operários soterrados) e as equipas apuradas. Depois de alegadamente 880 milhões de euros terem entrado na FIFA através de subornos da Al Jazeera para o Qatar vencer a nomeação em 2010, de 220 mil milhões de dólares terem sido investidos na construção, com o primeiro estádio construído em 2019 e outros tantos milhares de milhões gastos na produção de bolas, apps, cromos, músicas, design e outra produção, nunca um movimento de boicote que começou a tomar destaque meses antes iria conseguir forçar a mudança do evento.
Apesar do boicote não ter sido apelado por organismos do Estado e do futebol português, não se pode deixar de salientar as reacções que tiveram relativamente à realização do evento no Qatar. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que o Qatar não respeitava os direitos humanos e lamentou as mortes durante a construção dos estádios. Já o primeiro-ministro, António Costa, disse que iria ao país apoiar a selecção mas que não iria apoiar «o regime do Catar, a violação dos direitos humanos no Catar e a discriminação das mulheres no Catar». Fernando Gomes, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, em entrevista à Marca também mostrou desagrado perante os atropelos aos direitos humanos e que se devia apoiar os trabalhadores migrantes e as suas famílias. Declarações como estas, por quem as fez, não podem ser espuma dos dias e têm que vincar os seus protagonistas, sobretudo aquando da candidatura à realização de um Mundial.
Porque se a responsabilidade de onde se organiza um evento desta natureza recai em última instância sobre o júri que vota, a partir da inovação do Euro 2000, com a organização partilhada entre Bélgica e Holanda, a partilha do protagonismo por diferentes países trouxe uma nova dinâmica e uma nova responsabilidade. Para além do prestígio que se espera receber com a prova, é salientado os laços entre os países, com esses laços a serem um dos factores que «vende» a candidatura. É essa a imagem «fraterna» que se quer passar no Mundial de 2026, organizado por Canadá, EUA e México, evocando a unidade do mercado comum criado em 1994 com a assinatura da NAFTA. Foi também o laço e a unidade europeia que presidiu à ideia de incluir a Ucrânia como parceira da candidatura ibérica ao Mundial de 2030. Nascida como mais uma campanha de relações públicas na guerra com a Rússia, apesar de não haver decisão formal, não parece que a candidatura ucraniana avance, até pela imposição da lógica dos factos de contar para erguer e organizar um evento de larga escala durante o estado de guerra.
Um holofote sobre Marrocos é uma sombra sobre o Sahara Ocidental
Eis que surge Marrocos. País que desde 1994 se tem candidatado a receber o Mundial de futebol, os seus líderes encontraram nos países ibéricos os parceiros para finalmente poder cumprir a sua ambição de ter os olhos do mundo postos na sua recriação do país. Marrocos não é um estado pária, mas a sua ocupação do Sahara Ocidental levou a relações tensas no plano internacional. Entre 1984 e 2017, Marrocos não fez parte da União Africana, a maior organização continental de África, sendo que o Sahara Ocidental também é Estado-membro. Presentemente, 45 Estados reconhecem a independência do Sahara Ocidental, que Marrocos não reconhece.
Que não existam dúvidas que a ambição de Marrocos em organizar um evento desta magnitude se prende com a normalização da ocupação sobre o povo saharaui. Organizações como as Nações Unidas ou a União Europeia defendem o direito à autodeterminação do Sahara Ocidental e países como Brasil, Austrália ou Suécia podem ratificar votos já aprovados na legislatura para reconhecer a independência. A procura de normalizar a ocupação é um dos eixos centrais da política externa marroquina, daí o pedido de voltar a se juntar à União Africana, a capacidade de ter conseguido que 39 países tivessem revogado o reconhecimento da independência do Sahara Ocidental, e ainda no ano passado, o primeiro-ministro espanhol socialista Pedro Sánchez conseguiu capitular a posição espanhola relativo ao Sahara Ocidental, apoiando o «plano» marroquino de autonomia para o Sahara Ocidental, ou seja, reconhecer a ocupação e genocídio dos saharáui.
Já em Portugal, António Costa, no 47.º Congresso da UEFA, disse que a candidatura conjunta «une, pelo desporto e os seus melhores valores, dois continentes: Europa e África», enquanto Fernando Gomes afirmou que «a candidatura não é só de Portugal, Espanha e Marrocos, é nossa, é de toda a Europa unida». Governo e FPF tecem assim uma imagem de uma proximidade, mais do que geográfica, de valores, entre os três países, alargando até o espectro de uma unidade entre o continente europeu e africano. As sistemáticas violações do direito internacional e direitos humanos de Marrocos sobre os saharaui são assim varridas para debaixo do tapete. Longe estão as preocupações invocadas sobre o Qatar, sob a perspectiva de voltar a ter pauliteiros de Miranda em relvado.
Entretanto, os relatórios de diversas organizações internacionais denunciam o autoritarismo e atropelos do Marrocos. A Human Rights Watch, a Amnistia Internacional e até o insuspeito Departamento de Estado dos EUA apontam a falta de transparência nos órgãos judiciais, abuso policial, tortura, censura, limites à liberdade de reunião e associação, discriminação contra mulheres e comunidade LGBT e políticas contra migrantes e refugiados.
«As sistemáticas violações do direito internacional e direitos humanos de Marrocos sobre os saharaui são assim varridas para debaixo do tapete. Longe estão as preocupações invocadas sobre o Qatar, sob a perspectiva de voltar a ter pauliteiros de Miranda em relvado.»
A violência sexual é uma estratégia comum das autoridades marroquinas para intimidar mulheres saharáuis. Em Março do ano passado, Mohamed Lamine Haddi foi brutalmente agredido na prisão, depois de um tribunal fantoche, por querer protestar as condições de cárcere e a recusa de acesso a medicamentos. Em Junho, 37 migrantes foram mortos e 77 desaparecidos a tentar entrar em Melilla, tendo sido recebidos com força letal por parte de forças de segurança marroquinas. Também durante o ano passado, o Governo marroquino promoveu 32 processos-crime contra jornalistas e suspendeu seis jornais. Até mesmo o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos foi impedido pela sétima vez consecutiva de visitar os territórios ocupados.
A decisão sobre onde será organizado o próximo Mundial será tomada em Setembro de 2024. Até lá, há muito tempo para erguer uma oposição a que um estado colonialista, em pleno século XXI, se possa dar ao luxo de branquear a sua imagem enquanto prossegue uma política genocida. Não há países sem os seus telhados de vidro, mas se assumirmos que o relativismo moral pode imperar é caminho aberto para consolidar uma visão do desporto onde apenas o sucesso económico importa: a consagração do futebol negócio.
A Associação de Amizade Portugal - Sahara Ocidental (AAPSO) já enviou uma carta aberta endereçada ao presidente da FPF, a 13 de Março, para que reconsidere a sua posição. A 29 do mesmo mês, foi recebida pela FPF onde teve a oportunidade de entregar documentação que demonstra os atropelos do regime marroquino. Porém, é necessário ir mais longe, tornar tema de debate público que papel é que queremos que Portugal tenha no desporto e nas relações internacionais: A promoção do desporto para todos e amizade com todos os povos ou a venda da dignidade da vida humana em troco de cifrões e protagonismo político, mesmo que atropelando povos mártires no processo?