Mensagem de erro

User warning: The following module is missing from the file system: standard. For information about how to fix this, see the documentation page. in _drupal_trigger_error_with_delayed_logging() (line 1143 of /home/abrilabril/public_html/includes/bootstrap.inc).

|Ecologia

O jacto privado: quando os ricos poluem a olhar para o céu

As pessoas do 1% mais rico do planeta emitem 2500 vezes mais dióxido carbono que as mais pobres. E um passageiro de jacto privado emite 50 vezes mais do que dos comboios.

Kylie Jenner, a mais nova das irmãs Kardashian, utiliza o seu jacto privado ou o do marido para voos de 12 minutos. 
Kylie Jenner, a mais nova das irmãs Kardashian, utiliza o seu jacto privado ou o do marido para voos de 12 minutos. CréditosDR / DR

Kylie Jenner, a mais nova das irmãs Kardashian, não gosta de engarrafamentos. Faz grande parte das suas deslocações no seu avião ou o do seu noivo, o rapper Travis Scott. Usa mesmo o jacto privado para fazer trajectos de 12 minutos que podia fazer de carro.

«Vamos no teu ou no meu?», perguntava no seu perfil de Instagram, com mais de 300 milhões de seguidores, o segundo mais seguido do mundo, depois de Cristiano Ronaldo. A pergunta era acompanhada de uma foto com as duas aeronaves do casal. A celebridade das redes sociais e empresária ganhou fortuna graças a uma linha de produtos cosméticos veganos.

O opulento post mereceu mais de 42 000 comentários irados dos seguidores da dita celebridade, que na maioria sublinhavam a contradição entre os negócios veganos e a poluição real. «Parte-me a cabeça que Kylie Jenner e o noivo passem o tempo a escolher em que jacto privado vão usar para as suas saídas na Califórnia enquanto nós, os pobres, reciclamos caricas de gasosas para salvar o mundo», ironizava um comentário.

A conta de Twitter Celebrity Jets que monitoriza as viagens em jacto privado de ricos e famosos lançou mais achas para a fogueira, ao mostrar, num tweet, que no dia da fotografia do post do Instagram, o casal tinha optado pelo avião do rapper para fazer uma deslocação ente Van Nuys e Camarillo, na Califórnia, um voo de 12 minutos, numa distância que poderia ter sido, segundo o Google Maps, feita de carro em 40 minutos, com uma infinitamente menor pegada ecológica.

Graças a esta conta é também possível saber que dias antes, a irmã mais velha de Kylie, tinha feito dias antes um voo de 15 minutos, gastando nesse trajecto, 442 litros de combustível e emitindo uma tonelada de dióxido carbono ( CO₂).

A Celebrity Jets também mostrou que o rapper Drake não tem conseguir estar parado, este Verão, no Sul da Europa. Viajou no seu jacto, em apenas uma semana, de Barcelona para Ibiza (emitindo 11 toneladas de CO₂), de Ibiza para Nice (22 toneladas) e de Nice para Barcelona (16 toneladas).

De acordo com Celebrity Jets, Oprah Winfrey, Steven Spielberg, Jay Z, Mark Wahlberg ou Taylor Swift são algumas das celebridades que também optaram por este meio de transporte no último mês.

Segundo um relatório do grupo Transport&Environment, os aviões privados poluem, por passageiro, 10 vezes mais que os aviões comerciais e 50 vezes mais que os comboios.

Portugal tem mais jactos privados que Espanha e Itália

Uma análise realizada pela Colibri Aircraft mostra que o registo de jactos privados, no espaço da Europa Ocidental, cresceu para 2444 aeronaves em 2021, comparado com os 2414 de 2020 e 2344 de 2019.

Os dados dessa empresa especializada na comercialização, revenda e compra de aeronaves particulares usadas, revela que a Alemanha possui a maior frota, com um registo de 485 aeronaves, seguida pelo Reino Unido (incluindo Ilha de Man, Guernsey e Jersey) com 453.

Portugal aparece com 128 jactos privados, à frente de países como a Suíça, Itália ou Espanha, um sinal dos níveis de riqueza e desigualdade no nosso pais.

Os aviões privados representam o maior gasto de energia por passageiro, mas os super-poluidores não são apenas os proprietários dos cerca de 22.295 jactos privados, 14241 aviões a hélice e 19291 helicópteros que, segundo o estudo, existiam, em 2020, em todo o mundo, mas também os viajantes que utilizam aviões comerciais com frequência.

Para além da crise ambiental, as alterações climáticas colocam as suas chocantes desigualdades perante a humanidade. Um novo estudo publicado na revista Global Environmental Change, citado por o El País, estima que 1% da população mundial é responsável por mais de metade das emissões de aquecimento global da aviação de passageiros. O investigador Stefan Gössling, professor na Escola de Negócios da Universidade Linnaeus na Suécia e principal autor do trabalho, mostra, embora grande parte da humanidade nunca tenha estado num avião, há uma pequena proporção de super-poluidores que estão constantemente a voar comercialmente ou mesmo a ter os seus próprios jactos privados.

Para dar um rosto a estes grandes emissores, Gössling calculou mesmo as distâncias percorridas por avião por celebridades como Hillary Clinton (1,5 milhões de quilómetros, o equivalente a 38 vezes à volta da Terra, nos quatro anos em que foi secretária de Estado dos EUA), Bill Gates (343446 km, em 2017) ou Paris Hilton (275755 km, em 2017). No entanto, não se trata apenas de uma questão de celebridades, nem se limita apenas aos voos.

Na realidade, este enorme desequilíbrio na forma como poluímos está ligado à utilização de energia e aos níveis de rendimento. Num estudo de 2015, os economistas franceses Thomas Piketty e Lucas Chancel realçaram as enormes diferenças entre os habitantes do mundo e as emissões que provocam as alterações climáticas em geral. Embora se estime que, em média, um africano emite apenas duas toneladas de CO₂ por ano, um europeu cerca de oito e um americano 20, este trabalho salientou que existe uma parte da população espalhada pelos diferentes continentes que excede em muito estas quantidades. Piketty e Chancel chamaram a atenção para o 1% das pessoas mais ricas dos Estados Unidos, Luxemburgo, Singapura, Arábia Saudita e Canadá, que excedem 200 toneladas de CO₂ por pessoa por ano. No caso dos EUA, os economistas estimaram que este 1% corresponde a 3,16 milhões de indivíduos que emitem cada um mais de 318 toneladas de CO₂ por ano: 2500 vezes mais do que as pessoas que vivem nas Honduras, Moçambique ou Ruanda.

Os voos privados crescem exponencialmente

Enquanto o debate sobre sustentabilidade se centra noutros sectores da aviação comercial, o transporte em jacto privado tem crescido exponencialmente. Mesmo a pandemia provou ser um poderoso aliado para o aumento dos voos privados. De acordo com um estudo da Transport & Environment, em Agosto de 2020, enquanto os voos comerciais tinham diminuído 60% de ano para ano, o tráfego de jactos privados tinha regressado aos níveis pré-pandémicos. A sensação de maior segurança contra um possível contágio e, sobretudo, a ausência de restrições aos voos privados significou que muitos indivíduos e empresas abastadas optaram por alugar ou comprar jactos para as suas viagens. Em 2020, 703 jactos privados foram vendidos em todo o mundo, em comparação com 677 em 2019.

Em 2019, 21 979 jactos privados foram registados em todo o mundo. Os Estados Unidos, com 15 547 aviões (71% do total mundial), e a Europa, com 2 760 (13%), lideram um segmento com diferenças notáveis entre regiões: África representa apenas 2% dos jactos privados e Oceânia 1%.

De acordo com o relatório Transport & Environment acima mencionado, as pessoas que possuem ou utilizam um avião privado têm um nível de poder de compra muito elevado: em média, a riqueza das pessoas que possuem uma destas aeronaves é de 1,3 mil milhões de euros. E utilizam as aeronaves principalmente para fins de lazer e de tempo livre (os picos de tráfego aéreo privado são observados nos meses de Verão e para destinos turísticos) e viagens curtas/médias para a maioria das quais existe uma alternativa terrestre ou directa por companhia aérea regular.

Mas o mundo da aviação privada não é exclusivo de indivíduos ricos. A esfera institucional é também conhecida pelo o uso irresponsável do transporte aéreo privado. Como por exemplo, a utilização do jacto privado pelo antigo primeiro-ministro britânico Boris Johnson, logo após o seu discurso na COP26 em Glasgow, para ir a um jantar privado em Londres.

Marcelo viajou 71 vezes de jacto privado num ano

Em Portugal, entre Abril de 2021 e Abril de 2022, os Falcon 50 da Força Aérea Portuguesa realizaram 71 viagens ao serviço do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e de membros do governo, entre os quais o primeiro-ministro, António Costa, e, os na altura, ministros dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, e da Defesa Nacional, João Cravinho.

Neste último ano, Marcelo Rebelo de Sousa requisitou o Falcon da FAP em 30 ocasiões (quase metade do total), a maioria das quais para viagens dentro do território português. Aquele mesmo aparelho da FAP (são três ao serviço do Estado português) foi utilizado pelo governo 41 vezes no mesmo período temporal.

O custo comercial da viagem nos Falcon 50 da FAP é de 7287 euros por hora. Para ter uma ideia do impacto poluidor destes voos, o Falcon 900, ligeiramente maior que o utilizado pelo governo português, gasta 1300 litros de combustível por hora, podendo emitir duas toneladas de dióxido de carbono nesse período de tempo. Tenha-se em conta que por cada tonelada de CO₂ emitida na atmosfera derretem-se três metros quadrados de gelo no Ártico.

Segundo estimativas da Transport & Environment, entre 2005 e 2019, as emissões de CO₂ das aeronaves privadas na Europa aumentaram quase um terço (31%), um crescimento muito mais rápido que as emissões da aviação comercial.

Como alerta Pablo Muñoz Nieto, coordenador das campanhas sobre limitação da aviação nos Ecologistas en Acción, em artigo publicado no El Salto, tais níveis desproporcionados de emissões são acompanhados por uma série de elementos que, invisíveis ao público, privilegiam injustamente o sector. A maioria dos jactos privados não são obrigados a comunicar as suas emissões - e a pagá-las - no Regime de Comércio de Emissões da UE.

Acresce que a aviação comercial na UE não paga impostos sobre o combustível que utiliza. Isto significa que enquanto cada cidadão da UE paga uma média de 0,48 euros em impostos por um litro de combustível, os proprietários ricos de jactos privados não pagam nada pela energia que alimenta os seus aviões. Num contexto de grave crise ambiental, social, económica e energética isso é inaceitável. Não se pode permitir privilégios para os mais ricos que, simplesmente devido ao seu elevado poder de compra, têm o direito de continuar a poluir legalmente, prejudicando assim o interesse da sociedade.

É preciso fazer com que se reduzam ao máximo todos os voos, de jacto privado, com alternativas viáveis por terra ou serviços aéreos regulares. Para ter uma ideia da importância disso é preciso notar que entre as 10 viagens de jactos privados que geram mais emissões poluentes estão destinos como Paris-Genebra, Roma-Milão, Paris-Nice ou Paris-Londres, que poderiam facilmente ser substituídos por viagens de comboio com um impacto muito menor.

Uma política fiscal agressiva que dissuada os ricos de usar de uma forma irresponsável os jacto privados é um bom começo, mas não resolve a questão de fundo: o capitalismo e as suas consequências em termos de desigualdade social e de poder são as grandes causas da incapacidade de combater devidamente a crise ecológica.

«As desigualdades sociais são de facto factores importantes de crise ecológica: aumentam a a irresponsabilidade ecológica dos mais ricos da sociedade”, defende Éloi Laurent, que leciona na Sciences Po-Paris, Stanford University e Harvard University, no seu estudo Inequality as pollution, pollution as inequality, explicando que para além dos ricos poluirem mais, também «as crises ecológicas [que resultam dessa poluição] criam novas formas de desigualdade estrutural. As "desigualdades ambientais" estão a aumentar tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento, e desencadeiam consequências sociais. Se não forem resolvidas, colocarão um ónus considerável para as políticas públicas e para o Estado social, onde este existe. Pelo mesmo motivo, as catástrofes "sócio-ecológicas", como a devastação causada pelo furacão Katrina em 2005, são tudo menos naturais: a sua causa é cada vez mais humana e o seu impacto é determinado por factores sociais como o desenvolvimento, a desigualdade e a [falta] de democracia.»

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui