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|toponímia

Da memória

Pode demorar tanto tempo. Assim nos dizem as diferentes experiências em diversas cidades do mundo. Os combates pela memória podem desenrolam-se num tempo longo. Para muitos, demasiado longo.

Créditos / Toponímia de Lisboa

Por estes dias, em Berlim. A notícia é de 2 de dezembro de 2022. Finalmente, depois de um processo de décadas, os nomes de uma praça e de uma rua foram alterados. Da evocação de figuras do colonialismo alemão, transformam-se num tributo aos que resistiram na Namíbia e nos Camarões. Agora ostentam o nome de Praça Manga Bell e Rua Cornelius Fredericks. Nomes dos que lutaram e dos que resistiram – relembrando acontecimentos do início do século XX na África que os alemães colonizaram. Da violência e barbárie em África. Execuções em agosto de 1914. Um campo de concentração em 1906. As mortes. E lemos na notícia que algumas das vítimas foram decapitadas e que os seus crânios foram levados para a Alemanha, de modo a permitir que «cientistas raciais» os estudassem.

Para muitos ativistas, este é apenas o primeiro passo de uma tarefa muito maior, que querem levar a cabo na cidade de Berlim. Temos nas mãos matéria viva e pulsante. Memórias que não se apagam. Que foram fracas, mas que ganham voz. São presente. E as mesmas preocupações existem além desta cidade. Como sabemos, esta procura de justiça não se limita ao caso alemão.

Há momentos na história recente de Portugal que podem ser relembrados, quando pensamos nesta dinâmica de apagamento e de inscrição. Ou de memória e de esquecimento.

Após a revolução republicana de outubro de 1910, existiu uma significativa alteração na toponímia – feita no contexto da mudança de hino, de bandeira, de moeda, de dias feriados. O poder republicano marcou o espaço. Libertou-se do que remetia para topónimos monárquicos ou de pendor religioso.

Aí estão as avenidas ou as praças da República; aí estão as avenidas ou praças 5 de Outubro. Ou, talvez, um dos exemplo mais paradigmáticos: a mudança do nome da Avenida D. Amélia para Avenida Almirante Reis, em Lisboa. De uma rainha, a última rainha, para um conspirador, um dos mais importantes organizadores militares do 5 de outubro.

«Há momentos na história recente de Portugal que podem ser relembrados, quando pensamos nesta dinâmica de apagamento e de inscrição. Ou de memória e de esquecimento.»

Podemos convocar ainda um outro momento: a revolução de 25 de Abril de 1974. As letras da ponte Salazar a serem retiradas, caindo por terra – quase que conseguimos ouvir aquele som. Os nomes das ruas a serem alterados. A vontade de mudar, de transformar, de apagar. Riscar nomes do que se rejeitava. Vontade de começar, de um espaço novo. As ruas que passavam a lembrar os opositores ao regime, os que lutaram pela democracia. Lugar da morte, passa a ser lugar de evocação: a Rua Dias Coelho, em Lisboa.

Mas, em muitos locais, as cidades acumulam as diferentes camadas toponímicas, que, na verdade, também são as marcas dos diferentes tempos e momentos históricos que se decide relembrar no espaço. Nem todos os nomes das ruas foram alterados. A toponímia ainda mantém estes traços. Não é difícil encontrar, quer o nome do ditador, quer de outros homens do regime, pelas ruas das nossas cidades e vilas.

De uma notícia atual, sobre Berlim, para uma notícia de maio de 1974, no Diário de Lisboa. A um canto de página, mesmo ao lado da programação da televisão – um pouco abaixo a da rádio. Entre atividades do quotidiano e a irrupção de um gesto político na cidade.

A fotografia da placa toponímica da Rua António Maria Cardoso, na sua versão oficial, que conhecemos. Ainda é a mesma. Abaixo foi colocada uma outra placa. Pela fotografia não identificamos o material. Onde se pode ler: «Avenida dos mortos pela PIDE». Em maiúsculas. Não oficial.

Há força nesta vontade de inscrição.

Em baixo uma legenda: «O Povo nunca mais esquecerá a sinistra instituição chamada primeiro PIDE e depois DGS, sob cuja acção, destinada a servir e defender o fascismo, ainda não se sabe (e talvez nunca venha a saber-se exatamente) quantos Portugueses perderam a vida. Conhecidos ou anónimos, os mortos estão agora lembrados numa placa, feita por mãos populares, que dá um novo nome à rua onde aquela organização tinha a sua sede e perpetrou os seus últimos (espera-se) crimes, na tarde de 25 de Abril».

«Mas, em muitos locais, as cidades acumulam as diferentes camadas toponímicas, que, na verdade, também são as marcas dos diferentes tempos e momentos históricos que se decide relembrar no espaço.»

Não foi esta a única sugestão para o nome desta rua. O certo é que o nome não mudou. Ali está a placa. Segura. Durável. Mas não se perdeu a memória da vontade de inscrever um outro nome. Talvez, em certo sentido, as placas imaginárias, sonhadas existam também.

Pode demorar tanto tempo. Décadas. Passaram décadas até os nomes serem alterados em Berlim.

Podemos olhar para os mapas das nossas cidades como uma espécie de exercício, um convite à reflexão. Podemos ler, cuidadosamente, os nomes das ruas. Alguns podem ser-nos desconhecidos. Outros, conseguimos reconhecer, talvez com um leve sorriso.

Quem é relembrado nas ruas, nas praças, nas avenidas? Que lutas se travaram – e se continuam a travar – em torno desse poder de nomear, de inscrever? O que nos diz sobre nós, enquanto sociedade, a nossa escolha?


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990

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