Depois de uma viagem longa e cansativa, três trabalhadores conseguiram chegar à sua aldeia, na região de Varanasi (estado de Uttar Pradesh), mas não foram bem recebidos por uma parte dos habitantes, que os queria entregar à Polícia. Fizeram centenas de quilómetros a pé ou à boleia, estavam exaustos, e acabaram por ser obrigados a fazer um teste de despistagem à Covid-19, cujo resultado foi negativo. Ainda assim, relata o jornal Deccan Herald na sua edição online de ontem, uma aldeia vizinha opôs-se ao seu regresso e a tensão continua.
Este é apenas um caso de muitos que ocorrem agora nas aldeias da Índia, onde, de acordo com os assistentes sociais, a pandemia levou a que se instalasse um ambiente de hostilidade – para com aqueles que regressam e também para com os que já lá estão. A pandemia trouxe o medo e, com ele, a desconfiança e a anxiedade, afectando as relações sociais e deixando à mostra «fracturas» no tecido social indiano.
Desde que o lockdown (fechamento, quarentena) entrou em vigor, a 25 de Março, muitos trabalhadores migrantes nas cidades, pobres e subitamente sem rendimentos (e apoios), decidiram regressar a casa, às aldeias. Alguns enfrentam a desconfiança, outros nem chegam a isso, porque morrem pelo caminho, havendo a estimativa de que mais de 40 já faleceram, revela o periódico.
Centenas de milhares de trabalhadores migrantes não conseguiram escapar a tempo, tendo ficado «presos» nas cidades – em casas apinhadas ou em refúgios (de acordo com o governo indiano, há 675 mil nesta situação).
Falta de perspectiva
Uma das imagens mais marcantes do êxodo e da «falha» das políticas governamentais no que respeita à quarentena é de dia 28 de Março último, quando milhares de trabalhadores migrantes entupiram as vias de acesso ao terminal rodoviário de Anand Vihar, em Nova Déli, na esperança de regressar aos estados de Bihar e Uttar Pradesh.
Sitaram Yechury, secretário-geral do Partido Comunista da Índia (Marxista), denunciou então – e tem continuado a fazê-lo, na sua conta de Twitter, a «total falta de preparação e planeamento», a «falta de apoios» e o facto de a quarentena não ter sido concebida a pensar nos pobres e nos trabalhadores migrantes. Se o governo queria impor o «isolamento social», em Anand Vihar ficou espelhado o «caos».
Desinfectados de forma humilhante pelas autoridades, acossados por alguns habitantes das terras por onde passavam, por vezes espancados pela Polícia, preocupados com as suas famílias e fazendo frente à fome, os trabalhadores migrantes foram caminhando estrada fora, recebendo alguns apoios pelo meio, nomeadamente do PCI(M) e do Centro de Sindicatos da Índia (CITU).
Agora, há milhões espalhados pelas estradas dos estados de Kerala, Karnataka, Andhra Pradesh, Tenlangana, Maharashtra ou Gujarate, onde começaram a receber algum apoio dos governos estatais.
Governo central tem de tomar medidas de apoio
O apoio do governo de Modi aos trabalhadores que ficaram sem sustento e se viram obrigados a migrar é uma de várias exigências contidas numa declaração emitida no passado dia 3, em que o PCI(M), o Partido Comunista da Índia, o Partido Comunista da Índia (Marxista-Leninista)-Libertação, o Partido Socialista Revolucionário e o Bloco Índia Avante reclamam medidas para fazer frente às necessidades do povo e à pandemia de Covid-19.
O professor Manish K. Jha, do Instituto Tata de Ciências Sociais, disse ao Deccan Herald que «o medo e a anxiedade vão ter um impacto duradouro». Sublinhou igualmente que as pessoas que agoram voltam às suas aldeias acabarão por ter de voltar às cidades, porque não serão capazes de se sustentar apenas com a agricultura.
Neste sentido, antevê dificuldades, uma vez que os sectores, como o da construção, que absorvem esta mão-de-obra do campo não devem estar «em muito boa forma». Destaca também que, se o governo de Modi queria activar a quarentena, «devia ter anunciado antes medidas de apoio».
Dirigentes sindicais e académicos coincidem na defesa da ideia de que o governo tem de intervir – e não no sentido de perdoar grandes dívidas aos ricos ou decretar alívios fiscais às grandes empresas, como denunciou Sitaram Yechury – e alertam para a possibilidade de falta de comida e de diminuição da produção, que conduzirão a uma maior tensão social.
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