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A banal ressurreição de um jornalista

O mundo de hoje, bem o sabemos, é palco de fenómenos que desafiam qualquer explicação, da mais primária e comezinha à tese elaborada com recurso a instrumentos que mais parecem próprios de uma geração superior.

Arkady Babchenko
Arkady BabchenkoCréditosValentyn Ogirenko/Pool / EPA

O chefe dos serviços secretos do actual regime ucraniano, homem treinado a enfrentar com fácies impenetrável as situações mais duras e chocantes, foi traído pelas emoções e o êxtase quando lhe coube anunciar o seguinte a uma plateia da qual transbordava a comoção que abalara a comunicação global main stream durante as 24 horas anteriores: «o jornalista Arkady Babchenko está são e salvo e de boa saúde – acaba de nascer pela terceira vez». E ali estava ele, o «jornalista», em carne e osso, são como um pêro, sem um único orifício de bala visível.

O mundo de hoje, bem o sabemos, é palco de fenómenos que desafiam qualquer explicação, da mais primária e comezinha à tese elaborada com recurso a instrumentos que mais parecem próprios de uma geração superior e ainda por chegar; à primeira vista não consta, porém, que acontecimento algum entre os até agora chancelados pela bíblia da superação humana, o Guiness Book, seja comparável à manifestação da sobrenatureza de Babchenko, prosaico «jornalista dissidente» russo – espécie julgada extinta – que não apenas sobrevive a um fuzilamento à queima-roupa como é capaz de nascer uma, duas, três vezes, no limite as que forem precisas.

Em tempos abençoados pelas doçuras românticas de um casamento real capaz de sublimar os efeitos tremendos de tantas guerras, este renascimento e ressurreição de um jornalista transporta-nos, quiçá, para o limiar da eternidade humana. Ninguém a merecerá tanto, concordemos, do que um até agora anónimo mas valente «dissidente russo», inimigo jurado do maléfico Putin e que encontrou acolhimento no seio da radiosa democracia de Kiev guiada, como farol, pela alma do herói hitleriano Stepan Bandera.

A história tinha tudo para acabar mal. Aquela terça-feira, 29 de Maio, era apenas mais um dia como tantos na saga heróica do «jornalista» Arkady Babchenko, profissão e vocação recentes daquele soldado às ordens de Putin que resolveu dar o salto para a liberdade de uma TV do regime instaurado na Ucrânia graças à solidariedade libertadora da NATO e da União Europeia.

Babchenko levantou-se e foi comprar pão, como qualquer vulgar habitante de Kiev. Quando voltou a casa, sentindo nas mãos o calor convidativo de um pacato pequeno-almoço, eis que alguém, fundido cobardemente nas sombras do átrio do seu apartamento, o baleou pelas costas não uma, não duas, mas três ou mais vezes – os testemunhos são contraditórios; o que é natural, pois até um vizinho dos mais próximos confessa não ter escutado tão nutrido fuzilamento, presumindo, com notável perspicácia, que o facínora terá recorrido a um silenciador.

«A história tinha tudo para acabar mal. Aquela terça-feira, 29 de Maio, era apenas mais um dia como tantos na saga heróica do "jornalista" Arkady Babchenko, profissão e vocação recentes daquele soldado às ordens de Putin que resolveu dar o salto para a liberdade de uma TV do regime instaurado na Ucrânia graças à solidariedade libertadora da NATO e da União Europeia.»

O certo é que Babchenko tombou gloriosamente no cumprimento do dever, com o rosto, a parte superior do corpo e o embrulho de pão fresco afogados num mar de sangue.

Assim o encontrou a chorosa esposa, que logo recolheu uma oportuna foto no telemóvel e deu assim a conhecer o terrível desenlace a esta aldeia mundial sintonizada na internet, a qual imediatamente se cobriu de crepes, multiplicando homenagens, revoltadas prosas e emocionantes epitáfios a este grande soldado-jornalista até agora de tantos desconhecido.

«Já é o sétimo jornalista ("dissidente" russo) abatido desde 2001», contabilizou no seu ágil twitter o deputado europeu Petros Austrayavicius, de nacionalidade lituana, aproveitando para exigir «que se mantenham e agravem as sanções à Rússia».

E logo surgiu Anton Shekhovtsov, apresentado como renomado correspondente ucraniano da florescente casta dos «politólogos», exigindo o «boicote ao campeonato mundial de futebol» para que as delegações estrangeiras «não vão à Rússia apertar mãos cobertas de sangue vivo».

O ministro ucraniano das Infraestruturas, Vladimir Omelyan, abriu célere a sua página do Facebook e recomendou febrilmente uma purificação pelo fogo: «o objectivo do império dos bárbaros é destruir tudo aquilo que não é capaz de submeter ou, mais precisamente, de roubar; é impossível mudar ou reeducar o Kremlin e Moscovo, que têm de ser incendiados».

A NBC, com a sua sólida experiência norte-americana de tempero da realidade com uns pós de condimentos hollywoodescos, revelou que o assassino de Babchenko foi detido e confessou ter agido em troca de um soldo de 30 mil dólares.

A dúvida, no entanto, desceu sobre esta versão dos acontecimentos quando um retrato-robot do presumível criminoso surgiu em numerosos meios de comunicação ucranianos.

Nessa altura, a comoção invadira já o circunspecto Guardian de Londres ao relatar «o mais recente assassínio de um dissidente de alto nível em Kiev, uma cidade que se tornou refúgio para alguns dos mais veementes opositores de Moscovo e cenário de crimes que se mantêm há anos por resolver».

A declaração mais imediata, escutada e citada foi, porém, a de Anton Gerashenko, figura que, como «conselheiro» do Ministério do Interior, é a voz ao mesmo tempo oficiosa e oficial do regime de Kiev desde a celebrada «revolução de Maidan».

No Facebook, como é seu hábito, Gerashenko explicou como tudo aconteceu para liquidar Babchenko, não se esquecendo de relatar a deslocação à padaria e o disparo «de vários tiros cobardemente pelas costas».

Por isso, «os investigadores procuram agora espiões russos, porque Putin tem deliberadamente sob a sua mira as pessoas que não consegue quebrar nem intimidar», informou o «conselheiro» do Ministério ucraniano do Interior.

Vinte e quatro horas depois da tragédia assim dantescamente descrita, Babchenko ressuscitou e apresentou-se triunfalmente perante colegas da comunicação de todo o mundo, acompanhado pelo chefe da polícia política do regime de Kiev, Vasyl Gritsak.

«Foi uma encenação», revelaram ambos rapidamente aos que ainda não tinham percebido, não fosse algum dos presentes fazer de S. Tomé e indagar pelos buracos das balas.

Uma encenação «proveitosa», completou Gritsak. Graças ao sacrifício do «jornalista» Babchenko, vergado sob o trauma de ter de observar a imagem do seu cadáver esburacado e sangrento correr mundo, foi possível desmontar a «conspiração russa» que, na realidade, existia para o liquidar – identificando e prendendo um suposto veterano do exército ucraniano contratado pelos tais 30 mil dólares.

O êxito da operação, porém, foi muito mais longe. «Matar Babchenko era parte de um vasto plano terrorista dos serviços secretos russos», explicou Gritsak. «As nossas autoridades procuram grandes quantidades de armas e centenas de quilos de explosivos que permitam a realização de atentados terroristas na Ucrânia», acrescentou o chefe da secreta de Kiev, assim nos deixando a certeza – tão certa como a morte e ressurreição de Babchenko – de que em breve tais arsenais serão expostos aos olhos de todo o mundo.

«O chefe da secreta ucraniana realçou esta singularidade explicando que o protagonista da encenação já escapara a uma outra morte certa, por acaso também num dia 29 de Maio de um destes últimos anos.»

Muito provavelmente observaremos então, e em primeira mão, o «conselheiro» Anton Gerashenko ressurgir em cena expondo a versão oficial e oficiosa de novo êxito do regime contra a permanente ameaça russa.

Os relatos de Gerashenko são essenciais para dar credibilidade interna e externa às operações do regime. Foi este «conselheiro» do Ministério do Interior da Ucrânia Ocidental quem pôs a correr, em 17 de Julho de 2014, apenas segundos depois do desaparecimento nos radares do avião malaio que fazia o voo MH17, a versão segundo a qual o aparelho fora abatido por um míssil russo.

Esta jogada de antecipação silenciou o testemunho presencial dado por um controlador aéreo de serviço na torre de controlo e que detectara dois caças ucranianos nas imediações do avião acidentado, poucos momentos antes da tragédia. Registo esse compatível com as marcas de disparos de metralhadoras identificadas depois por especialistas independentes, quando observaram restos da fuselagem do aparelho.

A declaração de Gerashenko foi retomada recentemente como explicação oficial da tragédia pela «comissão de inquérito» internacional, constituída sob jurisdição holandesa. Uma investigação efectuada e concluída sem permitir aos responsáveis russos o acesso às supostas provas – o que, contrariando qualquer manual de Direito democrático, impede a parte acusada de se defender.

Se reflectirmos mais em pormenor sobre a fantástica ressurreição do soldado-jornalista-actor Arkady Babchenko à luz destes e outros factos actuais que nos são familiares, provavelmente chegaremos à conclusão de que nada de sobrenatural haverá a registar, nem mesmo na circunstância de o suposto morto ter renascido «pela terceira vez».

O chefe da secreta ucraniana realçou esta singularidade explicando que o protagonista da encenação já escapara a uma outra morte certa, por acaso também num dia 29 de Maio de um destes últimos anos.

Começa assim a ser banal o talento que alguns humanos manifestam para se libertarem da lei da morte e de outras até agora tidas como invioláveis.
Recordemos o que se passou em Salisbury, Reino Unido, com os Skripal pai e filha, também mais ou menos aparentados com a «dissidência» russa e dados como condenados por acção de um veneno químico, igualmente russo, irremediavelmente fatal. Ambos parecem estar, afinal, de boa saúde, ressuscitados à imagem de Babchenko.

Também não há sinais das vítimas – calculadas em centenas, mesmo milhares – dos atentados químicos alegadamente cometidos, por várias vezes e em lugares diferentes, pelo regime de Damasco, por sinal com as costas protegidas pelo de Moscovo. Ou não pereceram ou então beneficiaram de uma ressurreição colectiva, assim contribuindo também para a banalização do fenómeno.

Tais invulgaridades confrontam-nos, por analogia, com o dom mágico de Moscovo para interferir e decidir em consultas e actos eleitorais efectuados a longa distância, em países ocidentais, ora ditando o trágico Brexit, ora fomentando a praga de Trump e seus comparsas fascistas, em franca proliferação. Circunstâncias que fazem de Marc Zuckerberg e colaboradores uns autênticos amadores na arte de manipular redes de propaganda – sociais ou outras.

Sem esquecer – o que seria imperdoável – o sinistro doping de Estado russo, que torna artesanais os incentivos ao alto rendimento desportivo produzidos em laboratórios privados de todo o mundo, tão artesanais que permitiram a um ciclista norte-americano ganhar por sete vezes consecutivas a Volta a França sem ser apanhado.

Notícias falsas, encenações e manipulação da realidade, fake news? Sem dúvida uma nova, eficaz e terrível arma exclusiva da bárbara «ameaça russa», frente à qual o civilizado, ingénuo e bem intencionado mundo ocidental está, como sempre, indefeso, incapaz de ascender a tão elevado patamar de trapaça e crueldade.

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