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|Festa do Avante!

Uma Festa do Avante! em tempo de crise

A Festa do Avante! desde sempre foi o centro de ataques de outras forças políticas que não têm capacidade político-cultural, e muito menos de militância, para arquitectarem uma Festa como esta.

Pórtico «Confiança e luta por um futuro melhor», no espaço da Festa do Avante!, na Quinta da Atalaia, Amora, Seixal, a 3 de setembro de 2020. A Festa do Avante! decorre entre 4 e 6 de Setembro.
CréditosJosé Sena Goulão / LUSA

Os cerrados ataques à edição deste ano da Festa do Avante! iniciaram-se quando ainda o PCP avaliava se haveria ou não condições para a realizar, com os óbvios constrangimentos que o combate à pandemia Covid-19 iria impor e para seguir estritamente as normas que a DGS considerasse necessárias para a viabilizar. Fazem parte do arsenal onde se escolhem as armas para atingir, desde a sua fundação, o Partido Comunista Português. Ao longo dos seus quase cem anos de existência, que serão celebrados no próximo ano, muito têm variado, em sintonia com as relações de força existentes em tão longo período de tempo histórico. Não sendo comparáveis as dos tempos da ditadura fascista-salazarista com as actuais, vividas em democracia, visam o mesmo objectivo: combater a resistência e a influência política social e ideológica da única força de esquerda que considera contingente a realidade histórica do capitalismo, por mais consistente e hegemónica que essa realidade se apresente como sucede na actualidade, nunca a aceitando como definitiva. Esse é o nó górdio que os reaccionários dos mais variegados matizes incapazes de o cortar tentam por todos os meios desatar.

A Festa do Avante! desde a sua primeira edição, em 1976 na Feira das Indústrias, esteve sempre na mira das forças reaccionárias. É de lembrar que que essa primeira Festa foi alvo de um atentado bombista que fez explodir uma cabina eléctrica de transformação, deixando às escuras toda a zona do Alto de Santo Amaro e Belém. Só não a inviabilizou porque, com enorme esforço e determinação, esse posto de transformação foi substituído, o que evidenciou grande capacidade de resolução dos problemas. Os tempos são outros, às bombas materiais sucederam-se as imateriais visando menorizar, mesmo denegrir a Festa do Avante!, que logo se impôs como o único e maior evento político-cultural em Portugal, pelo que teve sempre que enfrentar os sucessivos obstáculos que lhe foram sendo colocados. Nos anos seguintes foi obrigada a mudar de lugar, do Vale do Jamor para o Alto da Ajuda, até que Krus Abecassis com argumentos espúrios, em 1987, não cedeu esse espaço, o que inviabilizou pela primeira e única vez a sua realização, originando a campanha de fundos com que se adquiriu a Quinta da Atalaia, onde se fixou.

Outros atentados foram postos em marcha, com destaque para Cavaco Silva, que queria que na lei de Financiamento dos Partidos ficasse expresso que toda e qualquer forma considerada financiamento fosse feita por cheque, contemplando expressamente a Festa do Avante! como incluída nesse quadro, o que faria com que a venda de uma imperial, em qualquer dos sítios da Festa, fosse feita por cheque!!! Também queria que se estipulasse um limite ao financiamento, pelo que a Festa fechava portas atingido esse tecto. O mesmo Cavaco que despudoramente concedeu reformas a Pides e recusou a Salgueiro Maia uma pensão «por serviços excepcionais e relevantes». O objectivo era óbvio, atingir o PCP por interposta Festa do Avante!, sabendo até bem de mais que o PCP se financia com o esforço dos seus militantes e com as suas iniciativas e não com outros dinheiros que, por portas esconsas, escapam a esses rigorismos de pacotilha. Paralelamente a comunicação social corporativa ignorava ou apoucava a forte vertente cultural da Festa que, à sua escala, realizava um programa de democratização da cultura, com a participação de milhares de pessoas, com a qualidade e diversidade dos espectáculos musicais, destaque-se, pela diferença introduzida, o concerto sinfónico que desde 2004 é imagem de marca da abertura, o cinema, o teatro, as exposições de artes plásticas, as manifestações de cultura popular portuguesa e internacional. O que essa comunicação social contra todas as evidências procurava transmitir era de ser uma festa de comes e bebes onde, por vezes, aconteciam coisas pouco recomendáveis, a par de uns espectáculos. A miséria do jornalismo mercenário em todo o seu esplendor.

A capacidade de mobilização, militância e imaginação dos comunistas para efectivarem as sucessivas Festa do Avante!, este ano na sua XXIII edição, elogiada mesmo por quem nada tem a ver com o PCP mas não se cega voluntariamente ao que é irrefutável, sempre provocou os mais variados ranger de dentes e foi sempre um alvo a abater. Este ano, a Covid-19 foi a bomba que lhes caiu ao colo. Como nenhum vício lógico os trava, desmultiplicaram-se em argumentários estrepitosos, misturando alhos com bugalhos para demonstrarem que era impossível realizá-la no contexto da crise provocada pela pandemia, dentro das normas genéricas impostas pela DGS para a generalidade dos espectáculos, comparando o que é incomparável, esquecendo-se de referir os vários festivais que aconteceram, muitos escapando a essas normas, nunca referindo que desde a primeira hora o PCP tinha afirmado que só haveria Festa do Avante! se fosse possível cumprir com toda a segurança e rigor a distanciação social exigível e todas as outras condições sanitárias que fossem necessárias. Uma campanha tão intensa e tão bem orquestrada a plantar sorna ou altissonantemente dúvidas e interrogações a par de mentiras sabe, até bem demais, que a propalação de dúvidas, interrogações mesmo que se lhes responda cabalmente e as mentiras sejam desmentidas sem margem para manobras, deixam sempre um rasto que não se apaga.

Nas redes sociais, há mesmo quem apele a que infectados com Covid-19 vão à Festa para deliberadamente infectarem os participantes. Nos comentários e likes, muitos se insurgirem contra tão infame apelo, mas o que parece ser doentiamente excepcional adquire volume pelo número de apoiantes recebido pelo que não se deve menorizar esse item. O que é de estranhar é que essa gente não seja imediatamente alvo de processos jurídicos por, objectivamente, apelarem à propagação de uma doença contagiosa conhecendo os seus devastadores efeitos, o que é um crime. A prole tão preocupada com os perigos de contaminação que existirão na Festa nem isso refere, entrincheirando-se na desvalorização desse rogo como se fosse um desvario descabelado. Na realidade será, mas também é o relógio de uma bomba ainda bem enterrada mas à qual há que rapidamente retirar a espoleta, para não vir à superfície, emparceirando com outras que já têm bastante visibilidade.

O confluir de tantos e tão diversificados ataques não desarmam os intelectualmente pervertidos detractores da Festa. Se não conseguissem o objectivo principal, proibir a Festa, o que urgia era radicar a qualquer preço o medo e dar voz a esse medo, por mais irracional que seja, para bater tambores nos media, insinuando junto da opinião pública que, neste processo, há uma troca de favores entre o PCP de um lado, o Governo e a DGS do outro. Essa gente não tem nem nunca terá uma ruga de vergonha, um pingo de pudor e continuará a bradar mesmo depois de a DGS publicar um conjunto de normas incomparavelmente mais restritivas dos que as que foram aplicadas a outros eventos, com o pretexto da complexidade da Festa do Avante!. Nem se calará nem comparará a realidade da desmesurada discrepância com o número de espectadores autorizados noutros espectáculos. Um exemplo, no concerto do Bruno Nogueira e Manuela Azevedo Deixem o Pimba em Paz, estiveram 2000 pessoas em 1250 metros quadrados em espaço fechado, compare-se com as autorizadas 2000 em 16 mil metros quadrados no palco 25 de Abril, em espaço ao ar livre da Festa do Avante!. Se o critério espaço útil/pessoa fosse uniforme aquele «excelente teste para os espectáculos» – António Costa dixit – só poderia ter tido 156 pessoas, mais primeiro-ministro e família; ou, inversamente, 25 600 no Palco 25 de Abril, quase o dobro das 16 mil pessoas que vão poder estar na Festa do Avante!.

A DGS admitiu o que rapidamente se deduz ao ler o seu parecer, que a Festa adquirira «um carácter excepcional, não do ponto de vista técnico mas de impacto social e mediático». Traduzindo, o ponto de vista técnico foi condicionado pelo impacto social e mediático. Diz o secretário de Estado da Saúde que «as competências da DGS são técnico-normativas, não têm decisões de carácter político». É um facto, mas outro facto é o de não existirem pareceres tecnicamente neutros, qualquer que seja a área em que incidam. Pareceres ou estudos imunes à política, às políticas económicas dominantes, a pressões políticas e mediáticas. A questão da neutralidade tecnocrática, como se as técnicas fossem um placebo, tem sido objecto de muitos debates, com alguns grupos a brandir a racionalidade técnica para conseguirem influência e mesmo alcançarem poder de decisão, o que foi sempre contestado pelos mais destacados filósofos marxistas e não-marxistas.

Será útil reler Henri Lefebvre em Contra os Tecnocratas, (Moraes Editores, 1969) que desmonta essas teses. Eles, os tecnocratas, «executam ordens, ordens do poder político que organiza as “variáveis estratégicas” dos seus estudos e pareceres. O poder impõe aos tecnocratas à sua disposição as opções decisivas. Eles – os tecnocratas – propõem soluções para os problemas oficialmente reconhecidos e formulados, o poder de Estado escolhe entre elas (…) A pretensa tecnocracia é nociva, não tanto pela sua imagem real, como pela imagem que oferece de si-própria e da sociedade. Segundo essa imagem, a racionalidade social, finalmente amadurecida, já reina ou irá reinar em breve. Esta crença divulgada na opinião resulta de uma propaganda: é uma ideologia. Tal ideologia é o produto mental da tecnocracia, a sua justificação, a compensação da sua impotência e incapacidade, o seu contributo real para a acção do poder». É por esta lente, que nega a ficção da técnica pura, que se devem ler quaisquer pareceres técnicos. Há, no entanto que dar razão ao secretário de Estado da Saúde num dos seus considerandos: a Festa sempre teve um carácter excepcional, pelo que desde sempre foi o centro de ataques das outras forças políticas que não têm capacidade político-cultural e muito menos de militância para arquitectarem uma Festa como esta.

Várias são as condicionantes na Festa deste ano, com óbvios reflexos não só na sua implantação mas na programação política e cultural reorganizada de modo a não perder a sua identidade. A primeira é do número máximo de participantes limitado a 16 mil, apesar da área ter sido ampliada em 10 mil metros quadrados, para um total de 30 mil. Cerca de um sexto do número máximo dos anos anteriores, 100 mil participantes, curiosamente o mesmo do Rock no Rio, que ocupa 2 mil metros quadrados na Bela Vista. As normas de segurança podem ser vistas num vídeo que o PCP colocou no seu site, na página dedicada à Festa, o que essa gente, se tivesse um mínimo de seriedade, poderia ter visitado e até criticado. Mas isso seria exigir o que não se lhes pode exigir, passe o pleonasmo.

Muitas são as medidas que asseguram as condições sanitárias para a Festa se realizar. Refira-se que todos os palcos, este ano limitados a três, serão ao ar livre com lugares marcados para cumprir a distanciação social exigida. Outras manifestações, como teatro e o cinema acontecerão ao ar livre o que limitou drasticamente os seus programas e horários. A Festa do Livro será também ao ar livre com espaços sombreados. A Bienal de Artes Plásticas sofrerá um interregno, adiada para o próximo ano já que naturalmente teria que decorrer em espaço fechado.

As limitações logísticas vão-se repercutir em muitas das manifestações culturais que estavam perspectivadas adiando expectativas para o próximo ano. O que não fica, nunca ficará adiado é o real contributo da Festa do Avante! para a democratização da cultura nas suas mais diversas vertentes.

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