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|20 anos do Nobel de Saramago

O primeiro livro que José Saramago publicou depois de lhe atribuírem o Prémio Nobel

Há homens a quem as honrarias não afogam a voz. Pelo contrário, saltam para cima delas para berrarem ainda mais alto. Não são muitos esses homens. Mas há alguns. Saramago era um deles.

Na mesa, da esquerda para a direita: José Sucena, José Saramago e Zeferino Coelho.
Na mesa, da esquerda para a direita: José Sucena, José Saramago e Zeferino Coelho.Créditos

O livro chama-se Folhas Políticas (1976-1998) e reúne crónicas de caracter político publicadas pelo autor em diversos jornais e revistas. Reler hoje esses textos, alguns deles com 40 anos de idade, é um exercício que vale bem a pena. Vou deixar aqui algumas citações para despertar o apetite:

1. Em 1980, ainda bem longe de tão badalada geringonça, escrevia o seguinte:

«O maior adversário da unidade da esquerda foi, é e continua a ser o Partido Socialista. Desgraçadamente. E agora contra si mesmo virado. Pensando que podia exibir um programa de esquerda e fazer uma política oportunista de direita, o PS incubava as serpentes que agora o estão sufocando. Não nos regozijemos. A crise do PS não será a crise da esquerda, mas será, sem disfarce, uma crise da esquerda. A crise do PS é, principalmente, o adiamento da unidade necessária, aquela que precisamente tomo por condição de sobrevivência da democracia.»

2. Em 1981, sobre os intelectuais:

«É verdade que quando a maré está boa o intelectual (em sentido restrito) gosta de estar na proa do barco. Falta-lhe aos braços força, tomem conta dos remos músculos mais sólidos, mas o lugar da proa é o da sensibilidade, aí dá de frente o vento do largo, e das coisas que o vento diz e o horizonte mostra alguém deve dar notícia: assim nasce o poema, o romance, a pintura, o canto dos instrumentos e da voz. Somos facilmente unanimistas, queremos ser a palavra de todos os que a não articulam própria. Será presunção exagerada, mas à conta dela se criaram obras grandes, e quando foram pequenas não foram inúteis.

Contudo, se o vento se fez tempestade, se o barco teve de varar na areia, se a tripulação e o intelectual da proa foram obrigados a recolher-se intramuros, se a força de fora já invade as ruas de dentro e acende as primeiras fogueiras, se isto e mais aquilo, o intelectual abana a cabeça, e, mesmo continuando a escrever (se é esse o seu modo), tudo o que diz está dizendo: «Acabou-se.» Sentiu exaltadamente o bom, sente depressivamente o mau. Talvez não saiba viver sem esta oscilação, talvez seja ela, afinal, o seu mais principal alimento. Em Portugal, claro está. Neste ano de 1981, sendo governo a direita, no seu figurino de herdeira apenas espanejada do marcelismo.»

3. Em 1982, sobre «Os novos escritores»:

«Os novos escritores são, só por existirem, um dos fôlegos da literatura. Trazem consigo a mesma inteira fé dos seus predecessores, a mesma confiança sem dúvidas, a mesma intocada pureza. Quando, no silência do quarto, ou a contemplar a lua, ou por virtude de paixão, ou por discutir com a família, ou por ter caído do cavalo na Estrada de Damasco, um adolescente decide que vai ser escritor, o mundo deveria parar para ver: é um momento muito belo, esse, quando se estão olhando, calados, a Vida Toda e o Simples Ser Humano, tão pouco sabedores um do outro, e é por isso que, novamente, vai ser preciso escrever e haver escrita. Por falta de escritores não morrerrá a literatura.»

Capa da primeira edição de «Levantado do Chão», de José Saramago.

4. Em 1977, primeiros vestígios de Levantado do Chão num «Recado a João Basuga, alentejano», a propósito de uma visita presidencial (Ramalho Eanes) ao Alentejo:

«Amigos somos, João Basuga, amigos de uma amizade que certa gente em Portugal tudo fez para que não existisse nunca: a amizade que, com uma simplicidade que a essa mesma gente tira o sono, liga o intelectual e o trabalhador, o escritor que vive em Lisboa e o operário agrícola nascido, criado e amargado no Alentejo, o eu que nós somos aqui, o tu multiplicado em rostos de homens e de mulheres, firmeza nossa e vossa aprendizagem. Durante quase dois meses me sentei à tua mesa, comi do que tu comias, o pão e a azeitona, o peixe do rio, o porco, a çorda e as migas. Falámos muito, mas não tudo, porque dois meses é quase nada e incrivelmente longa a história dos vossos trabalhos. Contigo, com a Mariana Amália tua mulher, com os teus filhos, aprendi ou confirmei duas ou três coisas fundamentais: o parentesco essencial de quem não tem laços comuns de sangue, e também que na partilha da inteligência nem sempre o melhor quinhão cabe aos que têm ofício de utilizá-la e dessa utilização tiram proveito: debaixo do teu tecto vivem alguns dos espíritos mais agudos que alguma vez conheci.

De certeza deste fé de que o presidente da República não se tem poupado à viagem: ele no Norte, ele no Centro, ele nas Ilhas, por toda a parte é visto, sisudo, grave como convém ao seu modo de encarar a função e lhe está no feitio. Todos andávamos preocupados com o abandono a que o Alentejo estava votado nisto de visitas presidenciais, e eis que num repente a visita se faz: não irá, foi. Mas vê lá tu, João Basuga, que, em terra tão cheia de homens, o presidente da República apenas foi descer a Alter do Chão para ver os cavalos e o resto sobrevoou.

Não sei se viste o helicóptero e se adivinhaste quem lá ia. Nem sei se deves ter pena de não ter visto o presidente da República: afinal, é ele quem mais perde por não te conhecer a ti.»

5. Em 1977, sobre o «eurocomunismo», então em voga:

«Será ainda comunismo o eurocomunismo? Se Marx não acertou sempre, se Lénine emendou algumas vezes, e se engano e falha forem tomados como pretexto para invalidar o resto, que comunismo vai fazer (se é ainda esse o propósito) o eurocomunismo? A julgar pelo que me chega e vou procurando averiguar, a grande esperança desses partidos comunistas está no bom andamento de um processo supostamente evolutivo (eu diria: quase de predistinação) que, em convivência e concertação com o capitalismo, acabaria poor fazer surgir formas socialistas de produção e, simultaneamente, o consumo social, a distribuição mais justa da riqueza, e, de degrau em degrau, sem pressas nem quedas, o socialismo e o comunismo. Assim como se o capitalismo tivesse escolhido a mais abnegada maneira de se retirar do mundo e da sociedade dos homens: restituir tudo e morrer em paz.»

E fico-me por aqui. Há homens a quem as honrarias não afogam a voz. Pelo contrário, saltam para cima delas para berrarem ainda mais alto. Não são muitos esses homens. Mas há alguns. Saramago era um deles.

Capa da primeira edição de «Folhas Políticas (1976-1998)», de José Saramago, Editorial Caminho (1999).

Não vai faltar quem me acuse de que alguns destes textos são desapiedados e injustos, que, tendo sido já politicamente inoportunos e impertinentes na própria época em que foram escritos, muito mais o vêm a ser agora, e que, argumento final, não é atitude das mais prudentes e sensatas da minha parte, considerando que todos nós temos os nossos «telhados de vidro», reabrir as chagas que o tempo, melhor ou pior, teve a caridade de cicatrizar. Disso, como de resto, pensará cada um o que quiser, e por isso responderá. Em todo o caso, creio que estas Folhas Políticas, de cuja honradez cívica não reconheço a ninguém o direito de duvidar, levam dentro verdades suficientes para que sejam capazes de defender-se sozinhas, sem ajuda. Nem sequer a minha.

José Saramago, in Folhas Políticas (1976-1998), Editorial Caminho (1999).

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