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Sobre a ofensiva anti-popular do grande capital e do imperialismo na América Latina, e sobre o «longo caminho de golpe» na Venezuela, creio que José Goulão disse já o que havia a dizer – até ao momento – num artigo cuja leitura ou releitura aqui se recomenda: «Agressão à Venezuela: um roteiro com três anos».

Neste contexto, resta registar como ficará bem na fotografia de conjunto dos grandes defensores da «democracia» para os outros (dependendo dos «outros» que forem, neste caso é a Venezuela), o eurodeputado Paulo Rangel, cabeça de lista do PSD às eleições para o Parlamento Europeu – notável conjunto esse em que figuram também Trump, Iván Duque Márquez, Bolsonaro, Netanyahu e outros paladinos da «democracia», da «liberdade» e do «bem-estar» dos povos.

Efectivamente pode-se dizer: há sempre um português no nó dos acontecimentos, seja qual for o lugar do mundo. E Rangel veio confirmar a regra. Merece que lhe agradeçamos. No caso em apreço, ali estava ele, e bem, ao lado de Guaidó. É o seu lado. O lado do grande capital e do intervencionismo. Tal como no passado o seu correligionário Durão Barroso esteve ao lado de Bush, Blair e Aznar, na célebre cimeira de 2003, nos Açores, quando foram cozinhados o início da guerra no Iraque e a destruição deste país de petróleo, em nome da premente eliminação de umas armas de destruição massiva que afinal não existiam. Tratava-se, isso sim, de mais uma criminosa fabricação do aparelho de propaganda norte-americano, ao serviço do saque dos recursos naturais de um país soberano.

Fará dezasseis anos no próximo 16 de Março que os olhos do Mundo estiveram focados na Base das Lajes, naquela que ficaria conhecida como Cimeira das Lajes ou Cimeira da Guerra. Talvez se lhe devesse chamar Cimeira do Embuste ou Cimeira da Grande Mentira.

Oh como, à sua escala própria, alinha bem o eurodeputado do PSD ao lado desta e doutra gente boa, ele que é um digno herdeiro das melhores tradições – quer dizer, as mais sinistras.

Como já no século XIV escrevia Juan Ruiz, o Arcipreste de Hita, «Lo que puede el dinero»…

Um sítio a visitar: A Flor de Tiempo, uma música e uma voz a escutar. Sempre.

Ainda faltam nove meses, mas é também este ano que outro aniversário bem especial (verdadeiramente luminoso, este) se celebra: os 50 anos da inesquecível actuação de Paco Ibañez no Olympia, de Paris, a 2 de Dezembro de 1969, um ano e tal depois do Maio de 68.

Sobre o enorme Paco Ibañez explore-se o seu bem organizado sítio oficial na Internet e leia-se o que Saramago e outros acerca dele disseram.

Por estes dias, Paco andará por Cap D’Agde, França (a 16), por Madrid (a 19), por Valencia (a 25) e dará um salto à cidade natal do seu velho amigo – muito cantado – Rafael Alberti: Cádis, a 10 de Maio. Se viajar por esses lados, não perca por nada deste mundo. E esteja atento, pois está prevista, precisamente para este ano, uma reedição do disco Paco Ibañez en el Olympia (Paris).

Detestado pelas direitas e pelo corrupto PP, tolerado (mas mal) pelo PSOE, Paco Ibañez é das figuras maiores da cultura ibérica (eu diria europeia).

É aquele que a muitos revelou o que era a poesia e, sobretudo, a grande lírica de língua castelhana, que ele musicou e cantou como ninguém: Góngora, Quevedo, Arcipreste de Hita, Jorge Manrique, Machado, Lorca, Hernández, Alberti, Cernuda, Celaya, Léon Felipe, José Agustín Goytisolo, Blas de Otero, Gloria Fuertes, o cubano Nicolás Guillén, o chileno Neruda e muitos, muitos outros – basta consultar a impressionante antologia de poemas em língua castelhana e noutras línguas a que o génio do compositor/cantor/guitarrista valenciano deu inigualável moldura musical e voz.

Não foram poucos os que, graças a Ibañez, começaram a conhecer a riqueza do Romanceiro popular espanhol, a poesia do Siglo de Oro (séculos XVI-XVII: Quevedo, Góngora…) ou as poéticas das Gerações espanholas de 98 (Machado, por exemplo) e de 27 (Lorca, Alberti, Cernuda…) – sobre as quais haveriam de tombar os espectros da Guerra Civil, da perseguição e do exílio. Mas o cantor foi, ainda é, excepcional veículo de divulgação de muitos daqueles poetas que ao franquismo se opuseram nos anos de brasa: décadas de 40 a 70 do século XX (como Celaya ou Goytisolo). Alguém que veio pôr em evidência a nobreza e grandeza estética do canto de luta e de protesto, dando a ver a criação poética como o acto de rebeldia que também é.

Leitor admirável de poesia, Paco Ibañez constitui a síntese genial de uma voz de timbre único e de um notável talento de compositor de canções e de tocador de guitarra, bem como de adequação da estrutura melódica ao conteúdo e ao perfil formal do poema, sem descurar o seu registo próprio, seja ele mais trágico, mais satírico ou mais interventivo. Nas suas canções cruzam-se tradições e veios diversos: Georges Brassens (a quem Paco chama o J. S. Bach dos cantautores), a chanson francesa e a música de intervenção espanhola e sul-americana, o flamenco e o folclore musical ibérico.

Filho de republicanos (pai exilado), Ibañez – que conheceu bem a chilena Violeta Parra em Paris, no início da década de 60, como aliás conheceu Luís Cília e admirou José Afonso[fn]Em 1979 Paco Ibañez esteve em Portugal para uma série de concertos, reencontrou amigos de Paris, como Luís Cília, e fez novos. Neste ano em que também passam 40 anos sobre esta visita, seria bom recuperar Paco Ibañez (1979), o documentário sobre o cantautor filmado por José de Sá Caetano.[/fn] – converter-se-ia num dos incontornáveis cantautores do nosso tempo, voz rebelde e interventiva, internacionalista e sempre firme no seu afrontamento do fascismo, das forças do capital e do imperialismo, empenhada voz, acima de tudo, na incitação ao sentido crítico e ao amor pela grande poesia.

Escutemos este jogral dos tempos modernos, por exemplo, em duas das suas canções mais emblemáticas: «Lo que puede el dinero», poema do Arcipreste de Hita (c. 1284-c.1351), e «Don Dinero», de Francisco de Quevedo (1580-1645), que funcionam hoje como certeiras críticas e condenações do capitalismo burguês e dos seus mais perversos efeitos na alma humana.

Grande música na Gulbenkian, uma ópera de Gounod

Prossigamos então na música, chamando a atenção para a fortíssima programação da Gulbenkian para os dias que se avizinham. Convido a uma concentrada consulta, pois vale a pena.

Entre o destaque conferido e bem à grande música de Gustav Mahler e o Octeto em Fá-maior, D. 803, de Schubert, surgem propostas irrecusáveis, como os concertos do pianista Javier Perianes (19 de Março); da Orquestra Gulbenkian, dirigida por Ton Koopman a 21 e 22 de Março (Bach, Mozart, Betthoven), com Alexei Volodin no piano; e ainda, a 27 de Março, o encontro de dois excepcionais pianistas: Martha Argerich e Stephen Kovacevich, para interpretarem, em parceria, Claude Debussy e Sergei Rachmaninov. Infelizmente, cumpre-me informá-lo, leitor, de que os bilhetes para todos estes quatro concertos se encontram, neste momento, esgotados. Sim, apenas um dia depois da divulgação da newsletter da Gulbenkian!

Resta-lhe outra proposta de monta: Romeu e Julieta de Gounod, pela Orquestra e o Coro Gulbenkian, sob a direcção de Lorenzo Viotti, a 15 e 17 de Março.

Sobre esta obra achei por bem ouvir voz autorizada, a do shakespeariano e melómano Miguel Ramalhete Gomes, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador: «Roméo et Juliette (1867), de Charles Gounod, como todas as outras óperas feitas a partir de Shakespeare, é tão mais interessante quanto mais se desvia da fonte. Nesse sentido, os libretistas desta ópera, a dupla de Jules Barbier e Michel Carré (responsáveis pelos libretos de vários outros sucessos operáticos franceses de meados do século XIX) seguiram a tradição descrita por Stendhal na sua Vida de Rossini. Voltando ao lugar-comum setecentista de que Shakespeare vivera num tempo infinitamente menos civilizado, Stendhal explica que alguns elementos ofensivos das peças precisaram de ser resolvidos e argumenta que “Romeu e Julieta é a única tragédia que deve ao adaptador a sua melhor cena. Em Shakespeare, Romeu morre envenenado antes de Julieta acordar; foi Dryden que imaginou essa cena tão tocante entre os amantes, acabando com a morte de Romeu”. Dryden, na sua adaptação, chegou a dar um final feliz a Romeu e Julieta, mas isso é outra história. Gounod musicou então um dueto final que só foi possível devido à dificuldade histórica em aceitar a frieza shakespeariana da morte alternada dos amantes, em vez da sua morte operática a dois.»

Se puder, não perca este espectáculo em Lisboa, na Gulbenkian. E depois… porque não reler Romeu e Julieta[fn]O leitor encontra na Relógio d’Água uma tradução feita com o habitual cuidado dessa editora e, na Guerra e Paz, uma arejada edição juvenil.[/fn] e comparar o original do grande isabelino e a versão operática?

Jazz na Amadora e em Lisboa

Atenção a algumas propostas tentadoras, na área do jazz: o Marc Copland Trio toca, a 9 de Março, no Amadora Jazz, nos Recreios da Amadora; e o Branford Marsalis Quartet, por seu lado, actua no CCB, a 15 de Março.

Consulte ainda a programação, interessante, do Festival de Jazz de Lisboa, entre 27 e 31 de Março, no Teatro S. Luiz, em co-produção com o Hot Clube.

Seixal e o Encontro Cante na Margem Sul

E porque não ir até aos Serviços Centrais da Câmara Municipal do Seixal para assistir ao Encontro Cante na Margem Sul? Será a 16 de Março, entre as 14.30h e as 20h. Três painéis temáticos e actuações preenchem o programa que termina com uma merenda alentejana. Se fosse a si, marcava presença, leitor. Consulte o programa.

Cinema: «A Portuguesa», de Rita Azevedo Gomes

Está a estrear nas salas de cinema A Portuguesa, de Rita Azevedo Gomes, filme de época, cuja história se situa no século XVI, no norte de Itália, quando os von Ketten disputam as forças do Episcopado de Trento. Sobre o filme, inspirado num conto de Robert Musil e com adaptação e diálogos de Agustina Bessa-Luís, declarou a realizadora: «Interessa-me que passe uma certa atualidade da nossa época para dentro de uma história que acontece num século muito antigo. (…) Estamos perante uma história que tem muito a ver com os nossos dias. Não posso falar de umas pessoas que nem sei se existiram sem estar a falar das pessoas que estão ao meu lado e do que se passa hoje em dia.».

Novos livros ilustrados e não só

Falei de Paco Ibañez. Pois bem, o cantor de «Soldadito boliviano» musicou também poemas escritos em outros idiomas do estado espanhol que não o castelhano. Entre eles, contam-se os do várias vezes premiado poeta, de Vigo, Antonio García Teijeiro (n. 1952), responsável pelo interessantíssimo blogue de poesia, literatura infanto-juvenil e música Versos e Aloumiños, em constante actualização. Devotado à criação poética – mas também narrativa – para a infância e a juventude, e à poesia em geral, García Teijeiro exprime-se ora em galego ora em castelhano e é um poeta do mar, da música (uma das suas paixões) e da paz, e um cultor também duma ecopoética que não se exime de denunciar as ameaças que pendem sobre o ambiente e o planeta. Mas revela-se também como um exímio explorador da dimensão lúdica e visual das palavras e do texto, e como um pedagogo da sensibilidade humana e artística, em especial nos seus livros de versos para a infância (uma antologia desta sua poesia estará para ser publicada, em breve, em português).

Assim ocorre em livros como Paseniño, paseniño (Xerais, 2018), acompanhado de um CD musical com poemas recitados pelo autor. Uma obra não apenas para os mais pequenos, mas para todos, que seduz também pela qualidade poética e plástica das ilustrações de Marcos Viso. Outro exemplo é Caderno de Fume (Edicións Embora, 2018), com boas ilustrações de Leandro Lamas, também para a infância, que explora poeticamente o motivo do fumo e o seu potencial em termos de alargamento do imaginário e de sensibilidade à materialidade da palavra – questões essenciais na educação poética.

Muito desafiante também um terceiro livro, desta feita escrito em castelhano, para jovens adultos e adolescentes, cujo título é todo um programa: Escritos en el Viento: Narraciones y poemas en torno a Dylan (Verbum, 2017). Trata-se de uma parceria com o escritor catalão Jordi Sierra I Fabra, na qual alternam textos narrativos breves e poemas que, de algum modo, comentam as composições do autor de «Blowin’ in the wind», tomam-nas como motes e prestam tributo a Dylan.

Já em Poesia Cromática (Belagua, 2017), é-nos proposto um livro singular de poesia e pintura (a de Xulio García Rivas), em princípio destinado a um público adulto: García Teijeiro escreveu poemas a partir dos quais García Rivas pintou; em seguida, a pintura desencadeou nova escrita e esta, por sua vez, nova pintura. O resultado é uma aventura poética e visual muito sedutora, até porque nela se integra a caligrafia do poeta, pois cada um dos poemas surge também em forma manuscrita, nas páginas ilustradas.

Termino estas sugestões de obras em galego (a última em castelhano) com um convite à audição de Paco Ibañez, que musicou poemas de Teijeiro, como «Pomba» e «Que ocorre na Terra».

Uma última sugestão poética em língua galega: O Puño e a Letra (Xerais, 2018), de Yolanda Castaño (n. 1977, Corunha), uma antologia desta poeta feminista, irreverente e crítica, que aspira a ser, também, a primeira obra galega no campo do Comic Poético (ou Comic Poetry): cada poema escolhido surge acompanhado de uma banda desenhada de prancha única que recria, em linguagem de BD, o texto de Yolanda. São numerosos, pois, os co-autores desta obra desafiante: Miguelanxo Prado, Kiko da Silva e muitos outros.

Em matéria ainda de livros ilustrados, mas para a infância e para os adultos que os desejem ler (e que deveriam ser muitos, claro), uma proposta misteriosa e cativante: Regresso a Casa (Orfeu Negro, 2019), do artista japonês Akiko Miyakoshi. Trata-se do breve e arrastado discurso de uma personagem infantil, que é também narrador, e que, fatigado, regressa a casa com os pais ao final do dia, numa grande cidade. As personagens são animais perfeitamente humanizados, tal como o narrador (um pequeno coelho) e o cerne da obra são as sensações, sentimentos, imaginações desses momentos que precedem o sono e o sonho, plasticamente recriados pelo belo desenho de Miyakoshi, pelos tons escuros, pelo sépia e por um conseguido jogo de luzes e sombras.

Os grandes livros de poesia do trimestre

Ouso dizer que o grande livro de poesia do primeiro trimestre do ano em curso (para quem o não tenha lido antes, claro) é A Musa Irregular: edição aumentada (Tinta da China, 2019), de Fernando Assis Pacheco (1937-1995), com um excelente posfácio, arguto e iluminador, de Manuel Gusmão, e edição, rigorosa, da responsabilidade de Abel Barros Baptista. Inclui, como o subtítulo indica, textos que antes não figuravam em livro.

Além de notável jornalista, crítico e tradutor, Fernando Assis Pacheco foi poeta de excepção (ainda que o tenha sido em «tom menor», como assinala Gusmão). Foi talvez a voz poética que de modo mais intenso e dramático abordou a Guerra Colonial, e o consequente medo da morte, mas ao mesmo tempo foi lírico de inegável finura e rigor de expressão, além de voz satírica, de sentido de humor indeclinável (mesmo quando tocado pela amargura). Não é possível esquecer tal voz nem os seus poemas sobre a prisão política. Um poeta que, além do mais, não quis dissociar escrita e vida (no fundo o tema maior da sua poesia) e que não se tomava demasiado a sério, sendo capaz de inteligentemente rir de si mesmo. Como nos rimos nós também – ou pelo menos sorrimos, quando não choramos – ao ler esta poesia que não faz lembrar nenhuma outra, e que proporciona um prazer de leitura que é tudo menos comum.

De assinalar é também a saída de A Chama, último livro, de publicação já póstuma, desse inesquecível poeta-cantor que foi o canadiano Leonard Cohen. A versão portuguesa destes poemas e letras de canções é de Inês Dias, poeta e competente tradutora, e o livro inclui prefácio, nota editorial e, no final, reprodução dos textos originais em inglês. Vale a pena ler.

Uma ficção de fundo histórico-político

Fez correr muita tinta o assassinato do Padre Max e de Maria de Lurdes, de 19 anos – gente de esquerda –, no dia 2 de Abril de 1976. Quando se deslocavam de carro entre a Cumieira e Vila Real, a bomba que os mataria explodiu, accionada por controlo remoto. Responsável pelo atentado foi o movimento fascista MDLP, no quadro das criminosas acções da chamada Rede Bombista, sobretudo nos anos de 1975-77, mas os seus autores nunca foram condenados.

Num tempo em que tornam a crescer as movimentações fascistas na Europa, nas Américas e não só, vale a pena ler o romance de Daniela Costa, Uma bomba a iluminar a noite do Marão (Afrontamento, 2018), que, em boa hora, recria ficcionalmente o episódio, assumindo embora o enraizamento da ficção na História. Fluente e fazendo uso de uma pluralidade de vozes narrativas, a escrita explora a atracção pela dinâmica accional que é atributo da maioria dos amantes do texto narrativo.

Uma obra que suscitará, certamente, leitura crítica e funda reflexão.

E se chegou até aqui, leitor, merece tornar a ouvir Paco Ibañez, desta vez ao lado de Joan Baez, em 1973. Inolvidável.