Aos 350 anos de idade Jesus Cristo descobre que decidiram que o dia incerto em que tinha nascido era o mesmo do dia do Deus Sol em que os pagãos comemoravam o solstício de Inverno, com os grandes festivais de trocas de presentes e folias das Saturnálias, dos madeiros de um grande festival na Escandinávia, das festas germânicas, etc. Festivais de inverno, as festas mais populares em muitas culturas, foram disciplinados pelos continuadores da sua doutrina até se converterem aos dogmas que a alicerçavam e o 25 de Dezembro, dia de Natal se impor como uma verdade histórica incontroversa.
Muito mais tarde, passados quase mil anos, um frade católico italiano, futuro santo que se iria juntar aos outros que decoravam, alegrando-as, as igrejas, Francisco de Assis, pediu permissão do Papa para lhe montar um cenário de nascimento. Inventou o presépio. Ficou Jesus jazendo entre palhas, de um lado o pai que não era pai, do outro a mãe virgem mesmo pós-parto, mais um burro e uma vaca. Cenário austero que serviu de pano de fundo para uma Missa de Natal, em Assis. Foi um sucesso que rapidamente se estendeu a toda a Itália, das casas nobres às mais pobres. Foi exportado para a Europa e daí para o mundo, enquanto crescia o número de figurantes, reis magos, oficiais de vários ofícios e muita bicharada. Com tal sucesso as religiões cristãs chegaram ao consenso de o Presépio ser o único símbolo de Natal inspirado nos Evangelhos. A popularidade do Presépio universalizou-se. Construíam-se dos mais singulares, despidos de grandes ornamentações, aos mais barrocamente luxuosos. Alguns eram mesmo peças artísticas.
Com tanta festa e festança o Natal começa a ser comemorado por crentes e não crentes, o que muito estimulou o comércio impulsionado pelos apelos dramáticos das campanhas publicitárias para levarem o consumo nessa época a um pico. O furor é tal que, no principio do século XX, dois norte-americanos agarram noutro santo1, que andava quase incógnito fora do seu território de origem a distribuir parcamente prendas natalícias, para o reinventarem no Pai Natal. A partir daí foi sempre a acelerar, os trenós cheios de presentes que invadiram sem perca de tempo nem contemplações os presépios e outras representações para se impor como a imagem por excelência do Natal. Nunca mais os pais natais pararam de correr pelas autoestradas do comércio, distribuindo promessas de compras, descontos, cupões, promoções, acenando quando encontram o menino, enterrado em cenários cada mais vez mais raros e kitsch, atónito com aquele frenesi e que se encolhe nas palhas com medo de ser atropelado numa daquelas desenfreadas correrias.
Com tantas luminárias, canções, decorações, flamejantes declarações de espírito natalício sobretudo os que as usam como detergente para lavar más consciências, até mesmo os mais resilentes a esses tornados se esquecem mesmo sem esquecer que o natal é quando um homem quiser, como escreveu Ary dos Santos:
Tu que dormes à noite na calçada do relento
numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
és meu irmão, amigo, és meu irmão
E tu que dormes só o pesadelo do ciúme
numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
e sofres o Natal da solidão sem um queixume
és meu irmão, amigo, és meu irmão
Natal é em Dezembro
mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
é quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão
E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
és meu irmão, amigo, és meu irmão
Corria o belo ano de 1975, cheio de esperança revolucionária e a fraternidade do trabalho nos corações e nas bocas – em alguns, infelizmente, apenas nas bocas – quando Ary dos Santos escreveu «Quando um homem quiser», que Fernando Tordo musicou para Paulo de Carvalho interpretar. Paulo de Carvalho regravou a versão original em 1991, que o leitor pode ouvir aqui:
Apesar dos avisos do poeta, se é dos que acaba por ceder aos impulsos deste mês de natal e o aproveita para oferecer uma prenda a alguém – todos acabamos por, de um ou outro modo, o fazer – prefira livros e discos. São prendas que se libertam das datas em que são oferecidas, adquirem intemporalidade.
Sem comentários, uma lista de sugestões. Lista em que os únicos representados são autores portugueses, não por patriotismos sem sentido mas para contribuir para a cultura que este ano, mais uma vez, foi um resto, uma sobra no Orçamento de Estado, muito abaixo do mínimo exigível: o 1% para a Cultura.
Dos discos...
Na música sinfónica: À Portuguesa, Concertos e Sonatas Ibéricas, Orquestra Barroca da Casa da Música, direcção e cravo Andreas Staier; From Barroco to Fado, Os Músicos do Tejo, cantam Ana Quintans e Ricardo Ribeiro, direcção Marcos Magalhães; Música Portuguesa para Quarteto de Cordas, de Luís Freitas Branco e Viana da Mota, e Lições do Trio Lacerda, pelo Quarteto Lacerda; Música portuguesa séc XVIII-XIX, Orquestra Sinfónica, maestro Álvaro Cassuto; Sinfonias n.º 3 e n.º 6, de Joly Braga Santos, Orquestra Sinfónica, maestro Álvaro Cassuto; Songs and Folk Songs, de Fernando Lopes-Graça, por Susana Gaspar, soprano, Cátia Moreso, mezzo-soprano, Fernando Guimarães, tenor, e Nuno Vieira de Almeida, piano.
Noutras músicas, uma selecção muito variada: 10 Anos de Música Tradicional Portuguesa, Galadun Galundaina; Terra-Antologia 1972-2006, dos Ganhões de Castro Verde; Dentro desse Mar, Quarteto de Concertinas com a participação vocal de Zélia Duncan, Carminho e Dora Morelenbaun; Concerto em Frankfurt/Invenções Livres/Espelho de Sons/Asas sobre o Mundo, de Carlos Paredes; Canto de Boca, de Sérgio Godinho; Sempre, de Kátia Guerreiro, e Dos Amores e dos Dias, de Camané, ambos com produção de José Mário Branco.
...e dos livros
Livros numa selecção de edições mais recentes, percorrendo vários géneros:
Anatomia Comparada dos Animais Selvagens, de António Cabrita; A Foz em Delta, de Manuel Gusmão, Obra Poética, de António Ramos Rosa; Aquele Grande Rio Eufrates, de Ruy Belo; Uma Biblioteca contra o Inferno, de João Oliveira Duarte; As Pessoas do Drama, de H. G. Cancela; Descrição Guerreira e Amorosa da Cidade de Lisboa, de Alexandre Andrade; Nocturno Europeu, de Rui Nunes; Um Bailarino na Batalha, de Hélia Correia; A Nossa Alegria Chegou, de Alexandra Lucas Coelho; Cinco Meninos, Cinco Ratos, Gonçalo M. Tavares; Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais, de Maria Filomena Molder. Sempre de lembrar que Maria Judite Carvalho e Fernanda Botelho estão a ser reeditados.
Muita música e muita literatura ficaram certamente esquecidas, tape os buracos negros destas sugestões contaminadas pelo natal.
- 1. São Nicolau, Saint Nicholas ou Santa Claus, conforme a língua em que o seu nome é pronunciado.
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