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Artes Visuais – Um ano em revista e em passo de corrida

Balanço das exposições realizadas? Colunas «Deve e haver»? No fim uma cotação +++ ou --- com a seriedade das Moodys, Fitchs & Poors que dão AAA+++ a empresas que no dia seguinte vão à falência mas rendem milhões aos especuladores seus accionistas?

<em>Ao Povo Alentejano</em>, Jorge Pinheiro, 1980
Ao Povo Alentejano, Jorge Pinheiro, 1980Créditos

Se, no plano fechado do foco estrito das artes visuais, o ano 2017 começa bem com as semanas finais das exposições inauguradas em 2016, de Pedro Chorão, organizadas por José Luís Porfírio, pintura Corpo a Corpo, no Torreão Nascente da Cordoaria, desenho A Torto e a Direito, na Fundação Carmona e Costa e a de José Escada, Não Evoluo, Viajo na Fundação Gulbenkian, organizada por Rita Fabiana, acaba em grande esplendor em Serralves com Jorge Pinheiro: D’Après Fibonacci e as coisas lá fora, projectada por Pedro Cabrita Reis, com desenho expositivo de Eduardo Souto Moura, a primeira grande exposição de um dos mais importantes pintores portugueses, depois da retrospectiva que a Fundação Gulbenkian lhe dedicou há quinze anos.

Muita outra coisa aconteceu neste ano de 2017 que, pelas melhores e as piores razões, se deve assinalar num balanço que é sempre algo imperfeito, mesmo nas contabilidades mais criativas e não pode ficar entrincheirado nos cômputos das exposições das artes visuais.

Balanço, PIM!

Os concursos de Apoio às Artes

Por onde começar? Pela miséria do Orçamento do Estado (OE) para a Cultura que continua a ser um resto, uma sobra no OE, apesar de um ligeiro aumento que não dá para mudar o furo do cinto. Num balanço de 2017 tem que se olhar preocupadamente para os processos de candidaturas de Apoio às Artes que são fundamentais para viabilizar projectos que, nos últimos anos, têm sido administrativamente adiados. Apoios estatais à criação artística que são a possibilidade de centenas ou mesmo milhares de criadores e outros trabalhadores da cultura não verem a sua actividade frustrada e da da área cultural não ser inteiramente colonizada, sem alternativa, pelos produtos mercantis, rotineiros, das chamadas indústrias criativas e culturais. Olhar preocupadamente porque os ecos das notícias sobre o curso das candidaturas são inquietantes. Labirintos de formulários complexos, com informação detalhada entre explanação de projectos, orçamentos, anexos a suportar a documentação exigida. Respostas a perguntas algo desconexas que impõem aos concorrentes que, sublinhe-se, trabalham em estruturas frágeis, um esforço desmesurado que chega às centenas de páginas e se pode perder num pormenor, na falha de uma assinatura, numa rasura.

Um exercício para os concorrentes que faz lembrar a feroz ironia de João Abel Manta quando retratou as aventuras de um cidadão português a aventurar-se numa digressão por um crítica ensaística.

Perguntas que não se percebem sobre se os projectos «valorizam a fruição artística enquanto instrumento de correção de assimetrias territoriais e de desenvolvimento humano, social, económico e financeiro», «coesão social e territorial», «qualificação dos cidadãos», «valorização do território», etc.. Em vez de inquirir, os júris deveriam verificar se os projectos correspondem a esses objectivos, porque a cultura os deve ter sempre presentes e as práticas artísticas para ela devem concorrer. O Ministério é da Cultura não é das Artes, apesar das artes  serem parte substancial e impartível da cultura. As artes não podem ser percepcionadas como uma actividade que só tem por objectivo elas próprias, como se existissem e fossem realizadas numa ilha sem qualquer relação com um continente, que é, aliás, o que confere significado à ilha. Uma equação complexa e algo paradoxal em que se deve ler atentamente Manuel Gusmão: «A poética é um produzir, um estudo da poiesis, e, a poesis já introduz artes e, portanto, podemos falar da poesis de qualquer arte sem trazer nada de exterior à arte, enquanto que, quando falamos da estética, tentamos confrontar o mundo da arte com o mundo em que vivemos, o mundo onde a arte é. Esse confronto pode não nos trazer muita coisa de bom porque substitui a descrição daquilo que as artes fazem por valores de comparação entre a figura artística e a figura do mundo e isso é aquilo que significa, por um lado, aparentemente, a necessidade de ver que a arte tem sempre a ver com o mundo mas não implica, não garante, que o que o que a arte ganha do mundo seja dito pela arte tal qual, e, portanto, é preferível escutar a arte no que ela diz enquanto arte e aí confiarmos que ela tem uma palavra sobre o mundo.» Uma tese orientadora dos concursos de apoio às artes delimitando os campos sem os excluírem.

Espera-se que se aprenda com os concursos agora feitos, que foram encerrados no fim do ano, para no futuro se simplificarem e sobretudo cumprirem prazos que viabilizem os projectos em tempo útil, o que parece extremamente difícil com os procedimentos actuais e com o modo como se constituem os júris. Foram dados passos positivos sem resolver os de fundo que deveriam nortear os concursos de Apoio às Artes. É cada vez mais evidente a urgência de uma profunda reestruturação do Ministério da Cultura para se delimitar claramente duas esferas de acção, uma com o foco no Património Cultural e nas instituições directamente dependentes, outra nas Artes Contemporâneas. Dois pilares que, nunca estanques, ficariam com maior autonomia e mesmo especialização para gerir os imensos problemas em que essas duas áreas se debatem actualmente. Duas estruturas verticais que se enraizariam numa rede horizontal que cobriria todo o território, região a região. Isso implicaria a reforma total das actuais direcções regionais de Cultura, hoje uma quase irrelevância. Um modelo de estrutura que favoreceria a descentralização positiva contra o excessivo centralismo que tem sido acentuado com as reformas que se têm feito, sobretudo desde 1980, com o aumento exponencial do aparelho do Estado na Cultura, reforçando um centralismo administrativo que nem umas vagas desconcentrações ilude. Um reestruturação que deveria ter reflexos positivos na simplificação e na descentralização dos concursos de Apoio às Artes , para que a Cultura, como se afirma no «Manifesto 1% para a Cultura», se deixe de colocar no plano de um adereço da sociedade ou de um privilégio das elites. Cultura parte inteira da saída democrática da crise que, timidamente se procura resolver, com a intervenção determinante dos trabalhadores e do povo. Cultura que deve assumir um papel central, enquanto serviço público, que assegura o direito de todos ao acesso, à criação e à fruição cultural. Cultura, pedra nuclear na formação da consciência, da soberania e da identidade nacional, dialogando, de igual para igual, com toda a cultura de todos os povos do mundo. Cultura a explorar o seu imenso potencial de criação, liberdade, transformação e resistência que deve ter um apoio decisivo por parte do Estado para não deixar destruir o que existe e não destruir o que fica impedido de existir. Os últimos orçamentos do Estado para a Cultura, melhoraram a situação em relação aos anos de austeridade sem deixarem de ser preocupantes. Um tema que merece e exige uma mais ampla reflexão.

Balanço, PAM!

A maratona das exposições

Balanço das exposições realizadas? Colunas «Deve e haver»? No fim uma cotação +++ ou --- com a seriedade das Moodys, Fitchs & Poors que dão AAA+++ a empresas que no dia seguinte vão à falência mas rendem milhões aos especuladores seus accionistas? Como avaliar o débito e o crédito de valores imateriais? Qual o peso do irremediável kitsch do Terço em Fátima e do Galo à beira Tejo da Vasconcelos, joaninha volumosa que vai, por isso ou por causa disso, voar em 2018 para aterrar os seus totens na arquitectura de guardanapos do Guggenheim de Bilbau, numa demonstração que a «Merde d’Artiste» já não fica encerrada em latas de conserva.

Qual o contributo para um possível défice? E em que colunas colocar as inúmeras exposições de artistas interessantes ou desinteressantes em não menos interessantes e desinteressantes espaços exposicionais? As estradas do mundo das artes estão entupidas com artistas interessantes para todos os gostos, desgostos e paladares. Por cá, muitos a fazerem pela vida, apoiados em retóricas tanto mais obscuras e inteligentes quanto mais indigentes são as obras para se decifrar o indecifrável em curvilíneos textos que referem a natureza performática e efémera que as obras possuem e obrigam a um mergulho documental muitas vezes hostil ao espectador ou as interrogações poéticas do sentido que se estabelecem com os objectos em experiências marcadas pelo espanto, o humor e a perplexidade deste momento de destruição que ameaça o mundo em que falar de cura e reparação é uma urgência porque noutra lauda se desafia questiona e enfrenta o esquecimento para descobrir e activar os sentimentos latentes, percepcionar a materialidade das coisas, interrogar-se sobre o processo de realização das obras e o corpo, omnipresenças nos quilómetros que se percorrem a olhar para as paredes e para o chão e para o tecto dos cubos brancos onde a obra de arte é filtrada por coleccionadores, instituições públicas e particulares, feiras de arte. Escreve-se, muito se escreve sobre a obra em meios de comunicação social, generalistas ou especializados, muitos deles suportados pelos seus circuitos comerciais. Uma massa flutuante de informação que acaba fixada na História(s) de Arte que desse modo a certificam. Nesses trânsitos procura-se ocultar que na arte a História e a crítica valem dinheiro. Está-se bem perto dos métodos de funcionamento do sistema financeiro que é o que realmente interessa porque pela primeira vez na história, na longa perspectiva da história, nesse nosso tempo pós-moderno, chegámos ao que antes era impossível conceber: a de uma arte sem significação social. É a danação do nosso tempo em que vivemos como o sujeito da canção «Ces Gens-Là»: «on ne s’en vas pas e il faut que je rentre chez moi». E reentramos no mundo das artes a percorrer quilómetros de paredes, chão e tectos dos cubos brancos onde se plantam obras classificadas como arte nas múltiplas variantes do populismo estético e da ausência de profundidade que é o traço fundamental do pós-modernismo (Francis Jameson), na fusão obscena entre estética e realidade (Marcuse) em que se pode encontrar o padrão, de novo se recorre a Jameson, nos Sapatos com Pó de Diamante de Warhol a fulgir a sua inanidade, a sua vulgaridade que ribomba com intensidade nas redes de comunicação social e nas falácias estéticas que conseguem ocultar a significação, a beleza, o juízo político das Botas Camponesas de Van Gogh. É o drama da criação contemporânea, seja lá o que isso for, em que tudo se transforma em mercadoria.

Mas esse passeio pelas exposições no ano de 2017 começou bem com o fecho de três exposições inauguradas no ano anterior. As duas de Pedro Chorão, organizadas por José Luís Porfírio, pintura «Corpo a Corpo», no Torreão Nascente da Cordoaria, desenho «A Torto e a Direito», na Fundação Carmona e Costa e a de José Escada, «Não Evoluo, Viajo» na Fundação Gulbenkian, organizada por Rita Fabiana, para acabar em grande esplendor em Serralves com «Jorge Pinheiro: D’Après Fibonacci e as coisas lá fora».

Jorge Pinheiro é um dos mais relevantes artistas da história de arte portuguesa. Nessa exposição de oitenta obras de pintura, escultura e desenho, abstratizantes ou figurativas, é determinante o estudo que o artista dedicou às sequências matemáticas de Fibonacci, estabelecidas no século XIII, que esclarecem a regra de ouro nas artes e nunca perdeu actualidade. Tem aplicações na análise de mercados financeiros, na ciência da computação, na teoria dos jogos, em muitas outras ciências. O fascínio que exerce e está bem presente em toda a extensa obra de Jorge Pinheiro é o do rigor do pensamento matemático, de como a matemática ensina a pensar e de como esse pensamento se transpõe para um sólido pensamento estético e uma não menos sólida e fascinante prática artística.

El-Rei V (Olhando um Quadro de Jorge Pinheiro – o da MetaLinguagem), Jorge Pinheiro, 1974

Esta exposição de Jorge Pinheiro é uma oportunidade de ver a grande arte, em plano igual à da selecção de obras do Museu do Vaticano que pôde ser vista no Museu Nacional de Arte Antiga com obras notáveis dos primitivos italianos Taddeo di Bartolo, Sano di Pietro, Fra Angelico, e de grandes mestres do Renascimento e do Barroco, Rafael, Pinturichio, Salviati, Pietro da Cortona, Barocci, em que a Virgem Maria é o centro da temática.

São exposições que marcam o ano de 2017, onde também é de assinalar a de «José Almada Negreiros – Uma Maneira de Ser Moderno», comissariada por Ana Vasconcelos e Mariana Pinto dos Santos, com um trabalho a sublinhar sobre esse caso muito particular nas artes portuguesas e no contexto do modernismo, que tinha na altura o centro irradiante em Paris, de um Almada, autodidacta, artista multidiversificado, que cunha toda a sua obra com o selo de uma modernidade contraditória, híbrida, complexa.

Almada, com uma energia criativa invulgar presente em toda a sua obra de poeta, ficcionista, conferencista, ensaísta, desenhador, pintor, artista gráfico, muralista, ceramista, vitralista, cenógrafo, coreógrafo, bailarino, geómetra, onde o centro é ele em estado de performance narcisista.

No percorrer das outras exposições, com as questões já assinaladas, são de referir a de «Ana Hatherty e o Barroco», no Museu Gulbenkian, as de Sérgio Pombo, no Teatro da Politécnica e no Centro Cultural de Cascais e as várias de Valter Vinagre, em muitos lugares do país que o colocam num lugar central e de relevo na fotografia.

A finalizar este capítulo uma nota para o fecho da saga Miró quando faltam uns pormenores burocráticos e saber quanto se vai pagar à Christie's, ficando, como é hábito, impunes os que armaram o imbróglio atropelando o quadro legal vigente. Há um efeito público no desfecho que não é desprezível, gerador de uma animação que de algum modo aplaina um olhar crítico. Curioso é confrontar esta apresentação pública com as muitas discussões a favor e contra ficar ou não ficar propriedade do Estado, sem que as obras fossem conhecidas ou só fossem conhecidas por um restritíssimo grupo de pessoas, na maioria sem especial conhecimento das artes. As 85 obras tinham sido compradas a granel pelo BPN. Eram um activo do banco sem qualquer preocupação que orientasse a sua selecção,o que está bem presente nesta exposição de Miró com obras de várias técnicas, temporalmente muito distantes, em que as conexões que se procurem estão dispersas. Há uma evidente irregularidade e errância entre elas, o que torna mais evidente o modo como o pintor com as suas formas abstractas se apropria dos automatismos introduzidos pelos surrealistas para os recuperar nas formas abstractas, como deriva das propostas sobre cor iniciadas com Cézanne e Matisse, o que é particularmente interessante e acaba por conferir outra relevância a esse acervo que não é particularmente notável no seu todo pelo que em causa estará a sua indivisibilidade, como publicitariamente se proclamou.

Balanço, PUM!!!

O Ku Klux Klan politicamente correcto

No mês de Dezembro, nova-iorquinos fizeram uma petição em que se exigia ao Metropolitan Museum of Art que retirasse das suas paredes o quadro de Balthus, Thérèse Dreaming.

Thérèse Dreaming, de Balthus, 1938

Motivo de tal pretensão: as muitas acusações de assédio sexual que desabaram sobre várias personalidades norte-americanas na sequência da Marcha das Mulheres em Washington que apontavam, com razão, para Trump e as suas fanfarronadas em que envolvia o sexo feminino. É de passar por cima, mesmo dando-lhes razão mas sem esquecer que muitas dessas organizações de mulheres eram financiadas por um personagem não menos torpe, Georges Soros. O assédio e a violência sexual, a desigualdade, a discriminação, a misoginia em relação às mulheres deve ser veementemente condenada. Tem uma história longa que começa se quisermos encontrar uma data quando Adão e Eva foram expulsos do paraíso, continuou imparável até aos nossos dias, apesar dos muitas conquistas alcançadas pelas lutas das mulheres e dos homens, uma luta que se inscreve na luta mais geral contra uma sociedade dividida em classes e na exploração do homem pelo homem e que não se resolve nessas lutas ditas fracturantes que são, sublinhe-se, importantes e devem ser empreendidas sem desfalecimentos. Dando-lhes razão, há que lhes retirar razão quando denunciam o que consideram ser o voyeurismo romanticizado pelas artes, sobretudo intermediado por crianças ou adolescentes, que é o que denunciam no quadro de Balthus a que, se fizesse vencimento, se seguiria o rasuramento de todas as ninfetas, para lá da sua idade, descritas, pintadas, fotografadas, filmadas, queimando na fúria dessas fogueiras inquisitoriais romances, poemas, pinturas, filmes, músicas que fariam um vazio devastador na história das artes. Quando, em França, esses novos guardiões da moral pública fazem uma manifestação à porta da Cinemateca com palavras de ordem e cartazes em que gritam, «se violar é uma arte, dêem a Polanski, todos os Césares», estão a legitimar, se calhar sem disso se aperceberem, a destruição dos Budas no Afeganistão pelos jihadistas. Polanski deve ser condenado por ter violado uma adolescente de treze anos? Deve ser condenado sem remissão, mas essa condenação não pode nem deve atirar para o índex os seus filmes. Por esse caminho vamos rasgar os poemas de Dante a Beatriz? Ou Alice no País das Maravilhas porque Lewis Carroll do que gostava mesmo era de desenhar e fotografar lolitas nuas e seminuas? Ou os filmes de Woody Allen com referências explícitas às suas histórias reais com Soon Yi, uma adolescente, sua enteada via Mia Farrow? Vamos submeter a juízos morais e criminais as obras de poetas, pintores, romancistas, cineastas, músicos, ostracizando a sua arte porque infrigem códigos morais, como Oscar Wilde condenado a dois anos de prisão, com trabalhos forçados, por cometer actos imorais com diversos rapazes? Ou Crivelli, pintor de magníficas virgens julgado e condenado por ter sequestrado e repetidamente abusado de uma mulher indefesa? Caravaggio, inúmeras vezes condenado como homem perigoso e violento. Villon por ser ladrão, boémio e bebâdo, Rimbaud e Verlaine pelos seus escândalos amorosos, Céline anti-semita e misógino, colaborador destacado do governo de Vichy, relator de listas de resistentes franceses, judeus e não judeus, que enviava para os campos de concentração nazi. Schubert por escrever magníficos lieds que trocava por engates de momento. Os filmes do realizador francês Brisseau condenado a prisão por assédio sexual? Deixamos de ouvir Mahler, dirigido por Otto Klemperer que é de uma clareza arquitectural não mais alcançada porque tinha comportamentos sexuais incontrolados que alternava com mergulhos ultra puritanos? Os exemplos multiplicam-se e esvaziariam as artes tornando-as num deserto a engrossar um índex interminável, dependente de códigos, morais, históricos e sociais com a agravante de serem variáveis com as épocas. Essa gente não percebe nem nunca perceberá porque devassos como Carlo Gesualdo ou Fillippo Lippi são capazes de pintar figuras bíblicas com a maior aura piedosa e virginal ou escrever Tenebrae ou Sabbato Sancto com um sentimento religioso e metafísico que muitos bons e politicamente correctos cristãos nunca alcançaram.

São um impulso que tem erupções recorrentes ao longo da história. Recorde-se o Concílio de Trento em que se chegou a propor acabar com a música sacra, só o bom senso de Palestrina evitou semelhante brutalismo, ou recobrir os frescos de Michelangelo na Capela Sistina de um azul celeste contínuo que faria as delícias de Yves Klein, por causa da extrema sensualidade dos episódios retratados.

De lembrar que no auge da Guerra Fria Cultural, em que a CIA empenhou biliões de dólares, no primeiro congresso de curadores norte-americanos, esse baixo clero contemporâneo que comprava arte para as grandes corporações financeiras e do complexo industrial-militar, proclamou urbi et orbi que só iriam adquirir obras de arte que não tivessem qualquer relação com política, religião, sexo. Faziam-no em nome da liberdade artística, da arte pela arte, atirando para o caixote de lixo séculos de inquietações estéticas e artísticas. Faziam-no sabendo do poder de compra que estava à sua disposição e que comandaria a liberdade artística entregue farisaica e falsamente aos ditames do mercado sustentado por retóricas estéticas em que ninguém acredita. O seu desejo final era impor um campo de concentração terrestre onde se cercariam e se possível se atirariam para as câmaras de gás as lutas de classes para triunfo do fim da história enfeitada com uma arte elegantemente congelada limpa de sexo, política e religião, para alegria do olhar cego e estúpido dos viajantes por essas falácias, amplamente difundidas por uma comunicação social mercenária. Olhar cego e estúpido que não consegue ver as artes incómodas de todos os tempos produzidas por génios como Picasso, Erza Pound, Henry Miller, Wagner e tantos outros a que colariam os emblemas das monstruosidades das suas vidas numa fúria abominável de purificação, para os ocultar soterrando-os debaixo das virtudes dos piedosos e insuportáveis versos de Claudel que sequestrou até ao fim da vida a irmã num hospital psiquiátrico por condenar a sua vida sexual.

O que estamos a assistir é uma sequência, por assim dizer natural, desse paradigma da lógica cultural do pós-modernismo na lógica do capitalismo final que faz das artes mercadorias submetidas aos valores do mercado, situando-as num nicho do mercado dos bens de luxo em que a arte, as artes se integram com a frenética urgência de produzir novas linhas de produtos inconsequentes, subtraídos de qualquer inovação ou experimentação estética que não sejam pasto para a moda e as estruturas do star-system. Um mercado concordante com a imagem política da época que estamos a viver e nos querem impor bem retratada no filme de João César Monteiro, A Comédia de Deus, na cena em que é extraído do ventre do protagonista, entrapado numa cama de hospital, um enorme falo que vai ser pousado diante de uma fotografia de Georges W. Bush, o führer do império que se considera excepcional e quer policiar o mundo. Imagem política premonitória que o realizador completa em Le Bassin de John Wayne com a frase arquétipica: «Hoje,  os novos fascistas apresentam-se como democratas.»

Estamos a viver um tempo de niilismo democrático e a arte, as artes devem ser uma trincheira contra o ghetto em que as querem encurralar tornando-a uma inutilidade num território neutro, um salão de festas divertido, inócuo, moralista ainda que controladamente extravagante, noticiado abundantemente na comunicação social dita de referência e nas revistas da moda dos vários canais em que se consomem os dias.

A arte, as artes são a luta constante que nos faz interrogar a vida, a sociedade. A arte, as artes são parte activa da luta política diária em participam sem se deixarem colonizar pela política e sem submeterem ao simplismo de censuras que atiram as obras de arte para o deserto por via da vida pessoal dos artistas que não é nem ter que ser um modelo de virtudes. Contra a actual ofensiva moralista reclama-se a clarividência de não se estabelecer uma relação directa e imediata entre a vida como foi vivida pelos artistas e as suas obras, no que pode mesmo ser uma contradição insanável.

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