Paula Soares, técnica de som, viu todo o seu trabalho até finais de Maio cancelado no espaço de uma semana. «Nós temos que viver na mesma mas estamos legalmente impedidos de trabalhar», disse em conversa com o AbrilAbril, acrescentando que as medidas anunciadas pelo Ministério da Cultura «não correspondem à situação da maior parte dos trabalhadores independentes do sector».
«No meu caso, por causa das crianças, com o RSI [Rendimento Social de Inserção] fico a ganhar mais» do que o apoio mínimo de assitência criado por causa do encerramento das escolas, afirma Paula Soares. «Eu e o meu companheiro somos os dois da área e, como grande parte dos técnicos, produtores, músicos, não sabemos como vamos pagar a renda nos próximos meses», referiu.
Num sector onde muitos trabalhadores fecham actividade parte do ano e onde muitos trabalhos são feitos sem recibos, as medidas propostas vão deixar de fora um grande número de profissionais que não cumprirão os critérios para a atribuição dos apoios. «Os trabalhadores da cultura foram os primeiros a ver tudo cancelado e serão os últimos a retomar a actividade, porque é preciso, no fim disto tudo, convencer o público para voltar a juntar-se», lembrou Paula Soares.
Quanto à suspensão dos pagamentos à Segurança Social, a técnica de som vê-a como uma falsa solução: «Suspende-se e paga-se mais tarde, por isso vai acumular-se o que se deve depois de meses sem dinheiro a entrar», disse.
O carácter intermitente destas profissões já trazia este problema há muito tempo. «De todos os trabalhos apalavrados para os próximos meses, não existe nada escrito, não podemos pedir que não cancelem um contrato que não existe», frisou.
«Não se trabalha, não há dinheiro para viver»
«Não posso deixar de pensar que a minha situação é igual à de todas as outras profissões: vivo disto, pago as contas e alimento os meus filhos tal como os outros artistas e trabalhadores de outras áreas. Logo, estamos em pé de igualdade com outros trabalhadores independentes. Não se trabalha, não há dinheiro para viver», disse a actriz Carla Maciel, sobre a situação em que se encontram os actores.
Como entretanto já se garantiu em algumas estruturas culturais públicas, Carla Maciel está de acordo que todos os cancelamentos decorrentes desta situação não ponham em causa os pagamentos aos trabalhadores envolvidos, visto que o dinheiro já havia sido alocado aos diversos projectos.
Sublinhando que a cultura é «fundamental» para a vida das pessoas, a actriz considera que «esta paragem tem de servir para reflectirmos e imaginarmos outros caminhos, para não voltarmos a repetir os mesmos erros», acrescentando que é tempo de as instituições bancárias apoiarem os trabalhadores, «uma vez que os portugueses já suaram muito para pagar as dívidas dos bancos».
A resposta é a mesma: lutar ao lado dos outros trabalhadores
A desenvolver ensaios através de vídeo-chamadas está Raul Atalaia, actor d’O Bando, que falou sobre o impacto que esta situação está a ter na companhia. Com os espectáculos e outras iniciativas presenciais canceladas, a estrutura tem mantido a comunicação com o público através do mundo virtual.
Apesar de a situação ser excepcional, Raul Atalaia acredita que a resposta dos artistas não tem de ser muito diferente: «Somos trabalhadores em Portugal e naturalmente lutaremos com os outros trabalhadores para que o Governo garanta as melhores condições possíveis para ultrapassarmos as dificuldades que agora enfrentamos», disse.
Segundo o actor d’OBando, «incentivar» e «assegurar» o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural «é uma obrigação constitucional» do Governo português, apesar de estarmos «longe de ver concretizada essa obrigação».
A cultura não pode ser condicionada pelos números
Para o realizador Fernando Vendrell, a mudança tecnológica da circulação do cinema já estava em curso antes desta pandemia. Mas uma vez que a produção de cinema e audiovisual nacional e internacional foi obrigada a parar, o realizador receia a precariedade com que estão confrontados estes profissionais. «A perspectiva é bastante negra para as empresas do sector, para os artistas, criadores e técnicos. Foi posto um travão a fundo e isso vai afectar profundamente a sustentabilidade do sector a nível económico, e colocar os seus trabalhadores, essencialmente trabalhadores independentes, a serem confrontados com a enorme precariedade», frisou.
Para o realizador, uma paragem de três a seis meses na produção pode corresponder a uma «sombra» de nove a 18 meses de «fluxo de trabalho irregular que vai afectar todos os agentes e trabalhadores do sector», para lá de uma «marca da ausência de expressão e de criatividade neste período que provoca uma perda de património cultural, social e recreativo».
O que se exige no plano político, segundo o realizador, é acabar com a «sintomatologia do efeito ou do resultado», que condiciona a produção cultural submetendo-a aos números e a uma «perspectiva utilitária». «O combate à precariedade, que tem sido usado como "bandeira política", excluiu totalmente o sector das artes e da cultura, que são os actuais escravos, lutando pelas suas convicções, procurando manter a expressão artística viva mas sobrevivendo com uma condição residual de resistência», afirmou.
«Há uma enorme responsabilidade dos governantes perante a necessidade cultural do País, como do Ensino e da Ciência. Infelizmente a sua opção tem sido sub-orçamentar e assim subvalorizar a necessidade de afirmação cultural de um País e do seu povo», referiu o realizador.