Nos últimos dias, as declarações que têm marcado o debate público sobre a greve geral deviam servir-nos para reflectir sobre o momento que vivemos e, sobretudo, sobre o sentido da nossa intervenção colectiva. Deste Governo e do conjunto de partidos que apoiam a sua política – PSD, CDS, IL e CH –, ouvimos repetidas vezes a mesma narrativa: a greve não passa de um exercício de manipulação partidária, obra de quem não ganhou eleições e agora procura, com a ajuda do descontentamento alheio, provar que ainda está vivo.
Segundo esta leitura, o Pacote Laboral representa um avanço, uma modernização necessária, uma flexibilidade que quase se diria servir para aliviar o fardo dos trabalhadores, embora, curiosamente, seja sempre o patronato quem primeiro bate palmas. Garantem que os jovens já não querem empregos para a vida (como se algum dia tivessem tido esse privilégio garantido), que o país tem de se adaptar, que o futuro exige contratos frágeis, maleáveis, prontinhos a dobrar-se às necessidades patronais e às demandas da produtividade. No entanto, é o próprio Governo que se desmente quando, há dias, a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, confessou que a actual legislação laboral estaria «desequilibrada a favor dos trabalhadores», e que seria preciso «corrigir» tal situação. Ao ouvirmos isto perguntamo-nos, não sem ironia, que espécie de desequilíbrio é este que precisa de ser invertido para que os de cima fiquem ainda mais acima.
Convém recordar, ainda assim, para que servem as leis laborais. Não surgiram do nada nem são um presente de nenhum governo benevolente: foram conquistadas. Servem para equilibrar uma relação de poder profundamente assimétrica. São o contrapeso necessário numa relação de forças que, deixada a si mesma, empurra sempre o mais fraco para uma maior exploração. Porque, na ausência de leis, vigora sempre a regra mais brutal: quem depende do trabalho para sobreviver está sempre em desvantagem perante quem o compra. Sem enquadramento legal, tudo se resolveria na linguagem do desespero: queres comer, aceitas trabalhar sem direitos; queres um tecto, conformas-te com o que te derem, e se não quiseres, há sempre quem queira.
Foram séculos de lutas organizadas, de greves, de resistência, de repressão, de violência, de vidas perdidas. Tudo para que hoje possamos falar de direitos como se fossem naturais, como se tivessem estado sempre aí: salários dignos, estabilidade, negociação colectiva, pagamento de horas extra, protecção na doença, na parentalidade, na velhice. Nada disto caiu do céu. Tudo isto foi arrancado à força da insistência e da coragem dos trabalhadores e dos seus sindicatos.
«Ao ouvirmos isto perguntamo-nos, não sem ironia, que espécie de desequilíbrio é este que precisa de ser invertido para que os de cima fiquem ainda mais acima.»
É por isso que a pressa com que falam em «flexibilizar» e em «acomodar os interesses das empresas que criam os postos de trabalho» não nos apaga a razão nem deveria intimidar-nos. As mentiras que usam como argumento são, aliás, prova da justeza da luta dos trabalhadores: se o que propõem fosse realmente tão benéfico como anunciam, não precisariam de disfarces nem metáforas, bastaria dizê-lo abertamente. Em vez disso, ensaiam a velha artimanha de declararem-se prontos para negociar, quando sabemos que, começando tudo pela perda de direitos, é evidente que o saldo será sempre positivo para os patrões, desde que nós aceitemos sentar-nos à mesa do jogo cujas regras eles escreveram e onde só eles, desde sempre, podem ganhar.
O Governo mente quando jura valorizar a saúde e os seus profissionais, quando afirma querer reforçar a escola pública, quando garante preocupar-se com o direito à habitação e com salários que permitam viver sem medo do fim do mês. E é curioso como todas estas promessas coincidem, quase palavra por palavra, com as reivindicações que os trabalhadores trazem para a rua. Mas o que se diz nos discursos, já se sabe, desmente-se nas práticas, quando não se põe o dinheiro a capacitar os serviços públicos, quando o direito à especulação se sobrepõe ao direito a uma casa, quando se promete aumentar o salário mínimo daqui a uns anos mas não agora, quando se transfere recursos públicos para o parasitismo de alguma iniciativa privada.
Temos toda a informação de que precisamos para saber que esta greve é justa como é, por princípio, a luta organizada dos trabalhadores. Sabemos bem quais são os interesses que representam os que defendem este pacote laboral: os interesses dos que ficariam satisfeitos se voltássemos a um tempo em que ser escolhido para trabalhar numa praça de jorna era quase um privilégio e em que sobreviver um dia de cada vez era tudo a que podíamos aspirar.
Esta greve geral afirma, sem rodeios, que os trabalhadores não querem as côdeas, querem o pão inteiro. E que serão eles a amassar a farinha, a ir buscar a lenha, e a acender o forno, como sempre, porque sabem que só eles são imprescindíveis ao processo produtivo.
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