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Aproveitando a corrente criada pela crise económica instalada, e ainda antes dela, a maioria esmagadora das empresas tem aproveitado, este difícil momento que vivemos, para impor práticas que fazem «letra morta» da legislação e contratação colectiva em vigor.

São inúmeros os exemplos que poderíamos utilizar: encerramentos compulsivos sem aviso prévio e sem informação sobre a manutenção do vínculo laboral e o pagamento das remunerações; caducidades intempestivas dos contratos de trabalho a termo; despedimentos arbitrários; férias gozadas de forma obrigatória e compulsiva, sem respeito pelo processo de marcação previsto na lei e convenções colectivas; reduções salariais unilaterais através da supressão de prestações variáveis; etc.

«enquanto para as empresas a crise pandémica tem sido uma lotaria do Natal paga pelo Governo e, consequentemente, por quem trabalha, para os trabalhadores tem sido um poço sem fundo de derrotas no jogo da batota»

A imaginação é fértil e a desfaçatez também, principalmente quando, por entre loas à ética empresarial e à responsabilidade social das organizações, uma parte importante destas empresas, mesmo com tão ilícito e imoral histórico laboral, assim mesmo se candidatam aos apoios para redução da actividade por motivo de crise empresarial – vulgo lay-off, lay-off simplificado ou mecanismo de apoio à retoma – vendo-os aprovados de forma liminar e passando a usufruir de apoios sucessivos pagos por todos nós, inclusive pelos trabalhadores afectados. Na maioria dos casos, não mais do que para salvar os lucros e prémios dos seus administradores.

Tem sido um regabofe de desregulação e prémio por mau comportamento social, senão vejamos alguns exemplos, respeitantes a medidas tomadas no âmbito da crise pandémica e com impacto no trabalho:

1. Suspensão e encerramento da actividade em alguns sectores, durante o estado de emergência

Ganhos das empresas:

- Poupança de custos com remunerações, energia, água, seguros e internet e desgaste de instalações e equipamentos

- Antecipação do gozo das férias marcadas, mantendo o trabalhador activo no período de retoma

Perdas dos trabalhadores:

Perda de emprego por caducidade dos contratos a termo e por encerramento compulsivo das instalações

Perdas remuneratórias diversas (prémios, prestações complementares e acessórias)

Gozo forçado de férias fora dos períodos acordados e previamente marcados

Descaracterização da função de recuperação mental e física do direito a férias

2. Recurso ao lay-off, lay-off simplificado ou mecanismo de apoio à retoma

Ganhos das empresas:

- Poupança de salários e de prestações retributivas complementares e acessórias não reportadas

- Poupança na retribuição das férias, reforçada por parecer da ACT justificando o corte ilegal nesta prestação

- Recebimento de subsídios diversos como o de 1 salário mínimo por trabalhador, pago de uma vez só, após o “lay-off” simplificado

- Isenção do pagamento da TSU

- Diferimento e fraccionamento do pagamento de impostos

- Diferimento das restituições de IVA, um verdadeiro empréstimo concedido

Perdas dos trabalhadores:

- Perda de 30% da retribuição

- Perda do recebimento prestações complementares e acessórias omitidas pela entidade patronal na declaração para a segurança social

3. Recurso ao Teletrabalho:

Ganhos das empresas:

- Poupança em energia, internet, água, desgaste de instalações e equipamentos

- Poupança em consumíveis e serviços de apoio ao trabalhador

- Estudos comprovam que os trabalhadores tendem a trabalhar mais horas, com menos interrupções e com maior disponibilidade

Perdas dos trabalhadores:

- Aumento dos encargos com energia, internet, água, energia e desgaste de instalações e equipamentos

- Custos com mobiliário e adaptação de local e trabalho

- Aumento da confusão entre trabalho e vida pessoal

- Impedimento de gozo do direito a assistência extraordinária a filhos menores, na sequência de parecer da ACT que viabiliza a escolha de uma ou outra possibilidade pela entidade patronal

Nota: esta lista não é, nem pretende ser, exaustiva.

“Não bastando as perdas salariais, com o teletrabalho, os trabalhadores foram também forçados a co-financiar as despesas com factores de produção como energia, água, equipamentos, etc”.

Assim, enquanto para as empresas a crise pandémica tem sido uma lotaria do Natal paga pelo Governo e, consequentemente, por quem trabalha[fn]De acordo com o PORDATA, em 2019, IVA (que as empresas não pagam) e IRS totalizaram 67,4% de toda a receita fiscal, sendo que o IRC apenas se ficou pelos 13,7%.[/fn], para os trabalhadores tem sido um poço sem fundo de derrotas no jogo da batota. Mais de 200 mil perderam o emprego e cerca de 900 mil perderam, pelo menos, 30% da remuneração, por via do lay-off; muitos outros perderam remunerações variáveis, como prémios, isenção de horário e outras; outros tantos perderam as férias; e não menos que esses, passaram a ter de suportar custos de exploração da actividade empresarial, ao mesmo tempo que a levavam para casa, promovendo a confusão entre trabalho e vida pessoal.

Em suma, tem sido um verdadeiro pacto leonino: um pacto em que apenas uma parte ganha, tudo a pretexto de que se trata de medidas que visam o afastamento social e a protecção do emprego. Não obstante, as empresas que recorrem ao lay-off fizeram caducar uma imensidão de contratos de trabalho com vínculo precário e, passado o período da suspensão, começam a fazer planos para despedimentos colectivos e extinção e postos de trabalho. Acima de tudo, tem-se tratado de um processo de transferência de capital para as empresas, em especial as grandes – com mais de 500 trabalhadores –, que embolsam cerca de 70% das «ajudas».

“Das linhas de crédito criadas pelo governo para apoio à actividade empresarial – no montante de quase 3 mil milhões de Euros – cerca de 70% foram parar aos bolsos das grandes empresas, que são responsáveis por apenas 30% do emprego”.

Como se isto não fosse suficiente, e por culpa exclusiva dos sucessivos Governos, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) não tem reunido as condições para se encontrar à altura da encomenda. Ao invés de se assumir como a «polícia» do cumprimento dos direitos laborais, determinados interesses, bem instalados no poder de Estado, pretendem que esta assuma, mais precisamente, o papel de guarda-costas do incumprimento. Esta postura, resultante de décadas de degradação dos seus serviços e recursos, faz com que, na senda do que também sucede com a Direcção-geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT), estas duas entidades se lancem ao encontro de explicações jurídicas fabulosas que possibilitem – e justifiquem? – a actuação patronal.

Seriam estas duas organizações – com maior relevância para a ACT – as instituições que deveriam cuidar pela protecção da parte mais fraca da relação de trabalho, papel atribuído ao direito do trabalho, para cuja fiscalização e promoção existem. Não seria pedir-lhes muito, apenas o cumprimento do seu estatuto, definido na Lei 102/2000, de 2 de Junho, «Estatuto da Inspecção-geral do Trabalho», nos dois primeiros pontos do artigo 1.º, da seguinte maneira:

1 - A Inspecção-Geral do Trabalho é um serviço administrativo de acompanhamento e de controlo do cumprimento das normas relativas às condições de trabalho, emprego, desemprego e pagamento das contribuições para a segurança social.

2 - A Inspecção-Geral do Trabalho desenvolve a sua acção no âmbito de poderes de autoridade pública, tendo em vista a promoção da melhoria das condições de trabalho, de acordo com os princípios das Convenções n.os 81, 129 e 155 da Organização Internacional do Trabalho.

Para melhor se compreender a que nos referimos, no presente artigo, atentemos apenas nos seguintes exemplos, comuns em tempos de Covid-19:

1. As empresas que recorreram ao lay-off, sempre oportunistas, decidiram fazer coincidir – de forma unilateral, compulsiva e intempestiva – as férias dos trabalhadores com a redução a actividade, tudo para lhes pagarem como retribuição das férias, não a sua retribuição normal, mas a compensação retributiva, cortando-lhes, pelo menos, 30% de remuneração.

Os trabalhadores queixaram-se à ACT e o que disse esta – com apoio «moral» da DGERT – é fantástico: segundo a ACT (e a DGERT), durante o lay-off, a retribuição do trabalhador passa a ser a «compensação retributiva». Tudo com vista à legitimação do corte.

Claro que nem valeu a pena dizer: «compensação retributiva» e «retribuição» não são a mesma coisa, pois a primeira visa compensar, precisamente, a ausência da segunda; que o código do trabalho não estabelece essa analogia, e que ao invés, refere que a retribuição das férias consiste na retribuição que o trabalhador receberia se «estivesse em serviço efectivo», o que não acontece no lay-off; que não é preciso fazer uma analogia legal entre os dois conceitos, porque não há lacuna na lei a preencher, uma vez que o Código do Trabalho regula a matéria no n.º 1 do artigo 264.º, não abrindo qualquer excepção quanto ao lay-off; que a retribuição das férias reporta a férias vencidas em momento anterior, ou seja, a um período em que o trabalhador recebia a sua retribuição normal… A todo este rol de argumentos, a ACT não respondeu, mantendo simplesmente a sua posição, permissiva e injusta para com os trabalhadores.

2. Algumas empresas desataram a fazer a antecipação das férias de anos vindouros. Num caso conhecido, uma empresa antecipou férias de 2021, deixando os trabalhadores sem férias para esse ano. Queixa enviada para a delegação local da ACT e, a resposta? Que está tudo muito bem, pois foi aceite pelos trabalhadores.

Como se o Código do Trabalho não previsse que as férias a gozar são apenas as férias vencidas; que a lei não prevê qualquer possibilidade de antecipação; que não há convenção colectiva que o faça; que os acordos individuais – valendo o que valem – não podem ser menos favoráveis do que a lei a as convenções colectivas; que os trabalhadores não podem ficar com menos do que 20 dias úteis de férias em cada ano; que as férias obedecem a regras de marcação e visam a recuperação física e mental pelo trabalho prestado.

Nenhum destes princípios legais veio à cabeça do jurista da ACT que respondeu. Nenhum! Talvez porque estivesse mais preocupado em permitir o incumprimento do que em impedi-lo!

3. Noutro local, partindo da norma legal de que a «assistência extraordinária à família» prevista no n.º 3 do artigo 23.º da Lei 10-A de 13/03, não é aplicável ao trabalhador se este se encontrar em teletrabalho (mesmo que seja somente o seu cônjuge) – e que terá origem nas fantásticas teorias segundo as quais, em teletrabalho, o trabalhador pode fazer tudo o resto –, algumas empresas decidiram ordenar aos trabalhadores que se encontravam em assistência extraordinária à família, que estes passassem para o regime de teletrabalho.

Perante a queixa à ACT e à CITE, estas duas entidades vieram dar razão aos trabalhadores, uma vez que, tendo os trabalhadores em causa, filhos menores de 12 anos que requeriam acompanhamento constante, seriam estes a decidir se lhes era, ou não, possível, prestar teletrabalho e ao mesmo tempo tomar conta dos mesmos.

Reclamação da empresa para a ACT de Lisboa e, inevitavelmente, veio esta contradizer a sua delegação local e a própria Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), argumentando que cabe à entidade patronal avaliar se o trabalhador – tendo em contas condições materiais concretas e as necessidades dos seus filhos – tem, ou não, possibilidade de fazer as duas coisas ao mesmo tempo e assim optar pelo teletrabalho, ou pela assistência a filhos.

Esta então é muito grave, pois a ACT vem dizer que a avaliação, o cuidado, o auxílio, a manutenção da segurança, a prevenção da saúde dos filhos, que cabe a quem tem o poder parental – neste caso os pais –, transita para a entidade patronal, por obra sabe-se lá de que lei.

Quando a lei determina que os pais possam ser incriminados por não assegurarem as condições adequadas de segurança aos seus filhos, quando a lei obriga os pais a não os exporem à insegurança e ao abandono, quando a lei apenas permite a transmissão do poder parental nalgumas – poucas – situações, eis que a ACT o faz automaticamente, por obra da necessidade que tem de tudo acomodar às necessidades das empresas.

Gostaria de questionar a ACT sobre o seguinte: se numa situação destas, se devido ao trabalho que tem de efectuar, o trabalhador não reunir as condições de vigilância e a criança tiver um acidente, a quem é que a protecção de menores e o Ministério Público vão assacar responsabilidades? Ao patrão?

São estes e outros exemplos que tornam veemente e urgente, não apenas um reforço da ACT, mas uma reorientação do seu papel. Algo de muito grave se tem passado nos últimos anos para aqueles lados. Não que já não houvesse queixas, mas nunca em situações tão graves e perante incumprimentos tão evidentes.

“Esta mudança operada na ACT, nos últimos anos, coincide com a crescente desregulação da legislação laboral, a destruição da contratação colectiva e com as reivindicações patronais de que “o Código do Trabalho também tem de proteger as empresas”.

Os trabalhadores, o povo, as famílias e o país precisam de uma ACT que proteja o direito humano à dignidade, em situação de trabalho, precisam que a ACT cumpra o seu papel de fiscalização do incumprimento laboral, o que também tem vindo a decrescer de forma dramática, fazendo hoje a ACT muito menos visitas a locais de trabalho, do que no passado, numero que tem tendencialmente decrescido ao longo do tempo. A este respeito, de acordo com os dados publicados no Relatório de Actividades desta entidade, o número de locais de trabalho objecto de visita passou de 80 159 locais de trabalho visitados em 2011 para apenas 25 200 em 2018.

Portugal precisa de uma ACT que defenda a aplicação do direito do trabalho, ao invés de se preocupar com a liberdade de iniciativa económica das empresas, com a qual parece estar permanentemente preocupada.

Não se defraude, portanto, a luta de todos os que, nos últimos dois séculos, deram a sua vida – literalmente, nalguns casos –, para garantir que hoje, quem trabalha, o possa fazer com dignidade.