O plano é uma artimanha mediática e propagandística que, ao cabo de quase dois meses desde a declaração de um falso cessar-fogo no território, obteve vários êxitos importantes para os seus mentores. Êxitos integrados numa campanha ocidental, em conluio com Israel, para retirar o genocídio de Gaza dos olhos das populações mundiais, ao tentar convencê-las de que se abriu um caminho para a pacificação do enclave palestiniano. Enquanto tudo continua mais ou menos na mesma, pois nem sequer cessar-fogo existe.
Esta é, sem dúvida, a mais bem sucedida manobra daqueles adeptos e praticantes do genocídio palestiniano que, ao cabo de dois anos de extermínio sistemático, perceberam que o caminho seguido, principalmente desde 7 de Outubro de 2023, levantava uma onda de indignação mundial cada vez mais intensa, e na sequência da qual o feitiço se poderia virar, hipoteticamente, contra o feiticeiro. O isolamento de Israel era crescente, de tal maneira que até o desvairado Trump e as desorientadas instituições da União Europeia o perceberam.
Outro êxito da tragédia de enganos montada para que, no essencial, tudo se mantenha na mesma – ou, no mínimo, em condições para que a concretização do genocídio do povo palestiniano continue em aberto – foi a própria «credibilidade» conquistada pelo «plano Trump». Como se, por milagre, o vínculo «indestrutível» entre os Estados Unidos e Israel, e vice-versa, fosse atacado por um rebate da consciência que não possui, se condoesse do sofrimento palestiniano e tenha idealizado maneira de arrepiar caminho sem perder a face.
A orquestra mediática globalista assumiu o papel que lhe está destinado para que estas trampolinices funcionem; governos e instâncias internacionais, incluindo – sem vergonha – as do mundo árabe fingiram mobilizar-se para transformar a trapaça em algo funcional e humanitário. Até que, por fim, o Conselho de Segurança da ONU, essa entidade transformada em manto de cobertura da ordem imperial, decidiu assumir como sua a estratégia engendrada por um indivíduo sem quaisquer princípios como é Donald Trump. Apesar de a UNCTAD, Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento, ter apurado que a situação em Gaza é a mais grave registada desde sempre.
A posição do Conselho de Segurança vem confirmar – o que, em boa verdade, era desnecessário – que a Rússia e a China, com as oportunistas abstenções, foram incapazes de manifestar um mínimo de solidariedade humanista perante um povo que continua condenado à morte. É impossível que em Pequim e em Moscovo qualquer dirigente no exercício das suas funções desconheça que o «plano Trump» não tem qualquer ponto de contacto com o Direito Internacional aplicável à questão da Palestina e até ignora, de maneira ostensiva, o direito à criação de um Estado Palestiniano. Daí que quando algum governo, como os dos países da União Europeia, afirma que defende «a solução de dois Estados» e, ao mesmo tempo, se cola ao «plano Trump», não passa, agora mais do que nunca, de um descarado mentiroso.
«A orquestra mediática globalista assumiu o papel que lhe está destinado para que estas trampolinices funcionem; governos e instâncias internacionais, incluindo – sem vergonha – as do mundo árabe fingiram mobilizar-se para transformar a trapaça em algo funcional e humanitário.»
Outro dos grandes êxitos da «credibilidade» da iniciativa lançada pelo presidente norte-americano contempla directamente o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Não tenhamos dúvidas de que o documento tem igualmente a mão do chefe do governo sionista, não apenas pelo seu conteúdo contrário ao Direito Internacional, como pela oportunidade que lhe abre para prolongar a continuidade à frente do executivo, apesar de estar a contas com a própria justiça sionista – cada vez menos independente.
Netanyahu falhou o objectivo por ele declarado ao lançar a fase de intensificação da carnificina em Outubro de 2023, que era o de liquidar o Hamas – leia-se a Resistência Palestiniana em armas. Apesar da desigualdade de forças e meios em presença, e mais de 70 mil civis mortos depois, o Hamas e os outros grupos que constituem a frente de resistência à ocupação mantêm-se activos.
Na verdade, o objectivo pretendido pelo primeiro-ministro de Israel com o «plano Trump» era o de conseguir libertar os reféns que ainda estavam em poder das forças palestinianas, aliviando a carga política e o descontentamento popular que pairavam sobre ele por não conseguir fazer regressar a Israel todos os sequestrados, vivos ou mortos. Para tal, foi montada a trapaça do cessar-fogo, de modo a que os reféns fossem trocados pela libertação de numerosos presos políticos palestinianos. Cessar-fogo, porém, nunca chegou a haver. Este processo não passa de uma ilusão vendida por dirigentes políticos, os media globalistas e agora o Conselho de Segurança da ONU, para que em todo o mundo haja a noção de que o massacre em Gaza foi suspenso e a pacificação do território possa estar à mão de semear. Isso seria garantido por uma administração tecnocrática do território sob a supervisão de um «Conselho de Paz» chefiado pelo próprio Trump, acolitado pelo burlão Anthony Blair e, naturalmente na sombra, pelo próprio Netanyahu – por certo, tendo em conta o histórico, uma enorme vantagem para o reconhecimento dos direitos dos palestinianos; e também a presença no terreno de uma força militar internacional de «estabilização», isto é, uma nova versão da ocupação que iria complementar a acção das tropas israelitas no enclave, acantonadas no interior de uma denominada «linha amarela», uma área sempre passível de ser expandida. Este sistema não terá como consequência a contenção do genocídio, ao contrário do que é garantido aos cidadãos de todo o mundo.
«Este processo não passa de uma ilusão vendida por dirigentes políticos, os media globalistas e agora o Conselho de Segurança da ONU, para que em todo o mundo haja a noção de que o massacre em Gaza foi suspenso e a pacificação do território possa estar à mão de semear.»
Do processo resultará, eventualmente, uma conveniente desaceleração temporária do extermínio e da expulsão em massa dos habitantes do território – com fins propagandísticos. À qual sucederá, mais tarde ou mais cedo, graças a uma qualquer provocação oportuna «do Hamas», e depois de Israel se recompor dos insucessos militares registados, uma intensificação do massacre para os níveis adequados ao objectivo último do sionismo, uma Palestina sem palestinianos.
Quem tentará impedi-lo? Apenas a Resistência Palestiniana e a solidariedade de milhões de cidadãos mobilizados em todo o mundo. Sabemos agora o suficiente para estar certos de que nenhum dirigente mundial – nenhum – mexerá um dedo para contrariar, de maneira efectiva, os desígnios do sionismo, permitindo assim que as leis terrenas e o Direito Internacional sejam substituídos por uma «lei divina» que fanáticos enlouquecidos ao serviço de colonialistas frios, calculistas e desumanos foram desencantar no meio das ficções cruéis do Antigo Testamento. É isso que significa o preito de vassalagem a Israel que se enraizou nos governos de todo o mundo.
Irresponsabilidade diplomática e mediática
Nas suas deambulações doentias pelas vias do absurdo, do militarismo e do totalitarismo, Donald Trump usa uma cartola da qual agora retira, em passes de mágica recebidos com a devota imbecilidade mediática, sucessivos «planos de paz» para os conflitos do mundo. O Nobel da Paz escapou-lhe este ano porque as urgências de uma mudança de regime na Venezuela deram prioridade a uma golpista fascista venerada em toda a «civilização ocidental», mas em 2026 o seu favoritismo é total: quantos mais planos engendrar, maior a possibilidade de ser recebido em apoteose em Oslo.
Há o «plano» para a Ucrânia, «planos» para o relacionamento com a China, «plano» para o Médio Oriente em geral, uma vez restaurada a bonança com a Arábia Saudita – o esquartejamento de Khashoggi é episódio que já lá vai – «plano» para a Síria depois da calorosa recepção na Casa Branca concedida ao terrorista da Al-Qaida que agora veste Armani.
O «plano» pioneiro, porém, foi o de Gaza. De Gaza, notem bem, e não da Palestina, incluindo os territórios ocupados da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, indispensáveis para a construção do Estado Palestiniano independente, determinado pelo Direito Internacional.
Um «plano» generoso em 20 pontos e sustentado por uma declaração de cessar-fogo que, jura-se nas farândolas mediáticas, começou em 10 de Outubro.
Esta é, porém, mais uma grosseira mentira. Não existe um cessar-fogo porque, como seria de esperar, um tal conceito é apenas um termo vazio para Israel, um instrumento para atingir objectivos imediatos para depois os transformar em factos consumados.
No Verão de 1982, durante uma das invasões israelitas do Líbano e o cerco selvagem a Beirute Ocidental, presenciei e vivi os resultados de 11 declarações de cessar-fogo assinadas por Israel, com garantias dadas pelos Estados Unidos. Todos foram violados após curtas horas de existência. O 12.º, subscrito em meados de Agosto, representou para Israel uma confissão de derrota militar. Apesar da violência do cerco, o governo sionista de então, presidido pelo criminoso de guerra (e Prémio Nobel da Paz) Menahem Begin, reconheceu que não conseguiria vencer a resistência unida palestiniana e libanesa e entrar em Beirute Ocidental.
Nos termos do acordo, Begin e o seu ministro da Defesa, Ariel Sharon – outro criminoso de guerra – deveriam ter retirado as suas tropas para Israel, mas não o fizeram, perante a complacência de «tropas de interposição» constituídas por contingentes norte-americanos e franceses.
«No Verão de 1982, durante uma das invasões israelitas do Líbano e o cerco selvagem a Beirute Ocidental, presenciei e vivi os resultados de 11 declarações de cessar-fogo assinadas por Israel, com garantias dadas pelos Estados Unidos. Todos foram violados após curtas horas de existência.»
Pouco depois, aproveitando a desmobilização do dispositivo de defesa de Beirute Ocidental, cumprido nos termos do acordo de cessar-fogo, as tropas israelitas entraram nesta metade da capital libanesa e patrocinaram as repugnantes acções de extermínio praticadas contra civis indefesos dos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Chatila.
Foi em 17, 18 e 19 de Setembro de 1982. Nessa ocasião apurei duas verdades que ficaram como lições de vida: os acordos de cessar-fogo são letra morta para Israel; e as forças internacionais de «interposição», ou de «estabilização», como a que agora Trump engendrou como um dos instrumentos do seu «Conselho de Paz», são tropas cujos objectivos reais não passam de garantir a concretização de objectivos do interesse israelita e das potências coloniais ocidentais. Num enquadramento destes, o papel dos palestinianos é o de continuarem a ser vítimas de um genocídio, mesmo que este assuma, temporariamente, modalidades mais «benignas». Pelo menos até que o assunto desapareça das primeiras páginas dos jornais e das aberturas dos telejornais, sempre «de referência». O que tem vindo a acontecer.
A incidência única do «plano de Trump» sobre a Faixa de Gaza equivale a tentar enterrar de vez a possibilidade de ainda haver alguma negociação sobre a criação do Estado Palestiniano. Desde 10 de Outubro de 2025, Israel praticou mais de 500 violações de cessar-fogo, efectuou bombardeamentos mortíferos e arrasadores que se prolongaram por dias inteiros, matou mais de 350 civis, 70 dos quais crianças. Além disso, a continuação da ocupação militar sionista e os bombardeamentos constantes mantêm a situação humanitária e sanitária em níveis insustentáveis de degradação e não permitem o realojamento das populações deslocadas, ao menos nos escombros das suas residências arrasadas. «Isto é um pesadelo, não é um cessar-fogo», declarou Faiq Ajour, um residente de Gaza que já perdeu 30 membros da sua família desde Fevereiro de 2024, citado pela televisão Al-Jazeera.
Enquanto Gaza se mantém como o epicentro do genocídio, na Cisjordânia e na região de Jerusalém Leste, a colonização terrorista progride todos os dias. Residências de famílias palestinianas continuam a ser arrasadas sem qualquer suporte do aparelho judicial sionista, e os colonos, com apoio militar sempre assegurado, destroem sistematicamente as terras, a agricultura e as árvores dos territórios ocupados, não pondo em causa apenas a sobrevivência de comunidades inteiras. Com estas práticas tentam desenraizá-las de terras e produções que fazem parte do modo de vida secular de gerações de palestinianos de variadas origens étnicas e cultos religiosos. Desde 9 de Outubro, data em que começa anualmente a apanha da azeitona, os díscolos coloniais sionistas arrasaram mais de 10 mil oliveiras e destruíram milhares de toneladas da produção recolhida. Enquanto isso, o «muro de separação» continua a progredir, isolando comunidades palestinianas e sequestrando-as nas próprias aldeias, vilas e cidades.
Neste cenário, que reduz o «plano Trump» a nada, a não ser garantir a continuação da aniquilação dos direitos e do próprio povo palestiniano, Benjamin Netanyahu continua a dizer e a repetir que «a colonização da Cisjordânia não vai parar»; e que «nunca haverá um Estado Palestiniano». Todos os dirigentes com responsabilidades através do mundo ouvem, calam-se e não se movem um centímetro no sentido do Direito Internacional, submetendo-se, por omissão, à «Lei Divina» que sustenta a doutrina sionista e à convicção da clique governante, nela inspirada, para se definir como «povo eleito». Como dizia o rabino Ovadia Yussef, fundador do partido fundamentalista e governamental Shass, «os estrangeiros nasceram apenas para servir o povo de Israel; sem isso não teriam lugar no mundo». Por inacreditável que pareça, esse absurdo transformou-se em realidade.
Afinal, tratando-se de uma situação instituída que nenhuma potência mundial está verdadeiramente interessada em corrigir, de modo a impôr a vigência do Direito Internacional, por que razão Trump e os seus acólitos europeus, todos fiéis servidores de um energúmeno como Benjamin Netanyahu, inventaram estes «planos» e «conselhos» num pretenso caminho para a «paz», a não ser retirarem a tragédia de Gaza dos olhos do grande público?
«Neste cenário, que reduz o "plano Trump" a nada, a não ser garantir a continuação da aniquilação dos direitos e do próprio povo palestiniano, Benjamin Netanyahu continua a dizer e a repetir que "a colonização da Cisjordânia não vai parar"; e que "nunca haverá um Estado Palestiniano".»
O verdadeiro objectivo, tácticamente dissolvido no palavreado incoerente dos 20 pontos, é a exigência de que a Resistência Palestiniana deve desarmar-se – medida que, naturalmente, não foi aceite por esta no quadro do «cessar-fogo». O «plano de Trump» e as proclamações laudatórias dos dirigentes mundiais, sobretudo os ocidentais, não têm dado grande publicidade a esta rejeição, por não querem agitar o ambiente ficcional de «harmonia», «esperança» e, no fundo, de hipocrisia que envolve todas esta fase da perseguição ao povo palestiniano. E insistem, por outro lado, que se trata de «desarmar o Hamas», formulação viciada e propagandística que continua a tentar associar as operações de genocídio aos acontecimentos de Outubro de 2023. Como se o falsamente designado «problema israelo-palestiniano» tivesse nascido nessa data e não existisse há mais de um século, desde que o sionismo colonialista o criou segundo o insolente e doentio conceito de «povo eleito», destinado a ocupar «uma terra sem povo», que os próceres sionistas e seus cúmplices insistem em tornar realidade.
Ora, o Hamas é apenas um braço da Resistência Palestiniana, o mais influente devido às circunstâncias do «processo de paz» idealizado pelo primeiro-ministro Isaac Rabin, nos anos 90 do século passado. Esta iniciativa estratégica do chefe sionista de então criou uma divisão dramática entre as principais organizações representativas do povo palestiniano. A Resistência armada inclui agora o Hamas e a Jihad Islâmica, grupos fundamentalistas religiosos, mas também organizações históricas seculares como a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), a Frente Democrática de Libertação da Palestina (FDLP), outros grupos laicos de menores dimensões e também grupos dissidentes da Fatah, que foi o mais importante «partido» da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Os principais dirigentes desta organização optaram, a partir do fracassado «processo de paz», por ficar estagnados, dependentes de Israel e da armadilha em que se transformou a Autoridade Palestiniana remetida a Ramallah – uma entidade desgastada e cercada que parece ter abandonado alguns dos princípios nacionais palestinianos.
«Esta iniciativa estratégica do chefe sionista de então criou uma divisão dramática entre as principais organizações representativas do povo palestiniano.»
O «plano de Trump» é, portanto, uma farsa propagandística através da qual pretende tornar a «paz» na Palestina e a «solução final» da «questão israelo-palestiniana» dependentes da rendição dos palestinianos. Ou seja, estes deixariam de se defender da violência sionista e aliados – terrorismo de Estado – e limitar-se-iam a seguir, como gado para o matadouro, o destino pretendido pelos seus carrascos. Se a Resistência Palestiniana depuser as armas abdicará do único instrumento que ainda lhe permite fazer frente ao inimigo sionista e infligir-lhe insucessos que mantêm vivos, por extraordinário que isto pareça, o alento e a esperança do povo palestiniano.
Sabemos há muito que o conceito ocidental de «paz» se transformou em guerra e em pretexto para garantir o domínio imperial e colonial. O «plano Trump» colocou na ordem do dia o mais hipócrita e totalitário conceito de «paz»: o da rendição que conduz os povos a abdicarem dos seus direitos e da própria existência. O «plano Trump» é um nado-morto que, no entanto, fará correr muito sangue inocente e criará muitas centenas de milhares de refugiados mais, desenraizados e esfomeados. A «lei divina» do sionismo continua a fazer o seu caminho e a exceder-se na criatividade para fazer tábua rasa de quaisquer direitos humanos. E os senhores do mundo curvam-se perante ela.
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