Na passada sexta-feira, assinalou-se o Dia Internacional de Erradicação da Pobreza e o Público destacou: «mulheres têm 14% mais probabilidades de serem atingidas pela pobreza». Também a CIMH/CGTP assinalou a data com um comunicado que aponta o risco aumentado de pobreza entre as mulheres, decorrente dos baixos salários e pensões, da precariedade, da discriminação e desigualdade remuneratória, entre vários fatores a que acresce a urgência na habitação. Problemas que tenderão a agravar-se com a implementação das medidas anunciadas pelo Governo para a habitação ou se o Pacote Laboral for aprovado. Nos últimos meses temos também assistido a um número sem precedente de bebés a nascer em ambulâncias, pelo crónico encerramento de urgências e valências de saúde materno-infantil. Nos últimos 3 meses registaram-se ainda 7 700 ocorrências de violência doméstica, entre as quais o homicídio de cinco mulheres.
No entanto, na sexta-feira, o Parlamento português foi palco de uma intensa discussão em que se rasgaram vestes pelos direitos das mulheres. O País pode finalmente respirar de alívio: foi aprovada a proibição do uso do niqab e da burca proposta pelo Chega, com os votos de PSD, IL e CDS-PP.
Inventar problemas e dar as soluções... para deixar tudo na mesma
O leitor poderá justamente questionar-se quantas vezes viu alguém usar uma burca em Portugal e provavelmente chegará à conclusão de que é algo raríssimo e não compreende a necessidade de legislar esta matéria. E tem razão.
Mas a extrema-direita, que domina e intoxica o debate público adubada pela comunicação social e pelo algoritmo, utiliza sempre o mesmo guião. Semeia o caos, ficciona realidades alternativas ou distorce problemas reais, cria papões e bodes expiatórios, para depois apresentar «soluções». Monopoliza o debate político e distrai as camadas mais prejudicadas pela atual política, para assim amnistiar os verdadeiros culpados dos graves problemas sociais que enfrentamos e neutralizar a vontade de transformação.
Os «anti-sistema» são mesmo o que de mais conveniente há para o sistema.
Desta vez, importaram a polémica sobre a utilização do véu islâmico, um tema que cavalga medos incutidos pela narrativa da Grande Substituição e da Islamização da Europa. Estas teorias, que empestam as plataformas digitais, têm sido responsáveis pelo aumento da islamofobia dirigida à comunidade de muçulmanos no nosso país. Uma comunidade que, mesmo atendendo aos dados mais maximalistas, não chega a 1% da população residente e é composta por muitos cidadãos nacionais (e não apenas imigrantes, como se quer fazer crer).
A instrumentalização da dignidade da mulher
O projeto de lei do Chega que «proíbe a ocultação do rosto em espaços públicos salvo determinadas exceções» é fundamentado com um mix de defesa das mulheres/laicidade do Estado/segurança pública, mas o retrogosto é eminentemente o da xenofobia.
Disse-se que «uma mulher que pela sua cultura foi forçada a usar burca deixou de ser uma mulher livre e independente, passou a ser um objeto», por entre fortes aplausos da bancada do CH, profundamente respeitosa para com as mulheres, como se sabe, desde logo as que frequentam o próprio hemiciclo. A mesma bancada da deputada que «não quer alguns direitos dos homens» e defende que uma criança de 10 anos violada deve ser forçada levar a gravidez até ao fim.
«Desta vez, importaram a polémica sobre a utilização do véu islâmico, um tema que cavalga medos incutidos pela narrativa da Grande Substituição e da Islamização da Europa. Estas teorias, que empestam as plataformas digitais, têm sido responsáveis pelo aumento da islamofobia dirigida à comunidade de muçulmanos no nosso país.»
Ouvimos o CDS dizer que «Portugal não é um país de mulheres propriedade de homens», apesar de este partido se sentir legitimado a impor a gravidez a uma mulher que não a deseja, votando-a ao horror do aborto clandestino, que tantas vezes resultou na morte da própria mulher. Ou de ter sido contra as alterações ao regime do casamento e divórcio.
Pudemos ouvir a IL vociferar que o Estado (o tal Estado-paizinho) deve decidir sobre o que as mulheres podem ou não vestir. Houve um pouco de tudo, com o PSD a secundar e a viabilizar a proposta na votação.
Mas ninguém se engane: nada disto foi sobre mulheres. Nem sobre dignidade ou igualdade. Como bem apontou o PCP, o que os move é a necessidade de alimentar a desconfiança, disseminar a intolerância e a conflitualidade. Quando os proponentes dizem «Quem chega a Portugal […] tem que acima de tudo cumprir, respeitar e fazer respeitar os costumes deste país e os valores deste país» (esquecendo que o islamismo faz parte da história do nosso país há muitos séculos) ou «Isto não é o Bangladesh em que fazem tudo como vos apetece», fica claro onde se quer chegar.
Sempre a insegurança
O uso de niqab ou burca, apesar de absolutamente residual entre os muçulmanos e não obrigatório, é apresentado como um problema de segurança pública para incutir o medo na população. No entanto, não há nenhum dado objetivo que sugira problemas ao nível da identificação de cidadãos pelo uso desses trajes e tampouco riscos relacionados com comunidades religiosas e/ou imigrantes. Em Portugal, qualquer cidadão é obrigado por lei a identificar-se perante as autoridades, nas circunstâncias legalmente previstas.
«Ouvimos o CDS dizer que "Portugal não é um país de mulheres propriedade de homens", apesar de este partido se sentir legitimado a impor a gravidez a uma mulher que não a deseja, votando-a ao horror do aborto clandestino, que tantas vezes resultou na morte da própria mulher.»
De resto, quem quiser praticar crimes sem ser identificável tem meios mais discretos ao seu dispor. Pode usar capacetes, máscaras cirúrgicas, usar fatos promocionais, ou até mascarar-se de Jubas, situações que a proposta votada exceciona («A proibição prevista não se aplica sempre que tal aparência se encontre devidamente justificada por razões de saúde ou motivos profissionais, artísticos e de entretenimento ou publicidade»).
Esta lei, que expressamente abrange práticas desportivas e manifestações, é sim parte de um modelo securitário que grassa na União Europeia e que ameaça as liberdades, direitos e garantias dos cidadãos.
Pelo contrário, o que a estigmatização e desumanização de grupos sociais, religiosos ou étnicos faz é precisamente aumentar a insegurança na medida em que os crimes de ódio e a violência politicamente motivada são hoje um problema de segurança pública emergente, que as supressões feitas ao Relatório Anual de Segurança Interna não conseguem ocultar.
Uma lei que viola princípios e direitos constitucionais
Importa dizer que em Portugal ninguém pode ser coagido a nada, nenhuma mulher pode ser coagida a fazer ou a vestir seja o que for. É assim porque a Constituição e a lei protegem a liberdade de decisão (formação da vontade) e ação (realização da vontade). Nessa exata medida, não pode vir o Estado proibir as mulheres de vestir o que bem entendam.
O direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26.º CRP) impõe que cada pessoa viva em concordância consigo própria, protegida de ingerências de poderes públicos ou privados. A forma como as pessoas se apresentam no espaço público integra a sua identidade pessoal, é expressão da sua autonomia individual e do seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade.
A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável (art. 41.º CRP), pelo que ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa da sua religião. O Estado deve permitir, a quem siga determinada religião, o cumprimento das práticas religiosas e não pode colocar os cidadãos em condições que objetivamente os impeçam de professar a sua fé.
«Importa dizer que em Portugal ninguém pode ser coagido a nada, nenhuma mulher pode ser coagida a fazer ou a vestir seja o que for. É assim porque a Constituição e a lei protegem a liberdade de decisão (formação da vontade) e ação (realização da vontade).»
Uma lei que visa atingir mulheres de determinada religião viola grosseiramente o princípio da igualdade (art. 13.º CRP) e a proibição de qualquer discriminação.
As restrições a direitos fundamentas devem reduzir-se ao estritamente indispensável para a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos, havendo direitos que não podem mesmo ser tocados. Como bem aponta o parecer do Conselho Superior do Ministério Público sobre a iniciativa do CH, na esteira do que tinha sido levantado pelos próprios serviços da Assembleia da República, qualquer restrição a direitos fundamentais tem de obedecer a um rigoroso juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação que não pode ser feito na medida em que «não se indica qualquer dado factual ou fundamento lógico».
De resto, são múltiplos os problemas de constitucionalidade e legalidade das normas apresentadas, que vão desde definição de conceitos à cominação. E não deixa de ser caricato que os proponentes tenham classificado o seu projeto-cruzada pelos direitos das mulheres como Neutro na Ficha de Avaliação Prévia de Impacto de Género que o acompanha.
Defender a liberdade e a igualdade a sério
Muito bem esteve o PCP nesta discussão ao não se esconder nos aspectos técnicos de uma lei aparentemente «feita com os pés» e ao denunciar sem medo os objetivos da proposta, tal como toda a estratégia de divisão e conflitualidade que lhe está subjacente. Com disse a líder parlamentar Paula Santos, «as mulheres muçulmanas são agora o alvo para prosseguir o discurso racista e xenófobo, como se elas não tivessem a capacidade de pensar e o direito a decidir», denunciando a perspetiva menorizadora que a direita mais reacionária tem das mulheres e a reabilitação de conceções retrógradas a que temos assistido.
Nenhuma forma de discriminação ou opressão é aceitável. O corpo das mulheres é, desde sempre, um terreno de batalha e a superestrutura capitalista tem diversos instrumentos que visam a subjugação as mulheres. Mas nunca foram outros a libertá-las, foram elas que o fizeram e impuseram progressos significativos nos seus direitos, como aconteceu em Portugal nas últimas décadas e, particularmente, na Revolução de Abril. Elas pensaram, organizaram-se, agiram.
«Qualquer restrição a direitos fundamentais tem de obedecer a um rigoroso juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação que não pode ser feito na medida em que "não se indica qualquer dado factual ou fundamento lógico".»
A discussão das burcas é perniciosa por vários motivos. Desde logo porque ignora que uma proibição deste tipo apenas castiga e penaliza aquelas que em teoria quer proteger, confinando estas mulheres aos lares, marginalizando-as e provocando o seu alheamento do espaço público, como têm também suscitado os especialistas da ONU. Por outro lado, é feita a partir de uma hipócrita superioridade dos valores ocidentais que faz tábua rasa das inúmeras práticas transversais a instituições religiosas e seculares que continuam a violar o princípio da igualdade entre homens e mulheres e que importa ultrapassar. É uma discussão que não visa estimular a integração, interação, tolerância e cooperação entre pessoas que são forçosamente diferentes, mas sim fragmentar ainda mais a sociedade e criar fossos entre nós. O contexto do debate público, o nível de preconceito e desinformação que o enforma e os agentes que o promovem não são um pormenor. É preciso escolher: contribuir, ceder ou fazer frente e combater.
Por fim, e enquanto mulher, assusta-me que seja tão fácil, à boleia dos valores da liberdade e da igualdade, impor ditames às nossas vidas, mandar na forma como as mulheres se apresentam e sentenciar como determinam a sua vida. É inquietante porque sabemos como começa e nunca como acaba, apesar da História nos dar alguns palpites.
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