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«Para derrotar a extrema-direita, a esquerda deve ser radical»

Álvaro García Linera afirma que, para derrotar a nova direita, o progressismo deve confrontar as forças reaccionárias e resolver os problemas económicos da maioria, entendendo o novo mapa da informalidade na América Latina.

Álvaro García Linera, antigo vice-presidente da Bolívia 
CréditosAriel Feldman / jacobinlat.com

No contexto da viagem à Colômbia para inaugurar o ciclo de pensamento «Imaginar o futuro a partir do Sul», organizado pelo Ministério colombiano da Cultura com coordenação da filósofa Luciana Cadahia, o intelectual e militante marxista Álvaro García Linera, ex-vice-presidente da Bolívia, conversou com a Jacobin sobre o panorama político e social que a América Latina atravessa neste «tempo liminar», ou interregno, que temos de atravessar nos próximos 10 ou 15 anos, até à consolidação de uma nova ordem mundial. É claro que esta escuridão instável é o momento para a entrada em cena da mais monstruosa extrema-direita, que, em certa medida, é consequência dos limites do progressismo.

Na nova etapa, Linera propõe que as forças progressistas apostem numa maior audácia para, por um lado, responder com responsabilidade histórica às profundas reivindicações que estão na base do apoio popular e, por outro, neutralizar os novos cantos de sereia da direita. Isto implica fazer avançar reformas profundas sobre a propriedade, os impostos, a justiça social, a distribuição da riqueza e a recuperação dos recursos comuns em prol da sociedade. Só assim, começando por resolver as exigências económicas mais básicas da sociedade e avançando na democratização real, defende Linera, se poderá voltar a confinar a extrema-direita aos seus nichos.

Tamara Ospina Posse: Na região, o século XXI começou com uma onda de governos progressistas que reorientaram o rumo da América Latina, mas esta dinâmica começou a estagnar após a vitória de Mauricio Macri na Argentina, em 2015, levando a que muitos previssem o fim do progressismo na região. Assim, começou uma onda de governos conservadores, mas, em países como Brasil, Honduras ou Bolívia, o progressismo regressou. E noutros, como México e Colômbia, conseguiu chegar ao poder pela primeira vez. Como interpreta esta tensão actual entre os governos populares ou progressistas e outros conservadores ou oligárquicos?

Álvaro García Linera: O que caracteriza o período histórico que vai desde há dez ou 15 anos até aos próximos dez a 15 anos é o declínio lento, angustiante e contraditório de um modelo de organização da economia e de legitimação do capitalismo contemporâneo, bem como a ausência de um novo modelo sólido e estável que retome o crescimento económico, a estabilidade económica e a legitimação política. É um longo período, estamos a falar de 20 ou 30 anos, durante o qual vigora aquilo a que chamamos «tempo liminar» – a que Gramsci chamava «interregno» –, no qual ocorrem múltiplas tentativas de resolver esse impasse.

A América Latina – e agora o mundo, porque a América Latina se adiantou ao que depois ocorreu em todos os lados – viveu uma onda progressista intensa e profunda, mas que não conseguiu consolidar-se, seguida por uma resposta regressiva conservadora e depois por uma nova onda progressista. Possivelmente, ainda veremos nos próximos cinco ou dez anos essas ondas e contra-ondas de vitórias e derrotas curtas, de hegemonias curtas, até que se redefina o novo modelo de acumulação e legitimação que trará de volta ao mundo e à América Latina um ciclo de estabilidade para os próximos 30 anos.

«No fundo, como ocorreu nas décadas de 30 e 80 do século XX, o que vemos é o declínio cíclico de um regime de acumulação económica [...], o caos que esse ocaso histórico gera e a luta para estabelecer um novo e duradouro modelo de acumulação-dominação que retome o crescimento económico e a adesão social.»

Enquanto isso não acontecer, seremos testemunhas dessa voragem própria do tempo liminar. E, como dizia, assistimos a ondas progressistas, ao seu esgotamento, a contra-reformas conservadoras que também fracassam, a uma nova onda progressista… E cada contra-reforma e cada onda progressista é diferente da outra. Milei é diferente de Macri, embora inclua uma parte dele. Alberto Fernández, Gustavo Petro e Andrés Manuel López Obrador são diferentes dos líderes da primeira onda, embora tenham parte da sua herança. E penso que vamos testemunhar uma terceira onda e uma terceira contra-onda até que, em algum momento, a ordem do mundo se defina, porque essa instabilidade e angústia não podem ser perpetuadas. No fundo, como ocorreu nas décadas de 30 e 80 do século XX, o que vemos é o declínio cíclico de um regime de acumulação económica (liberal entre 1870 e 1920; de capitalismo de Estado entre 1940 e 1980; neoliberal entre 1980 e 2010), o caos que esse ocaso histórico gera e a luta para estabelecer um novo e duradouro modelo de acumulação-dominação que retome o crescimento económico e a adesão social.

TOP: Podemos observar que a direita está a retomar práticas que julgávamos ultrapassadas, incluindo golpes de Estado, perseguição política e tentativas de assassinato… Você mesmo sofreu um golpe de Estado. Como pensa que vão evoluir essas práticas? E como lhes podemos fazer frente a partir dos projectos populares?

AGL: Algo característico do tempo liminar, do interregno, é a divergência entre as elites políticas. Quando as coisas correm bem – como até aos anos 2000 –, as elites convergem em torno de um único modelo de acumulação e legitimação, e todos se tornam centristas. A própria esquerda é «temperada» e «neoliberaliza-se», embora haja sempre uma esquerda radical, mas marginalizada, sem audiência. A direita também luta entre si, mas apenas por retoques circunstanciais. Quando tudo isto entra no seu declínio histórico inevitável, começam as divergências e a direita divide-se. A extrema-direita começa a dominar a direita moderada. E a esquerda mais radicalizada emerge da sua marginalidade e insignificância política, começa a ganhar ressonância e audiência, cresce. No interregno, a divergência de projectos políticos é a norma, porque há tentativas, diferentes umas das outras, para resolver a crise da velha ordem, no meio de uma sociedade insatisfeita, que já não confia, que já não acredita nos antigos «deuses», nas antigas receitas, nas antigas propostas que garantiram a tolerância moral em relação aos governantes. E, então, os extremos começam a ganhar força.

Isso é o que vemos com a direita. O centro-direita, que governou o continente e o mundo durante 30 ou 40 anos, já não tem respostas para as evidentes falhas económicas da globalização neoliberal e, diante das dúvidas e angústias das pessoas, surge uma extrema-direita que continua a defender o capital, mas acredita que as boas maneiras da antiga época já não são suficientes e que agora é preciso impor as regras do mercado pela força. Isto implica domesticar as pessoas, se necessário com violência, para regressar a um livre mercado puro e prístino, sem concessões ou ambiguidades, porque –segundo eles – essa foi a causa do fracasso.

«O centro-direita, que governou o continente e o mundo durante 30 ou 40 anos, já não tem respostas para as evidentes falhas económicas da globalização neoliberal e, diante das dúvidas e angústias das pessoas, surge uma extrema-direita que continua a defender o capital, mas acredita que as boas maneiras da antiga época já não são suficientes»

Então, esta extrema-direita tende a consolidar-se e a ganhar mais adeptos falando de «autoridade», «choque de livre mercado» e «redução do Estado». E, se houver revoltas sociais, é apropriado recorrer à força e à coerção, e, se necessário, ao golpe de Estado ou ao massacre para disciplinar os insubmissos que se opõem a esse regresso moral às «boas maneiras» da livre empresa e da vida civilizada: com as mulheres a cozinhar, os homens a mandar, os patrões a decidir e os trabalhadores a trabalhar em silêncio.

Um sintoma extra do declínio liberal evidencia-se quando já não podem convencer nem seduzir e precisam de impor; o que significa que já estão no seu crepúsculo. Mas, ainda assim, continuam perigosos, devido à radicalidade autoritária das suas imposições.

Perante isto, o progressismo e a esquerda não podem adoptar uma atitude condescendente, procurando agradar a todos os sectores e camadas sociais. A esquerda sai da sua marginalidade no tempo liminar porque se apresenta como uma alternativa popular ao desastre económico provocado pelo neoliberalismo empresarial; e a sua função não pode ser a de implementar um neoliberalismo com «rosto humano», «verde» ou «progressista». As pessoas não vão para as ruas e votam na esquerda para enfeitar o neoliberalismo. Mobilizam-se e mudam radicalmente as suas adesões políticas anteriores porque estão fartas desse neoliberalismo, porque desejam livrar-se dele, pois apenas enriqueceu umas quantas famílias e umas quantas empresas. E se a esquerda não cumprir isso, e conviver com um regime que empobrece o povo, é inevitável que as pessoas mudem drasticamente as suas preferências políticas para soluções de extrema-direita, que oferecem uma saída (ilusória) ao grande mal-estar colectivo.

A esquerda, se quiser consolidar-se, deve responder às demandas pelas quais surgiu e, se quiser realmente derrotar a extrema-direita, tem de resolver de forma estrutural a pobreza da sociedade, a desigualdade, a precariedade dos serviços, a educação, a saúde e a habitação. E, para poder realizar isso materialmente, precisa de ser radical nas suas reformas sobre a propriedade, os impostos, a justiça social, a distribuição da riqueza, a recuperação dos recursos comuns em prol da sociedade. Abrir mão desse caminho irá alimentar a lei das crises sociais: qualquer atitude moderada diante de uma crise grave fomenta e alimenta os extremos. Se a direita faz isso, alimenta a esquerda; se a esquerda faz isso, alimenta a extrema-direita.

«As pessoas não vão para as ruas e votam na esquerda para enfeitar o neoliberalismo. Mobilizam-se e mudam radicalmente as suas adesões políticas anteriores porque estão fartas desse neoliberalismo»

Então, a maneira de derrotar a extrema-direita, reduzindo-a a um nicho – que continuará a existir, mas já sem alcance social –, radica na expansão das reformas económicas e políticas que se traduzam em melhorias materiais visíveis e sustentadas nas condições de vida da maioria popular da sociedade; numa maior democratização das decisões, numa maior democratização da riqueza e da propriedade, de tal modo que a contenção da extrema-direita não seja apenas um discurso, mas se apoie numa série de acções práticas de distribuição de riqueza que resolvam as principais angústias e exigências populares (pobreza, inflação, precariedade, insegurança, injustiça…). Porque – não se pode esquecer – a extrema-direita é uma resposta, pervertida, a essas angústias. Quanto mais se distribui a riqueza, seguramente mais se afecta os privilégios dos poderosos, mas eles vão ficando em minoria, em torno da defesa raivosa dos seus privilégios, enquanto a esquerda se consolida como a que se preocupa e resolve as necessidades básicas do povo. Contudo, quanto mais a esquerda ou o progressismo se comportarem de maneira medrosa, hesitante e ambígua na resolução dos principais problemas da sociedade, mais a direita extrema cresce, e o progressismo fica isolado na impotência da decepção. Portanto, nestes tempos, a extrema-direita é derrotada com mais democracia e maior distribuição da riqueza; não com moderação ou conciliação.

TOP: Há elementos inovadores na nova direita? É correcto chamar-lhe fascista ou deveríamos designá-la de outra forma? A direita está a organizar um laboratório pós-democrático para o continente (incluindo os Estados Unidos)?

AGL: Sem dúvida, a democracia liberal, como mera troca de elites que decidem pelo povo, tende inevitavelmente para formas autoritárias. Se, em certos momentos, pôde gerar frutos de democratização social, foi pelo impulso de outras formas democráticas plebeias que se desdobraram simultaneamente – a forma sindicato, a forma comunidade agrária, a forma plebeia da multidão urbana… São estas acções colectivas múltiplas e multiformes de democracia que deram à democracia liberal uma irradiação universalista. Isto ocorreu porque estava sempre a ser ultrapassada e puxada para a frente.

«não há antagonismo entre extrema-direita e democracia liberal. Há uma conciliação subjacente. A extrema-direita pode coexistir com este tipo de democratização meramente elitista que alimenta a democracia liberal.»

No entanto, se deixarmos a democracia liberal tal como é, como mera selecção de governantes, tende inevitavelmente para a concentração de decisões, para a sua conversão naquilo a que Schumpeter chamava democracia como mera escolha competitiva de quem vai decidir sobre a sociedade, o que é uma forma autoritária de concentrar as decisões. E este monopólio decisório por meios autoritários e, quando necessário, acima do próprio procedimento de selecção das elites, é o que caracteriza a extrema-direita. Por isso, não há antagonismo entre extrema-direita e democracia liberal. Há uma conciliação subjacente. A extrema-direita pode coexistir com este tipo de democratização meramente elitista que alimenta a democracia liberal.

Por isso, não é raro que cheguem ao governo através de eleições. Contudo, o que a democracia liberal tolera marginalmente, de má vontade, e a extrema-direita rejeita abertamente são outras formas de democratização, relacionadas com as democracias de baixo para cima (sindicatos, comunidades agrárias, assembleias de bairro, acções colectivas). Opõe-se a elas, rejeita-as e considera-as como um obstáculo. Neste sentido, as extremas-direitas actuais são antidemocráticas. Aceitam apenas ser escolhidas para mandar, mas rejeitam outras formas de participação e democratização da riqueza, o que lhes parece um insulto, uma afronta ou um absurdo que deve ser combatido com a força da ordem e da disciplina coerciva.

Agora, isto é fascismo? É difícil decidir. Há todo um debate académico e político sobre que nome dar a isto e se vale a pena evocar as terríveis acções do fascismo dos anos 30 e 40. No preciosismo académico, talvez valha a pena estas digressões, mas têm pouco efeito político. Na América Latina, as pessoas com mais de 60 anos podem ter lembranças das ditaduras militares fascistas, e a definição pode ter um efeito sobre elas, mas para as novas gerações falar de fascismo não diz muita coisa. Não me oponho a esse debate, mas não penso que seja muito útil. No final, a adesão ou repúdio social pelas propostas da extrema-direita não virá pelo lado dos antigos símbolos e imagens que evocam, mas pela eficácia em responder às actuais angústias sociais que a esquerda é impotente para resolver.

Porventura, a melhor forma de qualificar a extrema-direita, para lá de uma etiqueta, será entender a que tipo de exigências responde, que, naturalmente, são distintas das dos anos 30 e 40, embora com algumas semelhanças devido à crise económica em ambos os períodos. Pessoalmente, prefiro falar de extrema-direita ou direita autoritária; mas, se alguém usar o conceito de fascismo, não me oponho, embora também não me entusiasme demasiado. O problema pode surgir se, desde o início, ela for qualificada como fascista e se deixar de lado a questão do tipo de exigência colectiva a que responde ou face a que tipo de fracasso emerge. Portanto, antes de etiquetar e ter respostas sem perguntas, é melhor questionarmo-nos sobre as condições sociais do seu surgimento, o tipo de soluções que propõe e, a partir dessas respostas, então escolher a qualificação correspondente: fascista, neofascista, autoritária…

Por exemplo, é correcto dizer que Milei é fascista? Talvez, mas primeiro é preciso perguntar por que venceu, com o voto de quem, respondendo a que tipo de angústias. É isso que importa. Perguntar ainda o que fizemos para que tal acontecesse. Hoje, é mais útil questionarmo-nos sobre isso do que colocar um rótulo fácil que resolva o problema da rejeição moral, mas que não ajuda a compreender a realidade nem a transformá-la. Porque se se responde que Milei apelou à angústia de uma sociedade empobrecida, então fica claro que o problema é a pobreza. Se Milei falou a uma juventude que não tem direitos, então há uma geração de pessoas que não acedeu aos direitos dos anos 50, nem dos 60, nem dos 2000. Aí está o problema que o progressismo e a esquerda devem abordar para conter a extrema-direita e o fascismo.

«Se Milei falou a uma juventude que não tem direitos, então há uma geração de pessoas que não acedeu aos direitos dos anos 50, nem dos 60, nem dos 2000. Aí está o problema que o progressismo e a esquerda devem abordar para conter a extrema-direita e o fascismo.»

É preciso identificar os problemas com os quais a extrema-direita interpela a sociedade, pois o seu crescimento também é um sintoma do fracasso da esquerda e do progressismo. Não surge do nada, mas depois de o progressismo não se ter atrevido, não ter conseguido, não ter querido, não ter visto, não ter entendido a classe trabalhadora e a juventude precária, não ter captado o significado da pobreza e da economia acima dos direitos de identidade. Aí reside o núcleo do presente. Isto não significa que não se deva falar de identidade, mas que é preciso hierarquizar, compreendendo que o problema fundamental é a economia, a inflação, o dinheiro que foge dos bolsos. E não se pode esquecer que a própria identidade tem uma dimensão de poder económico e político, que é o que ancora a subalternidade. No caso da Bolívia, por exemplo, a identidade indígena conquistou o seu reconhecimento assumindo o poder político primeiro e, gradualmente, o poder económico dentro da sociedade. A relação social fundamental do mundo moderno é o dinheiro, uma relação social alienada, mas ainda assim fundamental, que foge, que dilui todas as crenças e lealdades. Este é o problema a resolver pela esquerda e pelo progressismo. Penso que a esquerda tem de aprender com os seus fracassos e deve ter uma pedagogia sobre si mesma para, depois, encontrar os qualificativos para denunciar ou rotular algum fenómeno político, como é o caso da extrema-direita.

TOP: Voltando aos projectos populares, quais são os principais desafios do progressismo para superar estas crises, estes fracassos de que falava? É apenas por não ter conseguido compreender ou interpretar adequadamente as necessidades e reivindicações dos cidadãos que agora a extrema-direita está a ressurgir?

AGL: O dinheiro é hoje o problema económico e político fundamental, básico, clássico, tradicional do presente. Em tempos de crise, a economia comanda, ponto. Resolve-se este primeiro problema e depois os restantes. Estamos num tempo histórico em que o progressismo e a extrema-direita emergem, enquanto o centro-direita clássico neoliberal, tradicional e universalista declina. Porquê? Por causa da economia. É a economia, senhores, que ocupa o centro de comando da realidade. O progressismo, a esquerda e as propostas que vierem do lado popular têm de resolver, em primeiro lugar, este problema. Mas a sociedade em que a antiga esquerda dos anos 50 e 60 ou o progressismo da primeira onda nalguns países resolveu o problema económico é diferente da actual. A esquerda sempre trabalhou com o sector da classe trabalhadora assalariada formal, e hoje a classe trabalhadora informal é uma incógnita para o progressismo.

«A esquerda sempre trabalhou com o sector da classe trabalhadora assalariada formal, e hoje a classe trabalhadora informal é uma incógnita para o progressismo.»

O mundo da informalidade agrupado sob o conceito de «economia popular» é um buraco negro para a esquerda que não o conhece, não o entende e não tem propostas produtivas para ele que não sejam os meros paliativos assistenciais. Na América Latina, esse sector abrange 60% da população. E não se trata de uma presença transitória que desaparecerá posteriormente na formalidade. Não, senhores, o futuro social será com informalidade, com esse pequeno trabalhador, pequeno agricultor, pequeno empreendedor, assalariados informais, atravessados por relações familiares e vínculos muito curiosos de lealdade local ou regional, subsumidos em instâncias onde as relações capital-trabalho não são tão transparentes como numa fábrica. Esse mundo vai existir nos próximos 50 anos e envolve a maioria da população latino-americana. O que é que dizemos a estas pessoas? Como nos preocupamos com a sua vida, o seu rendimento, o seu salário, as suas condições de vida, o seu consumo?

Estes dois temas são a chave do progressismo e da esquerda latino-americanos contemporâneos: resolver a crise económica tendo em conta este sector informal, que é a maioria da população trabalhadora da América Latina. Que significa isto? Com que ferramentas se faz? Certamente, com expropriações, nacionalizações, distribuição da riqueza, ampliação de direitos, etc. Isto são ferramentas, mas o objectivo é melhorar a condição de vida e o tecido produtivo desses 80% da população, sindicalizada e não sindicalizada, formal e informal, que compõe o cenário popular latino-americano. E com uma maior participação da sociedade na tomada de decisões. As pessoas querem ser ouvidas, querem participar. O outro tema é o ambiental, uma justiça ambiental com justiça social e económica, nunca separado, nem nunca à frente.

TOP: Está aqui na Colômbia para participar num Ciclo de Pensamento coordenado pela filósofa Luciana Cadahia para o Ministério da Cultura. Que mudanças está a conseguir observar aqui com a vitória do Pacto Histórico nas eleições e a liderança de Gustavo Petro e Francia Márquez? Pensa que a Colômbia tem algum papel protagonista para o progressismo na região?

AGL: Tendo em conta os antecedentes históricos da Colômbia contemporânea, onde pelo menos duas gerações de activistas e lutadores sociais de esquerda foram assassinadas ou se exilaram, onde as formas de acção colectiva legal foram encurraladas pelo paramilitarismo e onde os Estados Unidos tentaram criar não apenas uma base militar à escala nacional, mas também um pivô de cooptação cultural, é no mínimo heróico que um candidato de esquerda tenha vencido as eleições. E, claro, quando se percebe o poderoso substrato da Colômbia profunda que brota dos bairros e comunidades, entende-se a revolta social de 2021 e o porquê dessa vitória.

O facto de uma vitória eleitoral progressista ser precedida por mobilizações colectivas abre espaço para reformas na sociedade. É por isso que, apesar das limitações parlamentares, o governo do presidente Petro é agora o mais radical desta segunda onda progressista continental.

Duas acções colocam a administração de Petro à frente dos restantes presidentes de esquerda. Por um lado, a implementação da reforma tributária com carácter progressivo, ou seja, que impõe tributos mais altos aos mais ricos. Na maioria dos outros países latino-americanos, a fonte mais importante de receita tributária é o IVA, que claramente impõe uma tributação mais pesada aos que menos têm.

«não se pode negligenciar a melhoria contínua dos rendimentos reais das classes populares colombianas, pois qualquer justiça climática sem justiça social não passa de um ambientalismo liberal»

Em segundo lugar, o avanço na transição energética. Claramente, nenhum país do mundo, nem sequer os que mais poluem, como os Estados Unidos, [os d]a Europa e a China, abandonou os combustíveis fósseis da noite para o dia. Foram propostas umas décadas de transição e, ainda assim, alguns anos mais de produção recorde desses combustíveis. No entanto, a Colômbia, juntamente com Gronelândia, a Dinamarca, a Espanha e a Irlanda, foi um dos poucos países do mundo que proibiram qualquer nova actividade exploratória de petróleo. O caso colombiano é mais relevante, pois a exportação de petróleo representa mais de metade das suas exportações totais, o que torna essa decisão algo muito mais audacioso e avançado a nível mundial. Trata-se de reformas que seguramente olham para o futuro de uma forma comprometida com a vida e que iluminam o caminho ao que outras experiências progressistas também têm de fazer a curto prazo.

No entanto, para que estas decisões, e outras que ainda estão por vir para cimentar condições de igualdade económica necessária, sejam sustentáveis ao longo do tempo, não se pode negligenciar a melhoria contínua dos rendimentos reais das classes populares colombianas, pois qualquer justiça climática sem justiça social não passa de um ambientalismo liberal. Isto irá requerer um ajuste meticuloso entre as receitas que o Estado deixará de arrecadar nos próximos anos e outras, novas, que deverá garantir por via de outras exportações, aumento de impostos aos ricos e melhorias tangíveis nas condições de vida da maioria da população.

TOP: Gostaria de concluir com a sua leitura do papel que a América Latina e as Caraíbas vão ter no mundo. Ou, melhor dizendo, que papel político podemos desempenhar num cenário de transformações radicais como as que estamos a viver.

AGL: No início do século XXI, a América Latina deu o primeiro sinal do esgotamento do ciclo de reformas neoliberais que tinha sido estabelecido globalmente desde os anos 80 do século passado. Foi aqui que começou a busca por um regime híbrido entre proteccionismo e livre comércio, que posteriormente, de 2018 até hoje, começou a ser ensaiado gradualmente nos Estados Unidos e nos diversos países da Europa. Neste momento, apesar de recaídas pontuais num «paleoliberalismo» de curto prazo, como no Brasil com Bolsonaro e na Argentina com Milei, o mundo está em transição para um novo regime de acumulação e legitimação que substitua o globalismo neoliberal.

«o mundo está em transição para um novo regime de acumulação e legitimação que substitua o globalismo neoliberal»

No entanto, neste momento, o continente encontra-se algo exausto para continuar a liderar as reformas globais. Parece que a transição pós-neoliberal agora deve avançar primeiro à escala mundial para que a América Latina renove as suas forças, de modo a retomar o ímpeto inicial. A possibilidade de reformas estruturais pós-neoliberais de segunda geração, ou mesmo mais radicais, que recuperem a força transformadora continental, terá de esperar por mudanças mais significativas no panorama mundial e, claro, por uma nova onda de acções colectivas populares que modifiquem o campo das transformações imaginadas e possíveis. Até que isso aconteça, o continente será um intenso cenário de disputas oscilantes entre vitórias populares breves e vitórias conservadoras breves, entre derrotas populares breves e derrotas oligárquicas igualmente breves.

Álvaro García Linera (Cochabamba, Bolívia; 1962) é ex-vice-presidente da Bolívia, intelectual e militante marxista.

Tamara Ospina Posse é cientista política, feminista, militante da Colombia Humana e membro do Centro de Pensamiento Colombia Humana (CPCH).

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