As relações de poder entre homens e mulheres, rapazes e raparigas, manifestam-se no online como um espelho das desigualdades experienciadas pelas mulheres na esfera privada. São fenómenos complexos que se interligam e criam um ambiente propício à violência. Das empresas que lucram com trends [tendências] desumanizadoras, aos influencers que promovem a «família tradicional» e à pornografia, as mulheres não descansam. Os corpos femininos são transformados em mercadoria e, acima disso, em objeto do ridículo. Tudo isto ganha forma nos algoritmos que lucram com a ridicularização das mulheres, dos seus corpos e da sua sexualidade.
O capitalismo e as redes sociais
A transição para o capitalismo não seria possível sem a subjugação dos corpos femininos. Na sua obra Calibã e a Bruxa, a historiadora Silvia Federici faz uma análise da transição do feudalismo para o capitalismo. Compreendendo que Marx ignorou a «caça às bruxas» na sua análise sobre a acumulação original, a teórica marxista acrescenta que «as hierarquias construídas com base no género, assim como na "raça" e na idade, constituíram a dominação de classe e a formação do proletariado moderno», p.102. Sem essa exploração, o capitalismo não poderia desenvolver-se com o poder inegável para se reinventar como encontramos hoje.
É possível enquadrar a análise da Silvia na progressão natural do capitalismo de plataformas. Surge um paralelismo com as empresas monopolistas de plataformas digitais – como é o caso da Meta – que não seriam tão lucrativas sem a reprodução e divulgação de manifestações violentas que constroem a sexualidade. Acrescento que não existiriam sem manifestações de poder que refletem o espaço público e o privado. Foi um progresso natural: a exposição à violência gera interação com as publicações, logo, essa violência é monetizável. O discurso de violência contra as mulheres é reproduzido dentro de uma lógica de mercado, como se fosse uma «moda». O que se observa é que essa moda não é nova nem desaparece, mas transforma-se, sempre com um véu de «liberdade». É uma forma de marketing extremamente benéfica para quem produz o conteúdo. Quando a manipulação da opinião é poderosa, os vídeos geram interações continuadas no tempo.
No livro A Revolta do Homem Branco, Susanne Kaiser investigou o espaço da «manosfera», definido no dicionário priberam como «Comunidade de blogues e bloguistas e de outros sites que preconiza uma visão machista ou de defesa da masculinidade». A autora da obra defende que estas «comunidades» passaram de grupos concisos em blogues com poucas dezenas de utilizadores para indivíduos ou grupos que publicam vídeos com alcance digital. A comunidade continua a existir, mas ganha voz através de pessoas individuais – influencers – conhecidas nas redes sociais. Em Portugal, os apoiantes da «família tradicional» são conhecidos. Numeiro, influencer com milhares de seguidores, afirmou recentemente num vídeo: «mulher que namora, não sai à noite». A sua explicação é simples e demonstra o que atrai visualizações: a mulher é propriedade do homem e deve comportar-se como tal. São vídeos que cumprem o seu propósito de gerar interações e comentários, assim como partilhas e apoio dos seus seguidores. E se o Numeiro é livre de ter esta opinião, somos nós também livres de combater e questionar o porquê de o seu vídeo ter mais visualizações que, por exemplo, o mártir de mulheres e raparigas na Palestina às mãos de Israel. Do que gosta o algoritmo e a quem serve?
«Numeiro, influencer com milhares de seguidores, afirmou recentemente num vídeo: «mulher que namora, não sai à noite». A sua explicação é simples e demonstra o que atrai visualizações: a mulher é propriedade do homem e deve comportar-se como tal. São vídeos que cumprem o seu propósito de gerar interações e comentários (...).»
A autora da obra destaca que atualmente já não navega a dark web para encontrar conteúdo misógino e violento. Numa entrevista ao Público, afirmou: «O que mudou profundamente foi o facto de estas coisas extremistas, da manosfera que existia na dark web, se terem tornado mainstream, com personagens como Andrew Tate. Hoje, a minha investigação é abrir o TikTok, Instagram, X, e todo o conteúdo incel está lá, a esfera supremacista e misógina estão lá.» Com a democratização do acesso ao espaço digital, basta abrir o TikTok ou qualquer outra rede social para encontrar a violência sexual mais explícita, as descrições sobre atos sexuais mais grotescos. Esta realidade, embora embrionária à exploração sexual contra mulheres e raparigas, reformulou-se aquando da reestruturação das relações entre o eu e o digital.
Os algoritmos das redes sociais são, em grande medida, opacos. O escrutínio é pouco e as obrigações legais parcas, sintomático da impunidade das empresas por detrás das plataformas. Importa o lucro e a proteção da liberdade de expressão como máxima divina, principalmente quando se questiona a quem serve um algoritmo que amplifica as vozes que procuram a violência e se diminui quem ambiciona combatê-la. Algoritmos que servem apenas empresas do grande capital serão sempre inimigas do progresso social e da emancipação das mulheres. As empresas que falham constantemente na remoção de conteúdo violento devem ser alvo de escrutínio dos Estados. A lei deve servir o povo e as empresas que optam por lucrar com a violência contra mulheres e raparigas não serão intocáveis se forem aplicadas sanções económicas. Mexer nos lucros que se alimentam das expressões máximas de violência não é censura, é justiça.
A violência digital como espelho do assédio
A violência digital passa facilmente para a esfera pública, muitas vezes como ampliação da exploração dos corpos no espaço público. O assédio como meio de controlo e ridicularização da mulher cresce no mundo online. Tomemos como exemplo a investigação sobre grupos no Telegram de partilha de conteúdo sexual e íntimo de mulheres sem o seu conhecimento. Assistimos impunemente à humilhação e exposição dos corpos femininos para puro prazer de quem o desejar. Criam-se grupos de fácil acesso para perpetuar o assédio em toda a dimensão – física e digital. E se o assédio no corpo da mulher ainda é normalizado, grupos como o mencionado são a nova norma. São grupos que expõem os corpos de mulheres e meninas, muitos deles como se de uma piada se tratasse.
«Algoritmos que servem apenas empresas do grande capital serão sempre inimigas do progresso social e da emancipação das mulheres.»
A luta por tornar crime público a difusão não consentida de imagens íntimas é longa. Apesar de a lei enquadrar crimes desta natureza como devassa da vida privada, as e os juristas começam a questionar a quem serve esta definição. A divulgação de uma conversa privada sem o consentimento da pessoa não se assemelha à exposição e rituais de humilhação sistémicos aquando da violência sexual com base em imagens. Enquanto o jornalismo continuar a denunciar estes casos, há esperança. Porém, urge que o Estado dote os investigadores portugueses de ferramentas para o estudo desta realidade. É urgente findar as bolsas de investigação e proporcionar contratos de trabalho aos investigadores, financiar estudos que publiquem dados sistemáticos sobre a violência sexual online. Precisamos de estatísticas oficiais com as quais possamos combater o reacionarismo que ambiciona ver a mulher como propriedade privada – através dos movimentos tradwives [esposas tradicionais] que incentivam as mulheres a tornarem-se fadas do lar – ou propriedade pública – tornando a mulher como um objeto a ser consumido pela pornografia e pela hipersexualização nas trends.
A pornografia como motor da exploração sexual
A pornografia é uma forte aliada da brutalidade com a qual nos confrontamos nas redes sociais, e uma aliada maior do capitalismo de plataforma. As megacorporações por detrás dos sites de pornografia maistream – como o Pornhub – são dominadas pela MindGeek que lucram avidamente com a exploração sexual das mulheres. Nestes sites, as investigações encontram a massificação da exploração para consumo. O relatório «Porno-criminality: Putting an end to the porn industry's impunity» expõe o que as organizações críticas da pornografia já sabiam: a violência sexual contra mulheres e raparigas está a ser consumida de forma livre. Segundo o relatório, cerca de 90% do conteúdo pornográfico investigado apresentava violência física, psicológica ou sexual contra as mulheres presentes nos vídeos. Apesar desta realidade, a pornografia é popular e até há quem lute para que seja «feminista». A sua popularidade prende-se, em parte, num facto: nos vídeos, as mulheres são obrigadas a fingir prazer no abuso que lhes é infligido. Já dizia a ativista anti pornografia Robin Morgan, «A pornografia é a teoria. A violação é a prática.»
Outros estudos e livros, como o da Gail Dines, Pornland, e da Megan Tyler, The Pornography Industry, evidenciam a pornografia como uma estrutura da dominação e de lucro com a coação sexual. Essa realidade passa para as redes sociais com a popularização de vídeos que apelam à prática de atividades sexuais comuns na pornografia. Uma delas é o Consensual Non Consent (CNC) no qual se apela a que uma pessoa – comumente o homem - interaja sexualmente com a sua parceira sexual a qualquer altura do dia sem necessitar de consentimento (incluindo durante o sono).
«Também o Estado se revela cúmplice com os grandes grupos económicos, cujos lucros existem às custas das mulheres e raparigas que navegam nas redes sociais.»
Aliás, o consentimento é completamente descartado. O «não» não impede a prática sexual, pelo contrário, estimula-a. Praticantes aconselham ao uso de uma palavra de segurança que, ao ser dita, obriga o interveniente a parar. Ora, fosse a vida real tão simples e não haveria violações. Este é apenas um dos exemplos de como as trends não só incitam à violação e abuso sexual, como tornam essa realidade desejável. Uma vida sexual saudável de prazer e respeito mútuo são incoerentes com o consumo de pornografia, porém, não é essencial consumi-la para que nos chegue a manipulação sexual, a violência e a violação aos nossos ecrãs. Tudo é promovido pelos algoritmos.
Se estes fenómenos crescem de braço dado com a extrema-direita, também a luta cresce. Há medidas reais que devem ser aplicadas pelo governo português e que, apesar de tardar, podem dar respostas às vítimas e tornar o espaço online mais seguro para as mulheres e raparigas. O governo liderado pela Aliança Democrática faz por olvidar os milhares de vozes que apelam a um espaço digital seguro para todas. Também o Estado se revela cúmplice com os grandes grupos económicos, cujos lucros existem às custas das mulheres e raparigas que navegam nas redes sociais. Exigimos a formação de magistrados e agentes de segurança de forma a acabar com o estigma que as vítimas sentem quando procuram respostas para a violência que vivem online. A educação sexual para o respeito e a compreensão é urgente e o Estado deve ser o seu principal promotor. Perante o silêncio das instituições democráticas, as mulheres e raparigas não se calam e exigimos respostas rápidas e eficazes.
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