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|direitos e liberdades

A privacidade está em risco?!

Comprometida a privacidade num dado momento através da geolocalização, ela ficará para sempre devassada, com consequências absolutamente imprevisíveis, quer na sua extensão, quer na gravidade.

A legislação portuguesa não admite que as operadoras móveis licenciadas para operar em território nacional comuniquem ao Estado ou a entidade privada os dados de identificação e de geolocalização
A legislação portuguesa não admite que as operadoras móveis licenciadas para operar em território nacional comuniquem ao Estado ou a entidade privada os dados de identificação e de geolocalização Créditos / Euronews

Os dados de geolocalização são pessoais, porque permitem a identificação de uma pessoa singular e são tratados numa rede de comunicações electrónicas ou no âmbito de um serviço de comunicações electrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento do utilizador, constituindo uma operação de tratamento de dados pessoais (artigo 4.º, alíneas 1) e 2) do Regulamento Geral de Proteção de Dados).

Actualmente existem vários tipos de infra-estruturas que ofertam serviços de geolocalização, nomeadamente GPS, estações de base GSM, Wi-Fi e bluetooth.

Note-se que até os telemóveis mais antigos permitem a geolocalização, através do sinal captado pelas torres ou postos que comportam as estações de base GSM, ainda que com menor rigor. Por exemplo, qualquer pessoa, desde que tenha o telemóvel ligado, mesmo que não realize qualquer chamada telefónica ou receba ou envie um SMS, é objecto de monitorização através de geolocalização, activando as diversas estações existentes numa cidade, conforme for circulando e, muito embora não permita a identificação métrica rigorosa, é possível saber que o telemóvel passou pelas zonas geográficas onde se encontravam as tais estações.

«na sequência do surto epidémico, alguns responsáveis europeus têm suscitado a medida de as operadoras móveis cederem aos estados os dados de identificação e de localização das pessoas singulares»

Importa ter presente que, actualmente, os tratamentos de dados pessoais com recurso a dispositivos de geolocalização têm lugar mais comummente no contexto das relações laborais, mas acoplados a veículos automóveis, com a finalidade de gestão de frotas em serviço externo, protecção de pessoas e bens, nomeadamente no transporte de matérias perigosas ou valiosas. Porém, ainda assim, o artigo 20.º, n.º 1 do Código do Trabalho e também a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas vedam a utilização dos dados pessoais recolhidos para a finalidade do controlo do desempenho da actividade profissional do trabalhador, constituindo a violação uma contra-ordenação muito grave, sem prejuízo de outras sanções aplicadas por violação de outras normas, no contexto contra-ordenacional.

Entretanto, na sequência do surto epidémico, alguns responsáveis europeus têm suscitado a medida de as operadoras móveis cederem aos estados os dados de identificação e de localização das pessoas singulares.

Trata-se de uma pretensamente ingénua proposta, que se destina a controlar se os cidadãos se encontram a cumprir as medidas de confinamento domiciliário ou não, com a finalidade de combater o surto epidémico e defender a saúde pública.

A Polónia foi o primeiro país europeu a usar uma aplicação, criada por uma empresa privada, com o objectivo acima referenciado. Por outro lado, duas das maiores multinacionais especializadas na área da tecnologia, Apple e Google, já estão a encetar negociações com o propósito de assegurar uma aplicação suscetível de ser descarregada em qualquer telemóvel smartphone, a fim de apurar se o utilizador esteve ou não, em contacto com algum cidadão que padeça da doença Covid-19.

Aliás, num comunicado de 10 de Abril, a multinacional Apple esclareceu que a aplicação se baseará na especificação de rede sem fio, vulgarmente conhecida por bluetooth, cujo funcionamento assentará no facto de notificar a autoridade pública de saúde, através da aplicação, caso alguma pessoa teste positivo para Covid-19, cabendo-lhe informar as pessoas que estiveram contacto com essa pessoa nos últimos 14 dias.

«importa ter presente que os telemóveis mais recentes [...] facultam a obtenção de um vasto conjunto de dados relativos à pessoa singular [...] viabilizando a identificação de hábitos de vida, pelos percursos efectuados, pelos locais frequentados ou os tempos de permanência, constituindo um tratamento intrusivo ou impactando na privacidade e nas mais elementares liberdades individuais»

Com este pano de fundo, importa ter presente que os telemóveis mais recentes, designados por smartphones, já dotados de GPS, Wi-Fi e bluetooth, facultam a obtenção de um vasto conjunto de dados relativos à pessoa singular, que permitem, conforme a finalidade do tratamento, a elaboração de perfis comportamentais, como o rastreamento das movimentações realizadas, viabilizando a identificação de hábitos de vida, pelos percursos efectuados, pelos locais frequentados ou os tempos de permanência, constituindo um tratamento intrusivo ou impactando na privacidade e nas mais elementares liberdades individuais. E isto porque, através dos hábitos de vida, obtém-se informação relativa às convicções religiosas ou filosóficas, a origem racial ou a orientação política e ideológica ou até a filiação sindical, que constituem dados pessoais especiais e cujo tratamento é genericamente proibido, desde logo pelo n.º 3 do artigo 35.º da Constituição da República, como também pelo n.º 1 do artigo 9.º do Regulamento Geral de Protecção de Dados.

Apesar de o Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020 ter restringido o direito fundamental à protecção de dados, vertido no artigo 35.º da Constituição da República – pioneira no mundo, ao elevar a protecção de dados a direito fundamental, logo na versão originária de 1976 –, a sua limitação circunscreveu-se às autoridades públicas poderem determinar que os operadores de telecomunicações enviem aos seus clientes SMS com alertas da Direcção-Geral da Saúde ou outras relacionadas com o combate à epidemia.

Como tal, atendendo ao artigo 35.º da Lei Fundamental, como também ao insuspeito Regulamento Geral de Protecção de Dados, assim como à Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, estes não admitem que as operadoras móveis licenciadas para operar em território português comuniquem ao Estado ou a entidade privada, seja para que finalidade for, os dados de identificação e de geolocalização. Aliás, se o Decreto que determinou o estado de emergência não o fixou, menos fora desse contexto se compatibiliza tal hipotético tratamento de dados pessoais com a Constituição e com os diplomas europeus e nacionais. A própria Lei Fundamental, no seu n.º 4 do artigo 34.º, estabelece a proibição de ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

«vai-se projectando hoje na sociedade o pensamento utilitarista que advoga a substituição da concepção do Estado de Direito democrático-constitucional pela do Estado sanitário, com laivos de policial»

Comprometida a privacidade num dado momento, ela ficará para sempre devassada, com consequências absolutamente imprevisíveis, quer na sua extensão, quer na gravidade. Como tal, a geolocalização pode constituir um instrumento de dominação individual, exercido num prisma colectivo, absolutamente intrusivo da reserva da vida privada, admitindo a obtenção de informação que poderá colocar em crise, o exercício de outros direitos fundamentais, como a liberdade de culto e de religião, o direito ao trabalho e o direito à liberdade de iniciativa económica, entre muitos outros.

Neste quadro, vai-se projectando hoje na sociedade o pensamento utilitarista que advoga a substituição da concepção do Estado de Direito democrático-constitucional pela do Estado sanitário, com laivos de policial, em que, no combate ao surto epidémico, todos os fins justificam os meios. Uma situação incompatível com o valor da dignidade da vida humana e também com a reserva da vida privada, entre outros bens constitucionalmente protegidos, assim como com a ordem fundamental de valores existente. É precisamente em contextos de ameaça aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados que a sua defesa se impõe como garante da democracia e dos pilares do Estado de Direito.

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