Imagino que para todos os que escrevem colunas de opinião, semanal ou mensalmente, gerir a relevância dos seus contributos para o nosso debate coletivo seja cada vez mais difícil, à medida que o confinamento se vai prolongando. É quase inevitável acabarmos todos a falar do mesmo, no desespero da originalidade. Sem sociabilização, os temas vão-se esgotando. Aqueles que podem ou são obrigados a ficar em casa acabam limitados a uma certa realidade e então observam praticamente o mesmo: a crise energética, os salários, as escolas, os hospitais, o lay-off e o desemprego, os transportes ou a habitação. Para além, claro, da intriga político-partidária e da polémica semanal que acabam por dominar o espaço mediático.
Para aceder ao mínimo daquilo que se passa verdadeiramente no mundo, as populações confinadas precisam, mais do que nunca, de uma informação cuidada e com qualidade. Os artigos e colunas de opinião, neste momento, sem linhas editoriais responsáveis e sérias, são inúteis e acabam por se canibalizar uns aos outros na sua redundância. Até o nosso debate, que está cada vez mais limitado às redes sociais, depende dos pressupostos que nos são apresentados pelos media. Se esta informação não tem qualidade, o debate público é só ruído destruidor das relações sociais, porque passa a ser sobre um choque de opiniões que tentam não perder a sua própria credibilidade ou a da sua agenda ou militância. Nada disto é novo, mas agrava-se com o confinamento, a partir do momento em que os únicos ecos que muitos têm da realidade chegam através do telejornal ou da parangona que lhes passa pela frente nas redes sociais. Falta-nos a greve ou outras manifestações de descontentamento que o quotidiano desconfinado nos mostra, falta-nos o desabafo do colega de trabalho, a observação das relações sociais e de poder in loco para chegarmos a casa e os confrontarmos com a mediação que os órgãos de comunicação social fazem das opções políticas. Sem a nossa própria vivência desse quotidiano, estamos exclusivamente dependentes das escolhas mediáticas da comunicação social. E que comunicação social dominante temos hoje?
«o nosso debate, que está cada vez mais limitado às redes sociais, depende dos pressupostos que nos são apresentados pelos media. Se esta informação não tem qualidade, o debate público é só ruído destruidor das relações sociais, porque passa a ser sobre um choque de opiniões que tentam não perder a sua própria credibilidade»
O debate sobre o jornalismo, na última década, encontrou um bode expiatório chamado internet. Da velocidade da informação às formas de financiamento, discute-se sobretudo aquilo que os donos dos meios de comunicação, através dos editoriais melodramáticos de diretores muito solícitos, permitem que se discuta. O resto vem por arrasto. Mas no meio de tudo isso está um problema central que define a agenda do jornalismo: as relações de poder e o trabalho. Falar de velocidade e de financiamento implica um conjunto de opções que definem as formas de mediação da informação. Essas opções têm-se refletido nesse núcleo que são as redações. Para além da estratificação entre trabalhadores, perfeitamente definida pelos vencimentos e pelo tipo de vínculos laborais, as redações dos órgãos de comunicação social convivem com um medo abstrato provocado pelas grandes transformações da mercadorização dos media, da financeirização, da concorrência e da inevitabilidade da economia de mercado. Com a corrosão do tecido social nas redações, onde ao longo dos anos se perdeu a senioridade e muita experiência (mais de metade dos jornalistas tem, hoje, menos de 50 anos, segundo um estudo de 2015 publicado na Análise Social), a tão falada velocidade da informação perdeu o rigor e o cuidado não só com a qualidade da informação como com a própria língua. Desde notícias sobre questões de grande relevância para a nossa vida, dadas de forma telegráfica e preguiçosa, a títulos e textos pejados de erros ou conceitos imprecisos e desadequados, a informação dos media que estão pressionados pelos mercados não tem apenas um problema de qualidade, mas de credibilidade. Já para não falar, claro, da falta de conhecimento no tratamento de matérias complexas como as relações internacionais, a economia política e a história das ideias e das instituições. Porque apesar da precarização da profissão, os profissionais do setor continuam a acreditar que uma licenciatura em Comunicação Social é suficiente para lhes conferir uma espécie de credencial divina para o conhecimento e as populações também continuam a acreditar em tudo o que leem, confiando no mito da imparcialidade do jornalismo.
Os órgãos de comunicação social e os profissionais que ainda resistem a este ar dos tempos, com recursos bastante limitados, são na verdade a exceção. Com a concentração dos meios de comunicação social em grandes grupos económicos e com o desaparecimento de órgãos históricos de comunicação social local (lembro-me, de repente, do Primeiro de Janeiro, do Diário de Lisboa ou do Comércio do Porto, que tinham uma dimensão significativa), o jornalismo ficou refém de opções económicas que condicionam a sua atividade através do medo do encerramento e do despedimento. É impossível olhar para a realidade laboral da profissão e achar que nada disso tem impacte na forma como os próprios jornalistas tomam decisões sobre o seu trabalho ou como aceitam a priori linhas editoriais por mera obediência. É impossível não pensar na forma como são escolhidas as direções e as suas linhas editoriais, num quadro de dominação económica. A título de exemplo, no meio de um processo de despedimentos, o grupo Global Notícias escolheu para chairman António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), que tem assento na concertação social do lado dos empresários, contra sindicatos. A relação das administrações dos grupos de media com os sindicatos, aliás, tem sido muito interessante, havendo relatos de reuniões feitas na rua, porque nem nas instalações os sindicalistas são autorizados a entrar. É impossível achar que isto não afeta a liberdade de imprensa.
«as redações dos órgãos de comunicação social convivem com um medo abstrato provocado pelas grandes transformações da mercadorização dos media, da financeirização, da concorrência e da inevitabilidade da economia de mercado. Com a corrosão do tecido social nas redações, onde ao longo dos anos se perdeu a senioridade e muita experiência, a tão falada velocidade da informação perdeu o rigor e o cuidado não só com a qualidade da informação como com a própria língua»
Mas o espírito precário que molda a perceção dos jornalistas começa antes de tudo isto; começa nos auditórios das universidades onde são apresentados estudos como este, de 2017, promovido pela Obercom, cuja lista de associados conta com alguns grandes grupos de media, e divulgado aqui pelo Fronteiras XXI, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que entretanto já penetrou na programação do serviço público de televisão em Portugal. Os dados recolhidos são usados para definir um «perfil profissional» que o «empregador» procura. A conversa da empregabilidade no ensino superior, de resto, tem sido uma das formas mais eficazes de garantir que os alunos saem das faculdades formatados para o modelo estabelecido pela economia de mercado, sem margem para consciências de classe – a inevitabilidade do pragmatismo enquanto síntese laboral.
Poderíamos dizer que a leitura do estudo pode ser outra, que ali estão dados muito relevantes para o debate dentro da própria profissão. Na verdade, ao mesmo tempo que saía este estudo realizava-se o 4.º Congresso dos Jornalistas, cujas conclusões deixaram bastante a desejar, nesse campo de análise. Se nos recordarmos, aliás, uma das conclusões tinha sido a recusa de os jornalistas estarem presentes em conferências de imprensa sem direito a perguntas, o que, por exemplo, não aconteceu na noite eleitoral das Presidenciais de 2021. Perguntamo-nos se esta decisão foi tomada por esquecimento. Mas o mais provável é que tenha sido tomada naturalmente por pressão concorrencial. Em 2017, os jornalistas podiam ter concordado com o que quisessem, quando na verdade nos painéis de discussão do congresso estavam sentados muitos daqueles que definem conscientemente as opções editoriais e que têm o pequeno poder de decidir quem trabalha ou não.
Falamos, claro, dos diretores de carreira, que vão saltando de redação em redação como prémio pelos serviços prestados ao mercado. São eles que privilegiam a velocidade sobre a qualidade. São eles que admitem que sejam publicadas ou transmitidas notícias cuja única fonte são canais oficiais das instituições ou gabinetes de assessoria de imprensa, reduzindo o jornalismo a uma caixa de ressonância de conveniência. São eles que optam pela transcrição exata das notas das agências noticiosas, sem mais desenvolvimentos. São eles que permitem transformar preconceitos em reportagens, opinião em notícia ou entrevistas em debates. São eles, em última análise, os responsáveis pela falta de contraditório de tantas narrativas que são conduzidas por centenas de comentadores que ocupam desproporcionalmente a grelha da informação nos meios de comunicação.
«Com que tipo de informação podemos nós contar, sobretudo numa época em que a nossa atividade social foi drasticamente reduzida? Que tipo de informação podemos nós esperar de quem tem medo de perder o seu emprego ou de quem não tem tempo ou disponibilidade para fazer uma peça que nos demonstre que nada acontece por mero acaso?»
Não nos esqueçamos, também, de todos aqueles que abandonaram a profissão ou que foram obrigados a exercê-la de forma humilhante, trabalhando por valores salariais inadmissíveis e sujeitos a trabalhos degradantes que afetaram irreversivelmente a sua dignidade profissional e, muitas vezes, a sua ética. A nossa solidariedade com estes trabalhadores é fundamental para que não se sintam esquecidos e para que sintam a força necessária para continuar a lutar por uma profissão essencial para a construção de uma sociedade que se rege pelos valores democráticos.
Deste lado estamos nós – leitores, espectadores ou ouvintes – limitados às limitações do jornalismo, às suas condições de trabalho, aos horizontes dos seus profissionais, às opções editoriais determinadas fora das redações, instigados pela subjetividade de quem não conhece outra forma de fazer o seu trabalho (ou que prefere ignorar outra forma de o fazer, apesar de todos os dias se confrontar com críticas assertivas à sua idoneidade), dependentes de um jornalismo que saiu dos centros das cidades para se instalar em edifícios periféricos, mais baratinhos. Com que tipo de informação podemos nós contar, sobretudo numa época em que a nossa atividade social foi drasticamente reduzida? Que tipo de informação podemos nós esperar de quem tem medo de perder o seu emprego ou de quem não tem tempo ou disponibilidade para fazer uma peça que nos demonstre que nada acontece por mero acaso?
O debate sobre o jornalismo não é uma novidade. Nenhuma destas questões é original. Mas o jornalismo é um bem essencial e precisamos todos de reavivar esse debate para não o deixarmos adormecer no seu papel transformador. O trabalho no jornalismo não pode continuar a ser valorizado pela ilusão de um status quo, pela esperança de pertencer a um grupo de escolhidos ou a uma clique que convive bem com as suas circunstâncias. A sua valorização passa pelas condições reais que resultam naquele papel transformador.
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