No passado dia 30 de abril de 2025, o Tribunal de Relação de Lisboa1 reverteu, parcialmente, a decisão, tomada a 1 de julho de 2024 pelo Tribunal de Sintra, de absolvição de Carlos Canha, agente da PSP, que agrediu, barbaramente, Cláudia Regina Mateus Simões, em 2020.
A decisão anterior do Tribunal de Sintra em absolver o agente Carlos Canha e condenando a Cláudia Simões, a uma pena de oito meses de pena suspensa, por um crime de ofensa à integridade física qualificada, por se reagir para não morrer nas mãos do agressor, demonstrou a cumplicidade entre os tribunais nos casos de violência machistas e racistas da polícia.
Longe de ser um caso isolado, é uma conivência ritualista dos tribunais que tem decorrido ao longo de décadas, levando as pessoas periferizadas a concluírem que, nos casos de agressão pela polícia, «as vítimas vão ao tribunal apenas para ouvir a sua condenação que já foi decidida antes do julgamento começar».
Podemos citar os inúmeros casos de trabalhadores, estudantes, adultos, até de menores de idade, agredidos pelos agentes da PSP e, de seguida, acusados de agressão contra os mesmos agentes que os agrediram. Uns até foram condenados.
Um dos exemplos é o da Maria Sala, conhecida por «Filó», uma mulher angolana que foi, brutal e repetidamente, agredida, tendo o filho de cinco anos assistido à mãe a ser arrastada como criminosa pela polícia, foi, literalmente, espancada. Uma violência que começou, a partir das 22h30, na loja da qual era proprietária, no Centro Comercial de Massamá/Barcarena, e apenas terminou às 2h e pouco da madrugada. Simplesmente porque ficou 15 minutos a mais do horário do fecho, a limpar a sua loja.2
O do Tony, trabalhador de logística e morador da Cova da Moura, que não saiu nas notícias, é mais um outro caso. Certo dia, uma equipa da PSP da Esquadra de Alfragide, a famosa carripana, fez uma daquelas «operações de recolher obrigatório» no Bairro da Cova da Moura, do qual toda a gente foge e toda a gente sente dó de quem for «caçado». Naquele dia, assim que chegaram, as pessoas começaram a recolher para as suas casas. Uns fecharam os seus cafés.
As ruas ficaram desertas na parte de cima do bairro. Mas viram que a oficina de reparação de carros, situada junto ao restaurante Princesa, estava aberta. Entraram e depararam-se com duas pessoas lá dentro: o mecânico de 42 anos, e um cliente de 30 anos, o Tony. Viam o motor do carro deste último e o mecânico lavava as mãos de óleo. Ambos foram brutalmente violentados pelos agentes e tiveram de ser hospitalizados.
E qual foi o desfecho? Adivinhem! Foram acusados de agressão à autoridade e, pelo que sei, o Tony foi condenado a pena suspensa e «obrigado» a pagar uma multa ao agente que o agrediu. Desde o dia que foi brutalizado, a sua vida mudou completamente, forçou-o a deixar a família, os amigos, o trabalho e ir para o estrangeiro.
Podemos ver, então, que além do caso da Cláudia não ser um facto isolado e que, portanto, não se tratar duma questão individual que depende da juíza ou juiz, mas dum longo «modus operandi», bem enraizada, da instituição policial e nos tribunais que se assemelha, em vários aspetos, aos casos de violência doméstica e feminicídio cujas vítimas são culpabilizadas.
Eis aqui que perguntamos: Quais foram/são as precondições desta violência sistemática e polidimensional sobre os chamados bairros e seus habitantes?
Primeiro, ousemos dizê-lo: A brutalidade policial não emerge apenas do ódio irracional ou maldade pessoal, mas devido às grandes forças dos poderes políticos e económicos e suas coberturas ideológicas.3
Deste modo, vale também para o assunto em análise, a declaração de Vladimir Lénine: «Os homens sempre foram em política vítimas ingénuas do engano dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a descobrir por trás das frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou outra classe».4
Enquanto não tivermos essa noção básica em mente não conseguiremos compreender que a brutalidade policial contra trabalhadores e comunidades empobrecidas não é um desvio ou falha do sistema, mas que está embutida na lógica do vigente sistema político-económica capitalista monopolista, baseada na exploração e opressão, para a acumulação de lucros em detrimento da vida.5
«Maria Sala, conhecida por "Filó", uma mulher angolana que foi, brutal e repetidamente, agredida, tendo o filho de cinco anos assistido à mãe a ser arrastada como criminosa pela polícia, foi, literalmente, espancada. Uma violência que começou, a partir das 22h30, na loja da qual era proprietária, no Centro Comercial de Massamá/Barcarena, e apenas terminou às 2h e pouco da madrugada. Simplesmente porque ficou 15 minutos a mais do horário do fecho, a limpar a sua loja.»
Então, temos de compreender, em Portugal, foi preciso reatualizar o discurso colonial, efabular, inventar a periferia como «lugar de perigo», habitada por «criminosos», outrora chamados de «selvagens», através de formas visíveis e invisíveis de guerra aos pobres que se conjugam e complementam-se.
Dissemos isto por uma questão simples: os casos deste tipo, ou semelhantes práticas, não surjam espontaneamente. Para existirem, para tomarem forma, é preciso que numa certa medida, precisamente na consciência nacional, se tenha produzido uma sedimentação suficiente de racismo, de complexo de superioridade, de discriminação, criminalização da pobreza e machismo. Estas manifestações, vindas diretamente do coração, isto é, do coração do indivíduo, exprimem não só o vício da educação burguesa relativamente ao resto das pessoas, sobretudo racializadas e empobrecidas, como também as consequências de séculos de dominação colonial.6
Segundo, a construção da periferia como «perigosa» decorreu dentro do contexto da aplicação de políticas neoliberais, conduzidas pelos sucessivos governos do PS e do PSD/CDS-PP, o atual AD, que se traduziram no desinvestimento no serviço público, nas condições básicas de existência de vida nas nossas comunidades ao longo de décadas.
Terceiro, tais políticas foram acompanhadas de discursos zoológicos das instituições e partidos de direita e da extrema-direita e, ritualisticamente, fazendo dos pobres, migrantes e pessoas racializadas bodes expiatórios para ocultar, diante dos olhos do povo, a canalização dos recursos públicos para os cofres privados.
Quarto, uma vez criado o «inimigo interno», foram criados os instrumentos jurídicos de legitimação de guerra contra as periferias empobrecidas. O eufemismo desta guerra contra os pobres aparece, atualmente, na linguagem oficial, sobre a classificação de Zonas Urbanas Sensíveis (Z.U.S).Sérgio Dundão, compreendeu muito bem que as Z.U.S são pretextos, melhor dizer álibis, ideologicamente montados, quando escreveu que «os bairros são classificados como sensíveis devido à sua predisposição à prática de crime, partindo-se de uma predisposição normativa de antecipação do facto criminal. A polícia é legitimada, através da ordem discursiva de representação do bairro, a revistar, prender, agredir e até matar, necessitando apenas de produzir um auto de ocorrência, onde deve ecoar a narrativa do pré-facto criminal».7
Quinto, o aumento do discurso dos suínos da extrema-direita no espaço público, bem como no Parlamento, radicalizou, tanto a cultura da criminalização dos pobres, representados como inimigos internos dos bairros «mal-falados», que devem ser sempre combatidos com violência, bem como a cultura racista e reacionária da polícia. 8
Como não considerar Cláudia Simões culpada da sua própria agressão se a própria estrutura e instituições da nossa sociedade, em particular os tribunais, partilham dos mesmos pressupostos racistas que o criminoso do agente Carlos Canha, que ao chegar na paragem assumiu que Cláudia Simões era uma criminosa?
Nesse sentido, podemos ver que o caso da Cláudia Simões já estava, desde início, inquinado por uma cultura política de criminalização da periferia e bestialização dos seus moradores.
A isto somou-se um feroz ativismo judiciário pela forma violenta como o tribunal se posicionou em relação a uma mulher negra, torturada e humilhada por um agente da PSP, à frente da sua filha de 7 anos de idade, chegando inclusive a classificar a vítima de «arrogante» e «exagerada», por, dignamente, defender-se da humilhação.
A parcialidade do tribunal, militando, permanentemente, para absolver os agentes da polícia, incluindo o agente-agressor Carlos Canha, que em particular, consta na lista dos 600 membros das forças de segurança que usam das redes sociais para promover o discurso de ódio.
É patente na forma como desconsiderou os depoimentos das testemunhas que apresentaram uma versão condizente à da defesa da Cláudia, considerando-as viciadas, imbuídas de «idiossincrasias, mundividências, preconceitos e pretensões».
Por estas razões, Celso Lopes, conhecido por Kromo di Ghetto, foi certeiro aquando do julgamento do caso 5 de fevereiro, em que foi um dos jovens sequestrados e torturados pelos Agentes da Equipa de Intervenção Rápida da Esquadra de Alfragide. «É uma luta. Não estamos a lutar contra apenas 18 polícias arguidos. Estamos a lutar contra um sistema que perpetuou esta violência, que continua a dar frutos e continua a criar o mesmo tipo de pessoas, com as mesmas características e padrões que, durante anos a fio, levou a que, apesar das muitas queixas, haja muita resistência a assumir os erros de maus profissionais.»9
O que Celso Lopes, músico e morador da Cova da Moura, está a dizer é que as pessoas empobrecidas e/ou racializadas são brutalizadas pela polícia e depois são responsabilizadas pelas suas feridas e traumas. E que toda a estrutura social estimulou essa violência de Estado, ao longo de anos desta prática.
Na verdade, nem os mortos pela polícia escapam de serem colocados no banco do réu e responsabilizados pela sua própria morte. O caso mais recente é do Odair Moniz, morto por um agente da PSP, no passado dia 21 de outubro de 2024 no bairro Alto da Cova da Moura. Logo a seguir, foi desumanizado, criminalizado ao ser acusado de ter roubado o seu próprio carro. Depois veio a história da faca que agora há fortes possibilidades de ter sido plantado.
Eis o que se nega, propositadamente, a compreender: a revolta dos bairros, aquando da morte do Odair, por um agente da PSP, demonstra o cansaço, a frustração, pela cultura de impunidade que grassa no sistema judicial onde a humilhação e tortura, inclusive mortes, praticadas pela polícia são validadas nos tribunais.
«Na verdade, nem os mortos pela polícia escapam de serem colocados no banco do réu e responsabilizados pela sua própria morte.»
Isto tudo revela que, numa sociedade dividida em classes, estruturalmente racista, como a sociedade portuguesa, os mecanismos de poder dominante consagram e naturalizam a ideia de que há mortes que são choráveis e mortes que não são choráveis, e territórios onde vigora o Estado de direito e onde o Estado de direito está suspenso e a polícia tem aval para operar como exército de ocupação.
Para concluir, foi surpreendente o facto de o Tribunal da Relação de Lisboa considerar que ficou provado, tanto através dos testemunhos como das imagens de vídeos, que o agente Carlos Canha agrediu Cláudia Simões, durante a viagem de carro da paragem até à esquadra, e condená-lo, por crime de ofensas à integridade física agravadas, a cinco anos de pena suspensa e ao pagamento de uma indemnização de 6000 euros à Cláudia Simões, no prazo de dois anos e seis meses, e condenar, igualmente, os agentes Fernando Rodrigues e João Gouveia por abuso de poder, por não fazerem nada para impedir a agressão de Carlos Canha contra Cláudia Simões, abrindo caminho para a desnaturalização da cultura de impunidade dos casos de violência policial.
Embora esta reversão do Tribunal da Relação de Lisboa seja parcial, pois Cláudia Simões continua condenada por defender-se da brutalidade de Carlos Canha na paragem de autocarro, esta decisão é histórica e sem precedentes. E repõe até, em certa medida, a justiça e a dignidade da família da Cláudia Simões, que pagou um preço impagável de luta pela justiça.
Para fechar, como se sabe, a juíza Catarina Pires vai presidir o coletivo de juízes, que vai conduzir o julgamento do agente da PSP que matou o Odair Moniz. Mas se o Tribunal da Relação considerou que esta juíza não atuou corretamente no caso da Cláudia Simões, leva-nos a perguntar o seguinte:
– Será que Catarina Pires está moralmente equipada para conduzir um julgamento desta natureza?
– Quem nos garante que não colocará o Odair Moniz, o assassinado, no lugar do réu, responsabilizando-o pelo seu próprio assassinato, como fez no caso da Cláudia Simões, em vez de procurar ser isenta, neutra e justa?
- 1. Loja, A. R. Silva, A. G. & Sousa, C. A. (2025). Acórdão do Tribunal da Relação do processo 29/20.2PB AMD.L2. Lisboa, Portugal.
- 2. Lança, M. (15 de Maio de 2014). Agredida pela polícia no local de trabalho Depoimento de Maria Sala (Filó) que sofreu violência por agente da polícia portuguesa. Rede de Angola.
- 3. McMichael, 2022
- 4. Lenine, V. (1977). «Obras Escolhidas em Três Tomos - 1», Moscovo: Edições Progresso
- 5. McMichael, 2022. «Shoot to Kill: Police and Power in South Africa», Inkani.
- 6. Fanon, F. 1980, «Em defesa da Revolução Africana», Sá da Costa; Cabral, A. 2013, «Unidade e luta I - A arma da teoria», Praia, Fundação Amílcar Cabral; McMichael, 2022
- 7. Dundão, S. (1 de novembro de 2024). «Os bairros sociais e a excepção jurídica», obtido em Maio de 2025, de Muck Rack.
- 8. McMichael, 2022
- 9. Lopes, C. (17 de julho de 2017). «Não estamos a lutar só contra 18 polícias, mas contra todo o sistema que perpetuou esta violência». Lisboa: DN.
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