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Mundial, direitos televisivos e luta pela afirmação das mulheres

FIFA e operadores dos cinco principais países europeus seguem num braço-de-ferro pela venda dos direitos televisivos do próximo Mundial feminino. Um momento central na afirmação do futebol das mulheres e daquilo que elas querem para o jogo. 

CréditosEstela Silva / Agência Lusa

A menos de dois meses do início do Mundial feminino de futebol, os cinco principais mercados europeus não têm negociados, ainda, os direitos de transmissão dos jogos nos respetivos países. A situação de impasse foi sublinhada por uma intervenção pública de Gianni Infantino, o presidente da FIFA, logo no início do mês de maio, estabelecendo que as propostas recebidas estavam aquém das expetativas de valorização desta competição, que não sentia haver um sentimento de cooperação na aposta no futebol feminino, afirmando a sua vontade de não ceder perante propostas que fiquem abaixo dos valores que considera justos. Ao mesmo tempo, Infantino procurava puxar para a discussão atletas, dirigentes, mas também Presidentes e representantes dos governos dos países em questão para pressionar ao aumento das propostas. 

A mensagem de Gianni Infantino pareceu desenquadrada da realidade. De alguma forma, o Presidente da FIFA culpava parceiros pela incapacidade de valorização do futebol no feminino, utilizando como medida os valores altamente especulados das transmissões das competições masculinas. A questão financeira tem sido central na política da FIFA. Através do aumento do valor da venda dos direitos televisivos, tem sido possível uma maior distribuição de dinheiro por todas as federações mundiais. Mas também tem ficado cada vez mais claro que os valores praticados para a compra desses direitos têm deixado lastro nas emissoras. Não parece haver do lado de consumidores e mercado publicitário capacidade para acomodar os preços da compra de direitos. Por um sem número de razões, mas muito por essa hipervalorização de um produto que não pode deixar de ter transmissão assegurada. 

Sarai Bareman, diretora para o futebol feminino da FIFA, em digressão mundial do troféu que será disputado entre 20 de julho e 20 de agosto, reafirmou a posição da instituição em não vender os direitos abaixo do valor esperado e apresentou alternativas, como a transmissão por canais próprios das partidas de um Mundial que é importantíssimo para a afirmação do futebol no feminino. Depois do sucesso dos últimos Mundiais e Europeus, o crescimento da aposta em várias Ligas nacionais e na Liga dos Campeões Femininos, bem como o crescimento da Liga norte-americana, o Mundial deste verão terá um papel fundamental no cimentar de uma realidade inultrapassável: o futebol é, também, das mulheres. 

Números e intervenção dos governos

Existem várias questões que vêm sendo levantadas para um baixar do valor apresentado pelos direitos da competição. Com esta a ser atrasada no calendário para terminar apenas no final de agosto, entra em choque com um momento da temporada onde quase todas as outras principais competições futebolísticas já se jogam. Os horários dos encontros também não ajudam, já que com as partidas a realizarem-se na Nova Zelândia e na Austrália, estas ocuparão o espaço das manhãs no território europeu. Para além disso, a FIFA deixou de vender os Mundiais masculino e feminino em pacote, acreditando na possibilidade de arrecadar mais dinheiro, algo que vê agora colocado em causa. 

Em trabalho dos jornalistas Léna Coulon e Théodore Laurent, publicado no jornal francês Libération esta semana, apresenta-se o caso do Mundial de 2019, para comparação. Disputado em França, foi um momento de conquista de audiências para o futebol feminino no Hexágono. A TF1 comprou, à época, os direitos do Mundial por cerca de 20 milhões de euros, tendo arrecadado 8 milhões de euros da revenda de parte dos mesmos ao codificado Canal+ e alcançado cerca de 13 milhões de receitas publicitárias, uma operação que gerou lucro, ao contrário do que tem sido habitual com outras competições futebolísticas. 

O atraso no acordo levou, inclusive, representantes dos governos de França, Alemanha, Espanha, Itália e Grã-Bretanha a tomarem uma posição conjunta. Em comunicado, reconheceram a preocupação com o prolongamento das negociações sem fim à vista, percebendo as condições vistas como menos favoráveis aos operadores, mas realçando a necessidade de mediatização de uma prova que «tem um impacto muito significativo no desenvolvimento da prática desportiva de mulheres e raparigas». Em Portugal, o Expresso apurou que a RTP também está em conversações com a FIFA para a transmissão da prova. 

A luta das mulheres no futebol

A forma como o problema tem sido exposto revela, com clareza, a maneira como o futebol no feminino continua a ser tratado nas mais altas instâncias, demonstrando uma clara dificuldade em entendê-lo como um fenómeno com características próprias, com um potencial que deve ser acarinhado e desenvolvido nas alternativas que apresenta. Aquilo que a FIFA preconiza, por sua vez, é a transformação forçada do futebol das mulheres em mais um subproduto do futebol financeirizado, procurando especular com a sua existência, desfazendo o seu discurso próprio numa desgastada versão caritativa. 

Em lugar de afirmar o papel das mulheres e da sua principal competição no espaço mediático, a FIFA prefere destacar o seu papel de financiador, recorrendo a investidores que lhe permitam dividir esforços para a transformação da competição em produto. Esta opção terá graves consequências no futuro da modalidade. Para mais, tem criado por toda a Europa uma extrema dependência das equipas femininas para com as equipas masculinas. O panorama competitivo europeu está agora ocupado por versões femininas dos grandes emblemas, levando-se como consequência a extremos como a recusa do Ajax a homenagear as suas campeãs pela posição menos boa alcançada pela sua equipa masculina. 

O desenvolvimento do futebol no feminino carece de um claro investimento nas suas estruturas. É fundamental que as equipas femininas tenham melhores condições de trabalho, de treino e de competição. É muito importante que as raparigas que queiram praticar futebol tenham acesso a oportunidades semelhantes às dos rapazes. Mas também é preciso que o futebol no feminino seja uma expressão daquilo que as mulheres e as raparigas desejam para a sua prática desportiva. A cedência perante modelos exclusivamente financeiros acabará por não ser um caminho para a igualdade, mas uma ratoeira para a dependência.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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