O termo «idade» para além de designar o ano específico da nossa cronologia, diz respeito a um período de tempo, seja ele relativamente curto (idade dos porquês, terceira idade), ou relativamente longo (idade das trevas, idade da pedra, idade do gelo). Fazendo jus a esse amplo significado, vou opinar acerca da «idade da inocência», faixa etária em que as crianças/jovens são «esponjas», susceptíveis aos estímulos externos, bons e maus, principalmente à forma como são colocados; da «idade da indocência», que, especialmente devido à falta de professores, a docência é praticada de forma cada vez mais difícil, agravando-se as condições do sistema de ensino público e universal; e, a partir do gracejo fonético patente no título, sublinharei a «indecência» da era/idade presente, tudo indicando que se prolongará no tempo.
O deslumbramento com a Inteligência Artificial (IA) roça o ridículo, especialmente num país que necessita urgentemente de tomar medidas para manter e desenvolver a sua Inteligência Natural (o seu povo). Por entre esta febre, vão surgindo alguns episódios mais ou menos risíveis. Sobressaiu recentemente a proposta do Ministro Adjunto e da Reforma do Estado de um tutor IA para todos os alunos. Perante o facto de que o poder económico subjuga o poder político, a primeira coisa que me ocorreu quando li tal declaração foi a intenção do Estado dar as suas escolas, os seus alunos, o seu futuro, como campos de colheita de dados a alguma empresa tecnológica. Ou seja, o tal tutor, sob pretexto de ensinar os alunos, estaria, sim, a ser «ensinado» por aqueles.
Já há quem tenha rotulado os «dados» como o petróleo do séc. XXI. Cada um de nós é um poço de petróleo. Com a utilização das plataformas digitais, fornecemos dados sabe-se lá a quem e para que fins – gratuitamente, ou, em alguns casos, paga-se pelo serviço e ainda se oferece essa borla. Quem lucra são as grandes tecnológicas – segundo a lógica da denominação, as petrolíferas deste século. Com a implementação destes «extractores» nas escolas, os alunos de várias idades alimentariam os algoritmos, fazendo parte desse «crude» que alimenta as grandes tecnológicas. O que receberiam em troca? A ausência dum professor, ou a drástica diminuição do seu papel, com toda a carga (des)humana que isso acarreta.
«Perante o facto de que o poder económico subjuga o poder político, a primeira coisa que me ocorreu quando li tal declaração foi a intenção do Estado dar as suas escolas, os seus alunos, o seu futuro, como campos de colheita de dados a alguma empresa tecnológica.»
Perante o facto de que o poder económico subjuga o poder político, a primeira coisa que me ocorreu quando li tal declaração foi a intenção do Estado dar as suas escolas, os seus alunos, o seu futuro, como campos de colheita de dados a alguma empresa tecnológica. Em vez de investirem nas carreiras dos professores, para a progressão dos que já estão em exercício, mas também aumentando a atractividade da profissão, para que outros ingressem nessa carreira, enveredam por caminhos de esvaziamento de sentido do sistema de ensino público e universal. A construção do futuro do país, assente em relações humanas saudáveis, no respeito pelo outro, na tolerância, está directamente conectada ao desenvolvimento do Ensino Público. Para tal, são necessários professores e outros profissionais (auxiliares de acção educativa, psicólogos, terapeutas, etc.) com as melhores condições de exercerem a sua profissão. Não são necessários robots para arrefecerem as relações sociais que constituem e constroem os ambientes escolares – a tirania do sistema económico, apologista da competição em detrimento da cooperação, que estrangula as vidas de todos os participantes na comunidade escolar, já robotiza as vivências e retira o potencial das relações de ensino saudáveis.
Quando não se resolvem os problemas das escolas, de raiz, da falta de profissionais, de muitas instalações degradadas ou com falta de condições adequadas, esta possibilidade tutorial não se apresenta apenas como uma ferramenta de auxílio. É um estabelecer de prioridades económicas em prol do negócio das tecnológicas. A opinião aqui patente não tem pretensões luditas. Não descarto a importância das ferramentas digitais e da sua utilização na melhoria da aprendizagem e na execução de outras tarefas. Porém, não pode ser tolerada a degradação do Ensino, o agravamento da vida dos profissionais da educação e dos alunos, publicitando-se como solução o investimento deslumbrado em tutores desprovidos de vida e, por conseguinte, incapazes de construir vivências – a Escola é todo esse conjunto de vivências, dentro e fora das salas de aula, que só a proximidade humana possibilita e enriquece.
Ora, esta persistente delegação nas máquinas do que se quer o mais humano possível é perversa. Numa época de desumanização das relações sociais, o investimento deve ser no sentido de aproximação e não de afastamento. A digitalização não pode implicar a degradação do sentido humano da sociedade.
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