Não sei se as estações estariam muito diferentes, mas naqueles anos o outono chegou mais cedo (ou a escola começou mais tarde). No meu bairro já cheirava a café moído da fábrica, os dias iam ficando mais curtos e as primeiras chuvas consistentes amoleciam o chão dos minifúndios, que ainda resistiam no burgo, transformando o quotidiano com o petricor (o cheiro da terra molhada) e com a pequena ansiedade do início das aulas.
A escola encerrava uma rua sem saída, ao fundo de um conjunto residual de moradias da pequena-burguesia, que encontrara na vila o lugar ideal para criar a família. Mas por aquele portão entravam miúdos de uma área alargada, onde se encontravam dois bairros operários com demasiadas habitações precárias e gente sem esperança. Era também o tempo dos fundos europeus, do novo-riquismo, do fim da União Soviética, da grande esperança europeia e da avalanche de consumo de marcas e produtos que o entretenimento vendia como qualidade de vida.
Na sala de aula crescíamos todos a absorver o que se passava à nossa volta. No recreio brincávamos às mesmas coisas, com a justiça possível, e não havia privilégios. Uns, como eu, que viviam melhor e com mais estabilidade em casa, não tinham qualquer ascendente sobre os demais e era o caráter que ditava, muitas vezes, a confiança necessária para nos sentirmos parte do todo. E assim crescemos, na inocência iludida de que éramos iguais.
«Por aquele portão entravam miúdos de uma área alargada, onde se encontravam dois bairros operários com demasiadas habitações precárias e gente sem esperança.»
Para muitas crianças, essa ilusão dilui-se no dia em que se entra para o segundo ciclo e os manuais e materiais escolares exigem um esforço financeiro maior; no dia em que as festas de aniversário de uns são mais faustosas do que as de outros; no dia em que olham para baixo e veem que o calçado não é o mesmo. Mas, se no acesso aos bens essenciais e aos bens de consumo a diferença desperta consciências, é na cultura que ainda resiste uma cumplicidade que tanto nos dá esperança numa luta conjunta pela igualdade, como nos distrai.
Quando a infância se começou a transformar em adolescência, pelos corredores da escola, nos intervalos dos namoros e da pancadaria feromonal, partilhavam-se cassetes, aprendiam-se os primeiros acordes das canções que serviam de banda sonora ao quotidiano imberbe e falava-se com entusiasmo das descobertas. Para cá e para lá do portão, os pequenos objetos de reverência cultural, de nicho ou de massas, cruzavam-se e mantinham uma cumplicidade que muitas vezes sugeria uma mesma mundividência sobre todas as dimensões da vida.
Ali pelos anos de 1990 já era lugar-comum dizer-se que tinha acabado a luta de classes – o fim da História – e que agora tínhamos todos as mesmas oportunidades. Para os adolescentes, que não tinham dinheiro de bolso, uns mais do que os outros, a ideia parecia acompanhar a realidade. Como não? Íamos para cafés com meia dúzia de moedas e o descaramento de um café e um copo de água para a tarde toda. Raramente comíamos fora e o único dinheiro que poupávamos era para os concertos. Partilhávamos o Blitz, e coletivizávamos toda a informação com os mitos urbanos difundidos na mais antiga tradição oral.
Quando a escola acabou (para uns mais cedo do que outros), não foi o acaso que nos foi separando. Uns puderam ir para a faculdade, outros tiveram de ir trabalhar, outros ainda ficaram ali retidos, numa espécie de purgatório lumpen. Os encontros no café começaram a ser menos frequentes, as saídas à noite deixaram de ser compatíveis com as inevitáveis novas dinâmicas da vida – uma vida que uns puderam escolher e outros não. Nessa bifurcação da adultícia, tantas coisas se perderam (ou transformaram). Aquilo que parecia uma oportunidade para todos, era afinal uma ilusão, pensamento mágico de que a partilha dos mesmos objetos de cultura nos colocava no mesmo ponto de partida para o mundo.
«Ali pelos anos de 1990 já era lugar-comum dizer-se que tinha acabado a luta de classes – o fim da História – e que agora tínhamos todos as mesmas oportunidades. Para os adolescentes, que não tinham dinheiro de bolso, uns mais do que os outros, a ideia parecia acompanhar a realidade.»
Nenhum desses objetos pagou as propinas aos que precisaram de ir trabalhar; nenhum desses objetos trouxe os cuidados de saúde necessários para os pais atirados para a cama da invalidez; nenhum desses objetos encheu despensas ou melhorou a oferta dos transportes públicos; nenhum desses objetos abriu portas para empregos com melhores salários e melhores contratos.
Para muitos dos que puderam escolher (melhor ou pior), essa igualdade cultural foi a cortina de fumo para ignorar a necessidade de combater a origem da desigualdade, para manter essa lealdade da infância unida, como uma massa única que exige que a ilusão seja superada por uma vida realmente igual para todos.
Costuma dizer-se que na juventude há uma disposição passageira para a revolta contra o status quo e que quando se chega à idade adulta tudo isso passa. Talvez fosse mais correto dizer que a juventude é mais influenciada pela natureza genuína das relações do que pelo cinismo.
O início do outono serve sempre para me relembrar da minha escola, dos amigos com quem partilhei cassetes e revistas, mas que a vida adulta separou em mais dimensões do que seria esperado. Por isso, quando outubro nasce, recupero a memória e transformo-a na força necessária para resistir às cortinas de fumo, ao cinismo e, como o «catcher in the rye», apanhar quem puder.
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