|Análise

Dois anos de subcontratações pagavam boa parte da frota que o País não tem

A razão porque não temos meios aéreos de combate a incêndios é a mesma porque não temos meios aéreos de transporte de doentes. Porque o País tem preferido recorrer ao mercado para subcontratar serviços, na típica lógica liberal.

CréditosPedro Sarmento Costa / Agência Lusa

As últimas semanas têm sido marcadas pelos incêndios – fruto das condições atmosféricas, da gritante falta de medidas estruturantes de prevenção e da falta de trabalho preparatório para menorizar o impacto deste tipo de situações – e tem-se falado muito dos meios aéreos de combate aos incêndios, mais concretamente da ausência desses meios.

Não sendo a causa principal das dificuldades que o País enfrenta com os incêndios – esta radica na falta de ordenamento da floresta e na desertificação do Interior – não deixa de ser relevante o que se passa com os meios aéreos de combate a incêndios, onde cada ano se gasta mais dinheiro com resultados sempre insuficientes. 

O teor essencial das notícias sobre a falta de meios de combate aos incêndios, deixando um lastro de desilusão e raiva contra as políticas públicas e os seus executantes, é feita com a habilidade dos profissionais experientes de fazer, simultaneamente, o mal e a caramunha. Nunca colocam o dedo na verdadeira ferida: a liberalização. 

A razão porque não temos meios aéreos de combate a incêndios é a mesma porque não temos meios aéreos de transporte de doentes. É porque o País decidiu não os ter e tem preferido recorrer ao mercado para subcontratar serviços. É a lógica liberal da gestão do Estado – ainda não existia a Iniciativa Liberal e já era a forma de governo preferida do PS e do PSD. E principalmente, da União Europeia, que a impõe sobretudo às economias periféricas como forma de agravar a sua absoluta dependência externa.

Porque não há volta a dar: o País precisa de uma frota de aviões e helicópteros para o combate aos incêndios, munida do pessoal suficiente e suficientemente treinado para as missões que têm de desempenhar, capaz de assegurar a manutenção, reparação e a operação da frota. E isso exige desenvolver uma estrutura nacional – a forma concreta não é o objecto deste artigo, mas a melhor solução passará pela Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC) – capaz de executar essas missões. Em vez de o subcontratar em dezenas de contratos por centenas de milhões de euros.

E não é um problema de falta de recursos. O País está a gastar mais de 150 milhões de euros por ano a alimentar o negócio de meia dúzia de empresas privadas, sem tirar daí o proveito devido. É muito o dinheiro gasto em subcontratações, em realização de concursos que ficam desertos até o preço subir aonde o cartel o deseja ver, em pagar indemnizações decididas por «tribunais» arbitrais, em alugar meios aéreos que são óptimos até terem de levantar voo, altura em que se descobre não haver nem aviões operacionais nem pilotos. 

A realidade é que anda um bando de capitalistas a aproveitar-se dos recursos do Estado, que depois financiam um conjunto de forças políticas e meios de comunicação social para canalizarem a justa indignação popular para o apoio a políticas que lhes permitam aproveitar ainda mais.

O cartel

Num sector como este, onde naturalmente os concorrentes são poucos (não é propriamente possível ter aviões, helicópteros e pilotos contratados à espera de uma eventual vitória num concurso), a tendência para o cartel é grande. De há muito que existem suspeitas, e chegou a haver acusações do próprio Governo (António Costa, primeiro-ministro, em 2018, por exemplo, afirmou publicamente que existia esse cartel). Acusações sempre desmentidas com ferocidade pelos envolvidos que respondiam com ameaças de processo em tribunal por difamação. 

Fazendo recordar o caso dos submarinos, neste momento já há condenações em Espanha por corrupção em Portugal. Em Portugal é que só agora começa a ser investigada essa corrupção (veremos se termina melhor que a dos submarinos, liquidada pelas prescrições). 

Em Espanha, o dito «cartel do fogo» foi condenado a penas de prisão e empresas foram proibidas de participar em concursos. Duas dessas empresas operam em Portugal, e de acordo com o Expresso, somam 175 milhões de euros de contratos públicos através de subsidiárias. Na sentença pode ler-se: «os pactos sobre turnos e sistemas rotativos tinham também em consideração os concursos em Espanha e Portugal», e o jornal El Español escreve que «num dos contratos ganhos em Portugal, a investigação constatou que o governo luso pagou até três vezes do que realmente custava o serviço contratado.» Também significativo o conteúdo de um email revelado pelo Expresso: «Temos o apoio do grupo de empresas espanholas para fazer e desfazer o que quisermos em Portugal. (...) Este ano temos o nosso prato forte em Portugal. E vamos atacar com todo o arsenal disponível.»

Em Maio deste ano foi noticiado que a Polícia Judiciária conduziu um conjunto de buscas na Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) e em empresas contratadas pelo Estado, «por suspeitas de corrupção e burla relacionadas com os concursos públicos para o combate aos incêndios rurais, num valor que ronda os 100 milhões de euros», e que haveria vários arguidos. Pelo menos uma dessas empresas pertence a um dos grandes financiadores do Chega. Recentemente, a ANAC retirou a licença à Heliportugal.

O kit

Entretanto, os sucessivos governos vão falando, principalmente quando há incêndios. Procurando fingir um dinamismo que não têm.

O ministro da Defesa, Nuno Melo, anunciou em Outubro que iam ser comprados dois kits para equipar 2 C-130 para o combate a incêndios. Em Agosto voltou a anunciá-lo. Dez meses não foram suficientes para tomar a decisão. Com o País a arder, o Governo reuniu-se e tomou a decisão. Mas é preciso ter nota que Portugal tem 4 C-130 já com 45 anos, dos quais só três estão modernizados, e para os quais já está a comprar substitutos (6 KC-390 por 960 milhões de euros). É provável que estes kit não tenham sido comprados porque de facto não faz sentido comprá-los. Mas nesse caso, talvez fosse melhor deixar de anunciá-lo. Ou pior, um dia destes ainda compram os kits para os deixar a apodrecer num hangar (como aconteceu aos que já foram comprados para estes mesmos aviões há mais de 20 anos). Tudo só para fazer mais propaganda. 

Já em 2019, o então ministro Cravinho tinha anunciado que os novos KC-390 tinham uma dupla missão «civil e militar» e que iriam também ser usados no combate a incêndios. Disse-o, mas depois os aviões foram comprados sem o kit para que pudessem ser usados no combate a incêndios. Era só um dizer, mais um anúncio, mais uma mentira.

O País precisa de meios aéreos de combate a incêndios dedicados a essa função, e os C-130 e KC-390 da Força Aérea não têm essa missão. O que não significa que não possam estar preparados para, em situações de emergência, reforçar o mecanismo nacional de combate aos incêndios. Mas para o fazer é necessário comprar os kits, tê-los operacionais e ter o pessoal treinado no seu uso. Trabalho sério, continuado, e não conferências de imprensa quando o País está a arder para fingir que se está a resolver algo.  

Existiu uma empresa pública, mas limitou-se a subcontratações

Quem defender que se deve criar uma resposta pública para os meios aéreos da República colocados ao serviço do combate a incêndios vai de imediato levar com esta resposta dos liberais: «Essa empresa já existiu e foi um desastre.» Certamente estarão a falar da Empresa de Meios Aéreos (EMA), e, como todas as aldrabices, esta transporta a sua verdade: a EMA existiu, era uma empresa pública, e foi um desastre. 

Mas como diz o povo português «não se deve confundir alhos com bugalhos» e a EMA nunca foi (e é duvidoso que tenha querido ser) mais que uma empresa de subcontratações. Criada em 2007 e extinta em 2014, a EMA, em vez de fazer o necessário – comprar helicópteros e aviões, contratar pilotos e outro pessoal, dar formação e assumir a resposta operacional – apenas adquiriu dez helicópteros e subcontratava toda a restante procura a empresas privadas, e mesmo para comprar estes dez helicópteros subcontratou uma empresa – a Heliportugal – que lhe comprou os helicópteros e assegurava a manutenção operacional dos mesmos, e com a qual manteve um interminável litígio jurídico, com recurso a «tribunais» arbitrais (que, como quase sempre, foram prejudiciais ao interesse público), com previsões de horas de voo optimistas (como sempre) a inflaccionar os valores da manutenção a pagar, com revisões de contrato suspeitas, e outras tropelias típicas deste tipo de PPP. 

Para se ter uma ideia da forma como as empresas públicas são geridas em Portugal, em 2011 o Governo do PSD/CDS exigiu um corte de 15% das despesas da EMA (os famosos cortes cegos do período da troika), só alcançável por duas vias: ou se parava a operação (para não gastar combustível) ou se cortava o seguro (a outra parte da despesa, o pagamento à Heliportugal, era fixa). A empresa decidiu cortar o seguro. Quando um helicóptero caiu, a poupança de um milhão de euros transformou-se numa perda de 8 milhões. 

Entretanto, a EMA ficou apenas responsável pelos helicópteros, tendo a subcontratação dos restantes meios passado para a Autoridade Nacional da Protecção Civil. Até que o Governo extinguiu a EMA, transferindo os seus poucos recursos para a ANPC e mais duas subcontratações. O caso dos Kamov, os helicópteros comprados pela EMA para o combate aos incêndios é por demais elucidativo:

  • Foram comprados através de uma empresa privada, a Heliportugal, que assegurava a sua manutenção. O seu custo era de cerca de 8 milhões de euros cada (eram 6). Chegaram tarde (e o Tribunal de Contas alertou para a forma como o Estado perdoou o atraso na entrega), funcionaram sempre a meio gás e o seu custo (a manutenção operacional estava subcontratada) foi sempre elevado. De acordo com uma auditoria da Inspecção Geral da Administração Interna (de que só se conhece as fugas de informação), custaram ao Estado um total de 348 milhões de euros (incluindo aqui o que este pagou pela sua manutenção, peças, etc.).
  • Quando a EMA foi extinta, o Estado subcontratou outra empresa, a Everjets, por 46 milhões de euros, para realizar a manutenção e operação das 6 aeronaves. Só três estavam operacionais. Nunca ninguém foi responsabilizado pelo estado das aeronaves. Chegou uma altura em que o Estado não tinha helicópteros e ainda enfrentava processos em tribunal das duas empresas que havia subcontratado, que lhe reclamavam pagamentos de milhões de euros
  • Os Kamov acabaram parados e foram depois oferecidos à Ucrânia em 2022 (foram entregues só em 2024) e aí parece que já andam (ou pelo menos, assim foi noticiado) a apagar incêndios.

É esta forma de gestão do Estado e das empresas públicas que tem que acabar. Uma forma – neoliberal – onde o Estado é o passador de cheques para um conjunto de predadores que vivem à sua custa, ganhando tanto dinheiro ilicitamente que a corrupção se torna inevitável.

Em menos de dois anos já gastámos 338 milhões de euros em subcontratações

A lista oficial de subcontratações realizadas em 2024 e 2025 para alimentar o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), que aqui divulgamos, confirma a sangria de dinheiros públicos. São já 338 milhões de euros de despesa, só nestes menos de dois anos. Isto, sem contar todas as multas, trabalhos a mais e coisas afins que costumam acompanhar a execução destes contratos. E apesar das falhas brutais em termos de resultados operacionais que têm sido expostas publicamente. Estes dados são públicos e, no entanto, não têm sido olhados na sua globalidade. 

Se pensarmos que o custo dos helicópteros pesados ronda os dez milhões, e cada bombardeiro pesado DHC-515 Canadair custa cerca de 50 milhões de euros, o País, com o dinheiro que anda a gastar em subcontratações, só neste período tinha comprado uma boa parte da frota que precisa para o combate aos incêndios. E a partir do investimento inicial, o custo de manutenção e operação seria sempre menor que as fortunas que agora paga, que alimentam muitos gulosos e muitos intermediários. É essa ruptura com a política que tem sido seguida que importa realizar. Em vez de andar a gritar muito alto, financiados pelos que ganham milhões com as más opções públicas que têm sido seguidas.

De resto, se olharmos para os restantes elementos desse portal referentes a meios aéreos, e que expomos a seguir, vemos como o País toma a mesma opção errada no que respeita aos meios para a emergência médica (e já vão 90 milhões de euros gastos em menos de dois anos com os fracos resultados que se conhece). Mas já para as questões da defesa nacional, opta, e bem, pela aquisição desses meios.

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