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|50 Anos de Futuro

1969 – cinquenta anos depois

Hoje, tantas décadas passadas, parece incompreensível que o simples pedido de direito à palavra por parte de um representante da comunidade estudantil tenha sido considerado como um gesto de intolerável subversão.

Manifestação estudantil em Coimbra. Foto de arquivo.
Créditos / Associação Académica de Coimbra (AAC)

O último ano da sexta década do século passado, não foi para Portugal um ano qualquer. Meio século depois, para grande parte dos portugueses, a distância é tanta que o tempo dilui factos e personagens, e vai apagando a sua relevância e memória.

Talvez seja oportuno, num tempo em que se pretende diminuir o papel da História nos programas escolares, lembrar um passado que os mais velhos viveram, quanto mais não seja pela sua ligação ao presente e lições que dele se possam tirar.

A memória de um tempo brutal e opressivo serve, seguramente, para prevenir sacrifícios futuros, se a conseguirmos passar às gerações mais novas.

Relembremos que já em finais de 1968, depois da queda da cadeira de Salazar, em Agosto, num regime que proibia qualquer protesto colectivo, as greves começaram a rebentar por todo o lado.

«A memória de um tempo brutal e opressivo serve, seguramente, para prevenir sacrifícios futuros, se a conseguirmos passar às gerações mais novas»

A da Lisnave, ainda nesse mesmo ano, as da General Motors e da Ford, já em Fevereiro de 1969, e logo, em Março, as da Covina, Cel-Cat, Diogo de Ávila, Utic, Robiallac, Parry & Son, Trefilaria, Fábrica Simões, Arsenal, Cimentos Tejo, Firestone, CNE, CUF, Tabaqueira, Loiça de Sacavém, Sacor, Sapec, Ecril, Mague, Tudor, Nitratos de Prata, a que, entre outras, ainda se pode acrescentar a dos ferroviários.

Nesses primeiros meses de 1969, num país pouco industrializado, mais de cem mil operários estão em greve, desafiando uma ditadura que a proíbe e reprime.

E essa componente da luta operária, tantas vezes esquecida ou menorizada, mostra que o passado que mais se escreve, tem, frequentemente, uma marca de classe.

Em Aveiro, então bem mais pequena do que é hoje, o núcleo duro de opositores à ditadura, então em plena fase de encenação da «Primavera Marcelista», preparava já o II Congresso Republicano.

 

No centro da importante iniciativa, como já o tinha sido no I Congresso, também em Aveiro, em 1957, encontrava-se Mário Sacramento, médico, escritor, intelectual de primeira grandeza1, com enorme prestígio e projecção nacional, depois tão esquecido nas homenagens do poder, que tantas vezes preferiu salientar personalidades medíocres ou de segunda linha, talvez pelo «pecadilho» de ser membro do então único partido resistente organizado e na clandestinidade, o PCP2.

 

Mário Sacramento morreu há meio século, em Março desse ano de 69, com 48 anos de idade e cinco prisões que lhe marcaram o corpo e a mente, a primeira quando era ainda aluno do liceu.

«Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem – físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais. Mas, que as não tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que me foi possível para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado! E lembrem-se que nós, os mortos, iremos nisso ao vosso lado!». (Carta-Testamento, Abril, 1967)3.

 

O II Congresso da Oposição ir-se-ia concretizar dois meses depois da sua morte, em Maio de 69, preparando o caminho para as eleições de 26 de Outubro, outra fachada democrática com que o regime procurava disfarçar a sua alma fascista, depois da derrota de Hitler e Mussolini na II Guerra Mundial.

 

«Mário Sacramento morreu há meio século, em Março desse ano de 69, com 48 anos de idade e cinco prisões que lhe marcaram o corpo e a mente, a primeira quando era ainda aluno do liceu»

 

O lugar de secretário do II Congresso ficou com uma cadeira vazia4, símbolo da importância da perda, salientada também no desenho gigante do seu perfil, pregado no pano de fundo do palco por onde passariam algumas das maiores figuras da cultura portuguesa.

 

O grande resistente, tão precocemente desaparecido, não chegou a ver o III Congresso da Oposição em Aveiro, em 1973, que continuou o trilho já aberto, e cujo último acto – uma grande manifestação de romagem à sua campa – foi violentamente reprimido pela polícia de choque, mostrando o medo que o regime tinha da força da sua memória.

Também não chegou a ver o início da maior Crise Estudantil, em Coimbra, desencadeada cerca de um mês depois de nos ter deixado, com o pedido do Presidente da Associação Académica de Coimbra (AAC) de, em nome dos estudantes, usar da palavra na cerimónia de inauguração do novo edifício das Matemáticas, a 17 de Abril de 1969.

 

Hoje, tantas décadas passadas, parece incompreensível que o simples pedido de direito à palavra por parte de um representante da comunidade estudantil, num evento marcante da Universidade a que pertencia, tenha sido considerado como um gesto de intolerável subversão, provocando a maior perturbação nas hostes da ditadura que desencadeou uma cascata de actos repressivos – prisão do Presidente da AAC no mesmo dia, suspensão de oito dirigentes e posteriores processos disciplinares a mais de quatro dezenas, prisões e interrogatórios pela PSP e Judiciária, encerramento da AAC, mobilização coerciva para a tropa – a que os estudantes foram respondendo com greves a aulas e exames, para além de outras manifestações de solidariedade e de protesto.

Naturalmente que a justamente chamada «Crise de 69» – que, ao contrário de como é habitualmente relatada, se prolongou com picos de uma ainda maior violência até meados de 71 (numa sucessão de eleições, greves, manifestações, cargas policiais, prisões e tortura de estudantes pela PIDE em Caxias e novo encerramento da AAC) – não caiu do céu ou foi fruto de uma cartada solta dos seus dirigentes.

 

«Hoje, tantas décadas passadas, parece incompreensível que o simples pedido de direito à palavra por parte de um representante da comunidade estudantil num evento marcante da Universidade a que pertencia, tenha sido considerada como um gesto de intolerável subversão»

 

Antes do pedido da palavra que marcou o estalar da Crise – iniciativa nascida na Junta de Delegados de Ciências (utilizadores das novas instalações) e adoptada pela Direcção da AAC e pelo seu Presidente – houve todo um percurso de mais de uma década de persistentes lutas e protestos estudantis contra o ambiente opressivo e retrógrado das Universidades Portuguesas, com maior relevância em 1957, 1962 e 1965, alguns dos quais (como em 1962) com uma expressão simultânea nas três universidades existentes na altura.

 

Para quem viveu a crise estudantil de 1969 em Coimbra, que agora também comemora a passagem de meio século, a sua importância pelo papel que desempenhou na frente de luta contra a ditadura e na compreensão das formas de resistência cívica às arbitrariedades do poder, não pode ser diminuída.

 

O enfrentamento que constituiu a greve aos exames, quando o risco de perda do ano e por vezes do curso, com automática mobilização para a guerra, eram então postos em cima da mesa de muitos dos que não queriam trair a vontade da imensa maioria expressa em Assembleia Magna, representou um sacrifício colectivo que mudou a academia e a cidade para sempre.

 

A alegria que impregnou a luta e a dignidade conquistada marcou indelevelmente os que viveram essa época e foram muitos e inesquecíveis os momentos de fraterna emoção que afloraram no meio dos obstáculos vencidos.

Coimbra começou o ano de 1969 ainda mergulhada num ambiente de atrasado provincianismo, com a boémia das bebedeiras, os lares para raparigas e a separação dos sexos, onde apenas se consentiam os bailes às quartas e sábados (em que ainda se perguntava «a menina dança?»), marca do atraso cultural e da falta de cosmopolitismo de um quotidiano triste e baço ainda mais marcado que no das grandes cidades do Porto ou de Lisboa, e entrou na década de setenta, respirando já um ar mais puro, com uma academia mais livre, moderna e politizada, onde rapazes e raparigas conviviam sem os velhos e caducos preconceitos que viam no simples uso de calças ou na ida ao café sem companhia, uma inaceitável degradação da moral feminina.

 

«A alegria que impregnou a luta e a dignidade conquistada marcou indelevelmente os que viveram essa época e foram muitos e inesquecíveis os momentos de fraterna emoção que afloraram no meio dos obstáculos vencidos»

 

E se em 69, só na despedida dos estudantes castigados que iam para a tropa surgiram protestos explícitos contra a guerra colonial (questão sensível que o regime não tolerava), nos anos seguintes a consciência da sua perversa continuação e da entrega da riqueza do país a interesses de uma elite parasitária que não tinha em conta a miséria e desastre em que mergulhava todo um povo, tornou-se cada vez mais consensual e consciente, aflorando em todas as frentes políticas em que a juventude marcava presença.

 

Também quanto a isso Mário Sacramento usou a História e os seus ensinamentos para contornar, com elevação, a censura do regime, dizendo tudo.

Deixemo-nos agarrar pelo brilho do seu último discurso, nas comemorações do 31 de Janeiro, em 69, no velho Teatro Aveirense:

 

«O 31 de Janeiro de 1891 foi, assim, o estrebuchar de um povo que supôs bastar-lhe a mudança de patrão – o rei, no caso – para resolver os seus dramáticos problemas. Não há dúvida que o patrão se tornara um mero feitor de interesses abstencionistas, pois os verdadeiros donos do País eram os proprietários ingleses do vinho do porto, por exemplo, ou as companhias estrangeiras que exploravam os nossos recursos metropolitanos e ultramarinos. Merecia que o escorraçassem, e a quantos partilhavam tais despojos! Mas mudar de feitor não é transformar as estruturas que administre por conta alheia. Distinguir o falso dono do verdadeiro proprietário – seja ele inglês, americano ou alemão – é o passo fundamental que desde sempre se nos impôs dar para que a Pátria seja verdadeiramente nossa e, como tal, soberana e livre.»

 

Haverá mensagem mais actual, quanto à política imperial e predadora dos EUA de Trump e da União Europeia de Merkel, Hollande ou Macron, com os seus ultimatos e a suas «regras» que atropelam toda a legalidade e legitimidade e o respeito pela soberania e dignidade das nações ?

 

«[…]Onde os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não estão enraizados e podem ser coartados sem dificuldade. A política não é mais do que a cúpula do edifício societário. Pode ser pintada de mil maneiras, mas não deixa por isso, de fazer corpo com as paredes que a sustentam».

 

Haverá palavras mais oportunas, num momento em que o fino verniz da verve democrática do neoliberalismo estala, sacrificando, «em casa», as liberdades e direitos dos cidadãos, cavando mais as desigualdades, descredibilizando as estruturas democráticas?

 

Pode-se ser mais claro quando a extrema-direita fascista cresce e integra ou domina o poder em quase metade dos países da Europa, onde ressurge abertamente o racismo, a xenofobia e o tratamento desumano dos refugiados das guerras que o grande capital engendra?

 

«Mas pode-se ver o fim à História? É evidente que não. A História é um fazer incessante e nunca ninguém viu ou verá tudo aquilo por que se bateu ou luta, pois fica algo a meio do caminho. Ficou a meio do caminho o 31 de Janeiro de 1891. Está a meio do caminho o 31 de Janeiro de 1969, pois há outros oradores depois de mim. Vai a meio do caminho, quanto à Humanidade, a ida à Lua, a Vénus, a Marte e não seremos nós os Vascos da Gama de tais jornadas. Nenhum desses planetas aceitaria, aliás, ultimatos como o que Afonso de Albuquerque enviou ao sultão de Ormuz ou que o embaixador Petre entregou a D. Carlos de Bragança. Não se faz a História com ultimatos, nos nossos dias. Mas faz-se, como há 78 anos, com vivas como este. Viva a libertação!»

 

«[…]onde os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não estão enraizados e podem ser coartados sem dificuldade»

 

O que Mário Sacramento não adivinhava é que com a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria, os ultimatos como o de Afonso de Albuquerque ou do embaixador Petre voltariam. Na antiga Jugoslávia, no Iraque, na Líbia, na Síria, na Cisjordânia, na Venezuela.

 

Também por isso, no mês dos cravos, podemos repetir o último «viva!» com que terminou o discurso de 31 de Janeiro de 1969.

 

Ele permanece tão actual como na altura.

 

 

  • 1. Mário Emílio de Morais Sacramento nasceu em Ílhavo, a 7 de Julho de 1920, e faleceu a 27 de Março de 1969 no Porto. O médico, escritor neo-realista, ensaísta e político foi, até à sua morte, uma das mais importantes figuras do movimento de oposição democrática ao regime fascista. A sua biografia pode ser encontrada na Wikipédiana página Antifascistas na Resistência e em Aveirenses Ilustres – neste caso pela mão da sua irmã Maria Ivone.
  • 2. Em nota publicada na véspera do aniversário da sua morte, a Comissão Concelhia de Aveiro do PCP relembrou Mário Sacramento e anunciou «um programa de Comemorações do Centenário do Nascimento de Mário Sacramento, que irá incluir debates, sessões públicas e uma exposição», a iniciar «ainda este ano e a terminar em 2020».
  • 3. Deixada por Mário Sacramento em envelope fechado com a indicação «Para ser aberto quando eu morrer» e assinado o envelope com a indicação «Escrito em 7-4-1967», a Carta-Testamento teve uma primeira edição em livro em 1973, através da Editorial Inova (Porto), com grafismo de Armando Alves. Inclui, além daquele texto, intervenções de Óscar Lopes («Palavras de Óscar Lopes no Enterro de Mário Sacramento»), Álvaro Salema, Fernando Namora, Ilídio Sardoeira, Mário Castrim, Urbano Tavares Rodrigues e Vergílio Ferreira. Infelizmente encontra-se esgotada e apenas se consegue obter em alguns alfarrabistas. Esperemos que a proximidade do Centenário permita uma reedição pelo menos tão singelamente bela como a original. Entretanto, o leitor encontrará o texto integral da Carta-Testamento aqui.
  • 4. Mário Sacramento, que ainda jovem participara na oposição ao fascismo e, nos anos 40, integrara a Comissão Central do Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUD Juvenil), foi «secretário-geral e principal obreiro da comissão promotora do Primeiro Congresso Republicano, um fórum da oposição democrática que se reuniu em Aveiro no ano de 1957». À altura do seu falecimento, a 27 de Março de 1969, Mário Sacramento liderava igualmente o Secretariado encarregue da preparação do Segundo Congresso Republicano, que se viria a realizar também em Aveiro, entre 15 e 17 de Maio de 1969. O lugar deixado propositadamente vago foi a homenagem do Congresso ao infatigável lutador e organizador.

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