Nos últimos dias, assistimos, uma vez mais, à demolição das barracas no Talude Militar, um processo conduzido pela autarquia de Loures PS que envergonha qualquer sociedade que se queira democrática e minimamente civilizada. Não se tratou apenas da destruição de construções precárias. Tratou-se de um ataque frontal à dignidade humana, ao Estado de Direito e aos princípios fundamentais que regem o direito à habitação consagrado na Constituição da República Portuguesa e, em particular, no artigo 13.º da Lei de Bases da Habitação.
Essa lei estabelece, de forma clara, que ninguém pode ser despejado sem que exista uma solução habitacional adequada, proporcional e digna. O que vimos foi precisamente o oposto: dezenas de famílias – muitas compostas por crianças, idosos, pessoas com deficiência e outros grupos particularmente vulneráveis – foram postas na rua, sem qualquer alternativa concreta oferecida pela Câmara Municipal. Estas ações não são apenas socialmente inaceitáveis; são, no sentido mais rigoroso do termo, ilegais.
Mais grave ainda é o facto de a autarquia ter avançado com estas demolições mesmo depois de o Tribunal Administrativo de Lisboa ter emitido uma providência cautelar que as deveria ter travado. O Tribunal Administrativo de Lisboa, que em meados de julho de 2025 aceitou uma providência cautelar apresentada por 14 moradores do Talude Militar, determinou a suspensão imediata das demolições no local. Neste despacho, o tribunal ordenou que a Câmara Municipal de Loures se abstenha de prosseguir com qualquer ato de demolição, invocando a urgência da situação e a necessidade de proteger direitos fundamentais dos requerentes.
«Essa lei estabelece, de forma clara, que ninguém pode ser despejado sem que exista uma solução habitacional adequada, proporcional e digna. O que vimos foi precisamente o oposto (...).»
É impossível negar a gravidade do que está em causa: o poder político local ignorou deliberadamente uma ordem judicial. A separação de poderes é um dos pilares da democracia. Quando um executivo se permite desautorizar o judicial, abre-se a porta à arbitrariedade e ao autoritarismo.
Esta situação exige mais do que indignação: exige responsabilização. O poder local não pode operar à margem da legalidade e dos direitos humanos. A casa é muito mais do que um teto: é o espaço onde a vida se constrói, onde se formam memórias, onde se garantem segurança e estabilidade. Quando se destrói uma casa sem se oferecer uma alternativa, destrói-se também uma existência. Reduz-se uma vida a escombros. E isso é inaceitável.
Ao mesmo tempo, a ironia cruel desta política habitacional falhada torna-se ainda mais evidente quando se confronta com a realidade dos mais de 250 mil imóveis devolutos existentes em Portugal – muitos deles localizados precisamente nas áreas metropolitanas de maior pressão. Imóveis prontos a habitar, mas que permanecem encerrados, inertes, transformados em instrumentos de especulação em vez de recursos sociais. Esta incapacidade – ou melhor, esta ausência de vontade política – de mobilizar o parque habitacional devoluto para combater um problema estrutural não é neutra: é uma escolha ideológica. Uma escolha feita por sucessivos governos e por autarcas que se recusam a contrariar os interesses do mercado imobiliário. Que temem tocar no direito sacrossanto à propriedade, mesmo quando o direito à habitação é violentamente atropelado.
A direita, em particular, tem promovido um discurso que criminaliza os pobres e estigmatiza os bairros informais, sem nunca oferecer soluções concretas para os problemas de fundo. Fala de mérito e esforço, mas esquece que não há esforço que sobreviva à falta de um lar. Não estamos perante um problema técnico ou orçamental. Estamos perante uma escolha política. E, como tal, é uma escolha moral. Que Estado somos, afinal, se permitimos que crianças durmam ao relento enquanto há casas vazias com janelas e portas entaipadas, e muitas do próprio Estado? Que sociedade queremos ser, se aceitamos que se destruam vidas em nome da «ordem urbanística»? Está na hora de exigir mais. E melhor.
«A direita, em particular, tem promovido um discurso que criminaliza os pobres e estigmatiza os bairros informais, sem nunca oferecer soluções concretas para os problemas de fundo. Fala de mérito e esforço, mas esquece que não há esforço que sobreviva à falta de um lar.»
Para enfrentar de forma séria e estrutural a crise da habitação, é imprescindível adotar um conjunto de medidas que rompam com a lógica especulativa dominante e coloquem o direito à habitação acima dos interesses do mercado. Temos defendido uma política pública robusta que inclui o reforço da construção e reabilitação de habitação pública a custos controlados, a mobilização coerciva do parque habitacional devoluto – através de um regime de arrendamento forçado –, o controlo e regulação dos preços das rendas, e o fim dos benefícios fiscais ao setor imobiliário especulativo. Defendemos ainda que o Estado deve assumir um papel central na promoção e gestão da habitação, incluindo a exigência de pelo menos 1% do Orçamento do Estado dedicado a este fim. Sem uma resposta pública determinada, com investimento, planeamento e coragem política, o problema persistirá e continuará a empurrar milhares de pessoas para a exclusão habitacional e social. A habitação é um direito humano básico, universal, inalienável e incondicional. Cumpra-se!
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