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|Arábia Saudita

Tempestade Khashoggi abate-se sobre o mundo

No caso do assassínio do jornalista-espião Jamal Khashoggi o Ocidente é de novo vítima do oportunismo da estratégia de dois pesos e duas medidas e da falta de princípios diplomáticos e humanitários.

Polícias forenses turcos no consulado da Arábia Saudita em Istambul, investigando as circunstâncias da morte de Jamal Khashoggi. Istambul, Turquia, Outubro de 2018.
Polícias forenses turcos no consulado da Arábia Saudita em Istambul, investigando as circunstâncias da morte de Jamal Khashoggi. Istambul, Turquia, Outubro de 2018. CréditosFonte: El Independiente/EFE

O cadáver do jornalista-espião Jamal Khashoggi pode ainda não ter aparecido oficialmente, mas há muitos esqueletos a sair dos armários dos Estados Unidos e dos seus principais aliados ocidentais em matéria de direitos humanos, cumplicidades e relações com a Arábia Saudita, país que é propriedade privada de uma família cuja conduta não desdenha o recurso a práticas criminosas.

Sendo o assassínio de Khashoggi apenas mais um na longa lista de atrocidades que inclui chacinas contemporâneas como a que decorre no Iémen, as suas repercussões, porém, podem gerar uma situação diferente. Alguns sinais indiciam que o Ocidente poderá sentir-se obrigado, pela primeira vez, a bater de frente com o seu tradicional aliado. Mas estará preparado para se aguentar com a resposta dos beduínos do deserto, para quem «todo o insulto deve ser vingado»?

Petróleo a 200 dólares por barril, fim da exclusividade do dólar nas transacções petrolíferas, aproximação ao Irão, apoio ao Hamas e ao Hezbollah, compra de armas à China e à Rússia, cedência de uma base militar a Moscovo em região saudita próxima dos territórios da Síria, Israel, Líbano e Iraque – o recado de Riade já foi transmitido por Turki al-Dhakil, conselheiro do príncipe Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro, ministro da Defesa e homem forte da Arábia Saudita. Estas medidas e algumas outras do mesmo género serão as respostas a eventuais sanções norte-americanas e dos principais países ocidentais ditadas pelo assassínio de Khashoggi, agente da CIA, «residente norte-americano», braço direito do principal opositor de Mohammed bin Salman, Walid bin Talal – um dos homens mais ricos do mundo, embaixador secreto da Arábia Saudita em Israel.

Mohammed bin Salman, espécie de regente do reino perante a doença do rei Salman, com 82 anos, poderá ser, é certo, vítima da sua ganância galopante. Com pouco mais de 30 anos e depois de ter eliminado toda a concorrência na corrida ao trono, tornou-se um caso exemplar de alguém que pretende ganhar muito em pouco tempo. Isso pode sair-lhe caro na sequência de um episódio fabricado essencialmente no âmbito de serviços secretos e onde as traições cruzadas não serão de desprezar.

Ganancioso e sem limites

Mal ascendeu à posição de herdeiro do trono, Mohammed bin Salman pretendeu ter acesso às inexploradas reservas de hidrocarbonetos do deserto Rub-al-Khali, em território sob o domínio do Iémen; como este país se opôs às suas pretensões provocou a guerra que ainda hoje se arrasta, condenando sete milhões de pessoas à fome, provocando 15 mil mortos e 24 mil feridos em 1300 dias.

Em 4 de Novembro de 2017, Mohammed bin Salman aproveitou uma alegada tentativa de golpe palaciano para prender e torturar cerca de 1300 príncipes e altos quadros do regime, aproveitando para extorquir pelo menos metade das fortunas a cada um. E foi assim que 800 mil milhões de dólares entraram nos seus cofres pessoais, que não nos do rei – que se confundem com os do Estado.

De caminho, o herdeiro do trono decapitou, na verdadeira acepção da palavra, a oposição xiita ao executar o seu dirigente máximo, Nimr Bakr al-Nimri. E mandou arrasar com tanques de guerra numerosas aldeias e comunidades xiitas na região de Qatif, como foi o caso de Mussawara e Chukeiwat.

Um episódio mal contado

O assassínio de Jamal Khashoggi, ao cabo desta sequência de crimes durante a qual os Estados Unidos e os seus aliados permaneceram mudos e quedos, aparece como uma história ainda muito mal contada.

«Porém, nem a CIA – com quem Khashoggi trabalhava – nem o MIT advertiram o jornalista-espião dos riscos que corria. [...] De acordo com as revelações do Washington Post, Khashoggi foi mesmo dissuadido, por «uma pessoa da sua inteira confiança», de procurar a legalização dos seus documentos no consulado de Washington, e aconselhado antes a procurar o de Istambul. Quem o fez, apontou-lhe o caminho da morte»

Khashoggi sabia muitos segredos cujo receio de divulgação era suficiente para tirar o sono ao poder saudita. Não existem dúvidas de que Bin Salman o mandou silenciar, aproveitando também para lançar uma nova purga interna atingindo Walid bin Talal, um rival com peso mundial. Daí que a confissão atribuída a Khashoggi sob tortura, segundo a qual estava em preparação um golpe para afastar o príncipe herdeiro, fosse uma maneira de atingir definitivamente esse adversário.

O crime foi obra dos serviços secretos sauditas e a sua preparação era do conhecimento de outros serviços de espionagem.

A CIA sabia de tudo, segundo revelações do Washington Post; e os serviços secretos turcos, MIT, também; por isso montaram previamente escutas no consulado saudita em Istambul, onde tudo aconteceu.

Porém, nem a CIA – com quem Khashoggi trabalhava – nem o MIT advertiram o jornalista-espião dos riscos que corria. Isto é, deixaram-no ser assassinado, provavelmente para que os governos turco e norte-americano tirem proveito da situação. De acordo com as revelações do Washington Post, Khashoggi foi mesmo dissuadido, por «uma pessoa da sua inteira confiança», de procurar a legalização dos seus documentos no consulado de Washington, e aconselhado antes a procurar o de Istambul. Quem o fez, apontou-lhe o caminho da morte.

Nunca antes visto

O assassínio de Jamal Khashoggi adquire assim uma dimensão mundial jamais observada em relação a qualquer dos muitos crimes que preenchem o quotidiano da Arábia Saudita.

França, Reino Unido e Alemanha prometem sanções comerciais – longe de incluir, porém, a venda de armas com as quais o regime saudita flagela o Iémen, ameaça fazer o mesmo com o Koweit, e arrasa aldeias xiitas.

As ameaças dos Estados Unidos também não passam ainda de propaganda da qual faz eco a comunicação social. Não é de crer que os impérios armamentistas norte-americanos admitam que seja posta em causa, por exemplo, a última encomenda de armas feita pelo príncipe Mohammed bin Salman, e que ascende a 110 mil milhões de dólares.

Numa primeira fase, Trump deu «credibilidade» às versões sauditas sobre o «desaparecimento» de Khashoggi; depois, achou «lógicas» as explicações sobre a suposta «rixa» com «bandidos comuns» da qual teria resultado a morte do jornalista. Aguarda-se, entretanto, que a visita de uma equipa da CIA ao local do crime contribua para uma posição norte-americana mais credível perante a opinião pública – muito sensibilizada internacionalmente pelo assassínio.

Uma sensibilização que não deixa de ser caso virgem perante os continuados crimes do regime saudita.

Nunca os Estados Unidos e as principais potências da NATO e da União Europeia manifestaram qualquer inquietação pelo contributo do Riade para a criação de grupos terroristas islâmicos, desde os mujahidin afegãos, em meados dos anos setenta, seguindo-se bin Laden e a al-Qaida e seus sucedâneos, até ao Estado Islâmico e suas sequelas.

Jamais os Estados Unidos e seus aliados procuraram aprofundar as «coincidências» existentes entre o poder saudita e os atentados de 11 de Setembro de 2001 em Nova York.

O apoio terrorista patrocinado pela Arábia Saudita às operações de destruição de países como a Líbia, o Iraque ou a Síria nunca foi condenado – pelo contrário, foi aproveitado – pelos aliados ocidentais de Riade.

Não consta que alguma voz oficial dos Estados Unidos, da NATO e União Europeia tenha condenado a invasão saudita do Bahrein para fazer abortar a «primavera árabe».

Tolerância colaborante que se repete com a sangrenta agressão contra o Iémen, cujo fim não está à vista.

O assassínio sistemático de dirigentes da oposição saudita, ou mesmo de membros da família real «dissidentes» não é assunto que chame a atenção dos escrupulosos dirigentes europeus e norte-americanos.

Muito menos será motivo de inquietação o massacre de populações xiitas do reino whaabita, cujo monarca é uma emanação directa de Deus.

O Tratado de Quincy

Porém, a repugnante morte de Khashoggi, um crime entre muitos, uma vítima entre centenas de milhares, alterou a rotina complacente.

Acontece que quando Mohammed bin Salman eliminou a concorrência e se proclamou futuro rei observou-se na Europa e nos Estados Unidos uma onda de entusiasmo: o homem era um liberal, deixava as mulheres conduzir automóveis, promovia concertos, na verdade estávamos perante uma pedrada no charco, em Riade despontava um quase-democrata.

E nenhum dos seus actos criminosos mereceu reparos até ao assassínio de Khashoggi.

De repente, e apenas por causa do que aconteceu em Istambul, passámos a estar em presença de alguém que se limita a traduzir a essência do regime saudita – um comportamento «medieval».

Além do carácter invulgar da reacção internacional a este crime saudita, há outros aspectos, quase esquecidos, que contribuem para a sua singularidade.

Temos vindo a assistir a uma concentração das responsabilidades pelo assassínio de Khashoggi na pessoa de Mohammed Bin Salman, ilibando-se assim não apenas o rei Salman como o próprio regime.

O presidente Barack Obama despede-se de um dignatário saudita em Ryad, Arábia Saudita, a 4 de Junho de 2009. CréditosPete Souza/White house /

Desta maneira, a situação torna-se exterior ao conteúdo do Tratado de Quincy, celebrado em 1945 entre o presidente norte-americano Franklin Roosevelt e o monarca saudita, mais recentemente confirmado por George W. Bush. Em duas palavras, o acordo estabelece que os Estados Unidos têm acesso aos hidrocarbonetos da região em troca da protecção militar ao reino da Arábia Saudita. Este, por seu turno, compromete-se a viabilizar a existência de um Estado judaico na Palestina.

De acordo com o tratado, os Estados Unidos devem proteger militarmente o Estado saudita, representado pelo rei. Esta interpretação exclui, portanto, o príncipe herdeiro; assim sendo, Bin Salman poderá ser removido e substituído por alguém menos truculento e ganancioso, alguém que possa contribuir para concretizar o mais recente projecto da Administração Trump: reactivar a economia norte-americana fazendo reingressar no país parte dos investimentos em hidrocarbonetos, ou seja, através de generoso reforço dos investimentos sauditas. Mohammed bin Salman poderia não ser o homem ideal para essa estratégia, apesar das fabulosas encomendas de armamento já feitas.

«Benjamin Netanyahu e Bin Salman são unha com carne. O primeiro-ministro israelita conta com o dirigente saudita para continuar a assegurar a inoperância da Autoridade Palestiniana, [...] Conhecendo-se a ligação umbilical entre os Estados Unidos e Israel, sobretudo entre Netanyahu e Trump, percebe-se que Mohammed bin Salman poderá não ser tão descartável como parece»

A situação joga-se agora no fio da navalha: ou Bin Salman é derrubado através de mais um golpe palaciano e faz-se «justiça» por Khashoggi – isto é, o poder saudita ficará em mãos mais previsíveis para os «revoltados» com o assassínio do jornalista-espião; ou ele resiste e a dimensão das ameaças já proferidas poderá ser uma tempestade sobre a economia mundial. Fechar as torneiras do petróleo até aos sete milhões e meio de barris por dia, catapultando-o para os 200 dólares por barril, é uma perspectiva assustadora para grande parte das nações mundiais.

A posição de Mohammed bin Salman, entretanto, poderá não ser tão periclitante como parece, porque tem um aliado poderosíssimo: Israel. Que não deixará de se movimentar neste contexto.

Benjamin Netanyahu e Bin Salman são unha com carne. O primeiro-ministro israelita conta com o dirigente saudita para continuar a assegurar a inoperância da Autoridade Palestiniana, mesmo perante a transferência de embaixadas para Jerusalém e a continuação da colonização; e, sobretudo, para manter viva a pressão bélica sobre o Irão. Bin Salman, por seu lado, assegura um alto nível de ameaça contra o Irão e continuará a contar com Israel para a guerra contra o Iémen. Telavive e Riade têm um quartel-general conjunto na Somalilândia, neste momento quase exclusivamente dedicado às operações militares em território iemenita.

Dentro do silêncio oficial israelita têm-se ouvido algumas vozes oficiosas saudando o desaparecimento de Khashoggi, alguém que «era amigo da al-Qaida e da Irmandade Muçulmana» – o que sendo verdade para o jornalista espião também não deixa de o ser para o regime sionista, tendo em conta o caso sírio.

Conhecendo-se a ligação umbilical entre os Estados Unidos e Israel, sobretudo entre Netanyahu e Trump, percebe-se que Mohammed bin Salman poderá não ser tão descartável como parece.

O nó está apertado. E a chantagem de Riade tem conteúdo explosivo. Mais uma vez o Ocidente é vítima do oportunismo da estratégia de dois pesos e duas medidas, da falta de princípios diplomáticos e humanitários.

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