Marjory Stoneman Douglas, nascida em 1890, mudou-se aos 25 anos para a cidade de Miami, na Flórida, quando esta tinha apenas cinco mil habitantes, para trabalhar no jornal Miami Herald. Participou no movimento sufragista pelo direito de voto das mulheres e teve um papel pioneiro no movimento ecologista, em particular pela defesa e recuperação dos Everglades – zona tropical no sul da Florida – e pelo estabelecimento aí de um Parque Nacional, hoje o terceiro maior dos EUA.
Majory Stonneman Douglas (MSD) foi o nome escolhido para uma nova escola secundária inaugurada em 1990, em Parkland, na área metropolitana de Miami, hoje com mais de seis milhões de habitantes. Numa das escadarias da escola está pintada na parede uma frase atribuída a Gandhi: «Sê a mudança que queres ver no mundo».
A citação não é exacta, e embora Gandhi tenha encarado a mudança pessoal como contribuindo para a transformação social, compreendia que uma pessoa agindo isoladamente, em conformidade com a transformação que deseja no mundo à sua volta, não é suficiente. O activismo de Ganhdi demonstrou-o: a injustiça só pode ser superada quando muitas pessoas lutam em unidade, de forma disciplinada e persistente.
O movimento «Nunca Mais»
Após o tiroteio nesta escola, no passado dia de São Valentim (14 de Fevereiro), no qual morreram 14 estudantes e 3 trabalhadores, os jovens que sobreviveram ao massacre demonstraram terem compreendido a importância da organização e luta para mudarem e melhorarem o mundo. Não se refugiaram em casa, não se limitaram a meras sessões de luto e rejeitaram as preces e o votos de pesar dos políticos. Organizaram protestos, eloquentemente exigiram mudança, e formaram um movimento (#NeverAgain e #EnoughIsEnough, ou seja "Nunca Mais" e "Já Basta"). As suas acções tiveram um eco imediato: os protestos e movimento alargaram-se, e os media e políticos não o foram capaz de ignorar. O tema do controlo de armas manteve-se na ordem do dia, obrigando a alterações na agenda política. Nem sempre se deram avanços, mas ocorreram algumas vitórias parciais.
Na Flórida, o terceiro estado com mais armas registadas a seguir ao Texas e Califórnia, que tem servido de tubo de ensaio da Associação Nacional de Rifles (NRA) para avançar legislação permissiva à posse de armas, a legislatura passou este mês uma lei aumentando a idade legal para compra de armas de 18 para 21 anos, estabeleceu períodos de espera e verificação de antecedentes antes da entrega da arma, baniu bumpstocks (que quando colocado na coronha de uma arma semi-automática a transforma numa automática), e criou restrições à compra de armas por pessoas potencialmente violentas ou com problemas mentais.
Esta foi a primeira vez nos últimos 30 anos que na Flórida foram aprovadas restrições à venda e posse de armas. O governador da Flórida, Rick Scott, que ao longo sua carreira política tem apoiado as posições da NRA e recebido o seu apoio, viu-se forçado a aprovar a lei. Quando a assinou, a 9 de Março, dirigiu-se aos estudantes da Escola MSD: «Fizeram-se ouvir. Não desistiram e lutaram até que houvesse mudança».
Marcha pelas nossas vidas
Foi um dos maiores protestos de jovens desde os realizados contra a guerra ao Vietname. Em paralelo à grande manifestação em Washington D.C., a 24 de Março de 2018, realizaram-se mais de 450 outras concentrações pelo país, estimando-se que ao todo terão participado pelo menos 1.2 milhões de pessoas a nível nacional.
Mas a mudança era ainda insuficiente, e os estudantes continuaram a fazer-se ouvir e a lutar. Pouco mais de um mês após o massacre na escola realizou-se uma manifestação nacional na capital Washington D.C., «Marcha pelas nossas vidas», o resultado directo do movimento iniciado por uma dúzia de estudantes na Escola MSD. Várias centenas de milhares pessoas concentraram-se perto do capitólio, muitos deles jovens estudantes, demonstrando que a juventude não é apática, mas está disposta a lutar por mudanças políticas efectivas. Segundo a agência de notícias Associated Press, este foi um dos maiores protestos de jovens desde os realizados contra a guerra ao Vietname. Em paralelo realizaram-se mais de 450 outras concentrações pelo país, estimando-se que ao todo terão participado pelo menos 1.2 milhões de pessoas a nível nacional.
Os discursos em Washington demonstraram que este movimento tem potencial para se alargar e continuar. Os seus promotores, com humildade, reconheceram que têm beneficiado de maior atenção por provirem de uma comunidade privilegiada. Afirmaram claramente que o problema da posse de armas vai muito além dos massacres escolares (uma delimitação que a NRA e forças conservadores tentaram promover), e como tal têm rejeitado como insuficientes medidas que meramente procurem reforçar a segurança nas escolas. E em conformidade com estas posições levaram a palco vários testemunhos da violência por armas nos bairros de habitação, em particular nas zonas empobrecidas, onde disparos, ferimentos e mortes por baleamento são ocorrência quotidiana.
Agora, «Já Basta»!
Uma das sobreviventes de Parkland, Jaclyn Corin, afirmou no seu discurso: «Eu reconheço que Parkland recebeu mais atenção devido à sua maior afluência. Mas partilhamos este palco hoje e sempre com aquelas comunidades que sempre tiveram de espreitar pelo cano de uma arma.» Corin trouxe então a palco Yolanda Renee King, neta de Martin Luther King Jr. De apenas 9 anos, Yolanda declarou, perto do local onde há 55 anos o seu avô havia discursado: «O meu avô tinha um sonho: que as suas quatro crianças não seriam julgadas pela cor da sua pele, mas antes pelo conteúdo do seu carácter. Eu tenho o sonho de que já basta. Este deve ser um mundo livre de armas, ponto final.».
Os jovens mostraram claramente que os protestos tão pouco irão terminar com a marcha nacional. Segundo as palavras de Leslie Chiu, em Boston, também aluna da escola MSD: «Este não é um momento. Este é um movimento». A exigência tem sido de mudança, e se os políticos não fizerem a mudança, então vão contribuir para mudar os políticos. O movimento tem-se alargado, mobilizando para participação em assembleias locais, apelando ao registo eleitoral e mobilizando para o voto em candidatos que enfrentem o lóbi do NRA e defendam restrições à posse de arma. E à medida que nos aproximamos das eleições de Novembro deste ano, onde os Republicanos já enfrentam diversas dificuldades, esta pressão começa a surtir resultados suficientemente evidentes para apoquentar vários candidatos.
«O meu avô tinha um sonho: que as suas quatro crianças não seriam julgadas pela cor da sua pele, mas antes pelo conteúdo do seu carácter. Eu tenho o sonho de que já basta. Este deve ser um mundo livre de armas, ponto final»
Yolanda Renee King, neta de Martin Luther King Jr., De apenas 9 anos
A pressão persistente vai gerando frutos a diferentes níveis. Aquando da escrita deste texto, foi publicado no New York Times um artigo de opinião em que o ex-juiz supremo dos EUA, John Paul Stevens, após elogiar o envolvimento cívico dos jovens e suas reivindicações, apela a que exigam também a revogação da segunda emenda à Constituição dos EUA, onde se afirma: «sendo necessária à segurança de um estado livre [haver] uma milícia bem regulada, o direito de manter e possuir armas não irá ser infringido». Stevens é peremptório: a segunda emenda, há muito uma bandeira da NRA, é uma relíquia dos século XVIII. Só fruto da pressão e acção da NRA é que esse anacronismo do período revolucionário dos EUA se transformou num pretenso direito individual à posse de armas. Diz Stevens que a sua revogação seria a acção mais simples e dramática para atingirem o seu objectivo.
Um profundo contraste: a Administração Trump
Em profundo contraste com a organização e coerência do movimento #NeverAgain, encontramos o caos e a dissonância da Administração dos EUA, que acumula escândalos cobrindo o espectro do cinzento ao cor-de-rosa, incidentes que vão anestesiando a reacção a cada novo desenvolvimento. A variação de posições face a assuntos de importância central, como por exemplo as trocas comerciais e taxas aduaneiras, desestabilizam os mercados financeiros, perturbam as relações internacionais, e ameaçam o presente estado de paz, já consideravelmente precário. Nos últimos meses tem-se assistido a inúmeras mudanças em postos de grande relevo na administração, o que contribuirá para um clima de apreensão entre os muitos funcionários da própria administração e seus diversos departamentos, mas também para um clima de incerteza nas relações entre estados.
São exemplo o despedimento do sub-director do FBI, Andrew McCabe, apenas 26 horas antes de se reformar, ficando assim destituído dos benefícios de reforma completos a que teria direito após 20 anos de carreira pública. Ou Rex Tillerson, que já foi objecto de críticas neste espaço, mas que foi, porém, uma das raras vozes na administração apelando a uma abordagem diplomática entre os EUA e a República Popular Democrática da Coreia (RPDC), o que motivou repreensões acrimoniosas por parte do Presidente Trump. A estratégia de Tillerson, enquanto Secretário de Estado, parecia ganhar terreno após Trump ter anunciado, para surpresa generalizada, a realização de um encontro de alto nível entre os EUA e o RPDC, a primeira vez que tal ocorreria. Mas a 13 de Março, durante uma missão diplomática de Tillerson em África, este tomou conhecimento, através de um tweet de Trump, que fora despedido.
Veja-se o nível de sovinice, despedimentos à beira da reforma, outros por via electrónica… O mais sério é que a Casa Branca, comprometida agora com um encontro diplomático revestido de importância histórica, não tem nenhuma figura de relevo que esteja efectivamente investida nele para que venha a dar frutos positivos. Para substituir Tillerson, Trump nomeou como Secretário de Estado (o equivalente a Ministro de Negócios Estrangeiros) o director da CIA, Mike Pompeo, que já havia afirmado que não seriam feitas quaisquer concessões perante a RPDC. O recém-nomeado Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, advogava em Fevereiro passado, num artigo de opinião no Wall Street Journal, a realização de ataques preventivos contra a RPDC.
Ambos têm defendido posições de força não só contra a RPDC mas também contra o Irão (levando a prever sérios perigos para o acordo nuclear celebrado em 2015). Se estes gaviões não travarem o encontro diplomático, irão certamente sabotá-lo, para que possam depois alegar que a diplomacia não funcionou, que não se pode negociar com a RPDC e que a força é a única alternativa. Após a recente onda de despedimentos e nomeações, Trump reuniu à sua volta a equipa mais belicista das últimas décadas, o que para os EUA é dizer muito.
«Não nos vamos embora»
Por isso também é tão refrescante o movimento dos jovens contra a violência pelas armas. Porque lutar contra essa violência nas escolas e nas ruas, é também lutar contra as armas em geral, as armas nucleares em particular, contra a guerra, e pela paz. Nas palavras de Rebecca Schneid, sobrevivente do massacre na escola MSD e co-editora do seu jornal, o Eagle Eye: «na segunda feira, estarei de novo em Parkland. Vou continuar a ir às aulas e aos eventos desportivos, vou continuar a escrever para o meu jornal. Mas vou também continuar a lutar, e outros também o farão. Somos eloquentes. Temos opiniões. Exigimos mudança. E não nos vamos embora.».
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