Os «nossos valores» sequestrados

Não é opção, é uma ordem «baseada em regras»: a lei do «excepcionalismo» de âmbito planetário gerido pela única nação «indispensável». E dizem os comentadores autorizados que não existe imperialismo.

CréditosStephanie Lecocq / EPA

Os nossos dirigentes, tanto os que têm envergadura imperial como os seus súbditos, para quem a soberania nacional é coisa arcaica própria de mentes estagnadas, repetem sem descanso, martelando a cabeça dos cidadãos como no método tradicional de ensino da tabuada, que agimos em função dos «nossos valores partilhados». Nós, o garboso Ocidente, senhores do planeta e dos espaços siderais por mandato divino e usucapião fundado em séculos de expansão e extorsão, assim administrando a «civilização».

«Nossos valores partilhados» nas bocas dos fundamentalistas ocidentais é todo um programa de dominação, um conceito de ordem mundial assente num único poder centralizado com ambição a tornar-se global e incontestado.

Se olharmos o mundo à nossa volta nestes dias assustadores, equipados com lucidez, independência de raciocínio e dose cada vez mais elevada de coragem, concluiremos que a aplicação desses «valores» – a palavra certa é imposição – funciona como um gigantesco exercício de manipulação que transforma princípios universais, humanos, inquestionáveis e comuns a muitas e diversificadas culturas num poder minoritário, de índole mafiosa e níveis de crueldade que vão da mentira institucionalizada à generalização da guerra, passando pelo roubo como forma de governo e de administração imperial/colonial. A este aparelho que pretende impor uma realidade paralela àquela em que vivemos chama-se «ordem internacional baseada em regras», um catálogo de normas de comando voláteis, casuísticas, não escritas e a que todo o planeta deve obedecer cegamente, sem se interrogar nem defender.

«Ordem internacional baseada em regras» é o código imperial que veio soterrar o direito internacional e transformar as organizações mundiais que devem aplicá-lo em órgãos que rodopiam à mercê das «regras» de cada momento, manipulados, desvirtuados e instrumentalizados segundo as conveniências do funcionamento da realidade paralela.

Liberdade e democracia

Poucos princípios preenchem tanto as prédicas dos dirigentes mundiais e seus apêndices às escalas regional e nacional do que liberdade e democracia.

Uma liberdade para expandir globalmentee, porém com uma definição muito específica e padrões limitados pelas «regras» da única ordem internacional permitida.

A liberdade prevalecente, e que condiciona todas as outras, acaba por ser a da propriedade privada e da inexistência de restrições ao funcionamento do mercado. Todas as restantes alavancas que devem fazer funcionar o mundo assentam neste princípio inquestionável que faz da justiça social uma aberração, transforma em servos a grande maioria dos seres humanos, converte as organizações internacionais e a generalidade dos governos nacionais em instrumentos dos casinos financeiros e das oligarquias económicas sem pátria, fronteiras ou limites comportamentais. Uma liberdade condicionada pela ditadura do lucro e a vassalagem ao dinheiro.

Este conceito dominante de liberdade, a liberdade de extorsão própria da realidade em que de facto vivemos, é desde há muitos séculos um alicerce da «civilização» ocidental – a única reconhecida para efeitos de relações internacionais. A ordem «baseada em regras» é extremamente exigente e vigilante em relação a esta mãe de todas as liberdades e, se necessário for, não hesita em recorrer à guerra para a restaurar lá onde estiver ameaçada.

«Todas as restantes alavancas que devem fazer funcionar o mundo assentam neste princípio inquestionável que faz da justiça social uma aberração, transforma em servos a grande maioria dos seres humanos, converte as organizações internacionais e a generalidade dos governos nacionais em instrumentos dos casinos financeiros e das oligarquias económicas sem pátria, fronteiras ou limites comportamentais.»

Com a democracia acontece mais ou menos a mesma coisa. Só existe um único formato que permite instituir o «poder do povo», mesmo que depois o povo em nada se identifique e beneficie com a interpretação da sua vontade que dela fazem os eleitos. É mais ou menos assim, segundo o padrão «representativo» determinado pelo Ocidente: de x em x anos criam-se festivais ditos políticos onde vigoram a violação tácita da igualdade de exposição de opiniões, a manipulação da informação e das chamadas «sondagens» e a divisão ostensiva e «institucionalizada» entre os partidos com «vocação para governar» e os outros; ensinados assim a «decidir», as maiorias de eleitores escolhem em «liberdade» os seus preferidos, garantidamente aqueles aplicam a doutrina oficial «democrática», nestes tempos o capitalismo na sua arbitrariedade plena, o neoliberalismo.

Exemplo desta democracia no seu grau máximo de evolução é a União Europeia: neste caso os cidadãos nem precisam de «escolher» os dirigentes máximos da organização, simplesmente nomeados para não haver erros nem desvios à doutrina governativa oficial e única; e supondo que os eleitores «escolhem» directamente o Parlamento Europeu, este tem poderes limitados para não perturbar o trabalho arbitrário dos não eleitos ao serviço dos seus patrões.

Quanto aos Estados Unidos, o paradigma democrático a que deve obedecer-se num mundo unipolar, a escolha imposta aos cidadãos limita-se a dois aparelhos mafiosos de poder que agem em formato de partido único. Sendo esta a democracia que funciona como farol, segundo as sentenças abalizadas dos mestres da opinião única, todas as outras devem seguir tendencialmente o mesmo caminho. Não é opção, é uma ordem «baseada em regras»: a lei do «excepcionalismo» de âmbito planetário gerido pela única nação «indispensável». E dizem os comentadores autorizados que não existe imperialismo.

Daí que os praticantes da democracia ocidental, a única, tenham ainda como missão fiscalizar os exercícios democráticos através do mundo. Por isso a União Europeia, por exemplo, arroga-se o direito de «aceitar» ou não os referendos nos quais as populações do Donbass decidiram juntar-se à Rússia.

«A ordem "baseada em regras" é extremamente exigente e vigilante em relação a esta mãe de todas as liberdades e, se necessário for, não hesita em recorrer à guerra para a restaurar lá onde estiver ameaçada.»

Trata-se, afinal, de aplicar o princípio de reconhecer as eleições e consultas populares que dão o resultado pretendido pelo Ocidente e rejeitar as outras cujos eleitores decidiram de forma não tolerada pelos vigilantes da ordem internacional, como se tivessem violado as «regras» mesmo cumprido os mecanismos processuais das votações instituídos como únicos. É à luz desse entendimento discriminatório que os Estados Unidos e os seus satélites não reconhecem resultados eleitorais na Venezuela, na Nicarágua, na Rússia, por exemplo, mas assinam por baixo a legitimidade de fraudes como nas Honduras, de golpes como no Brasil, Paraguai, Bolívia, Ucrânia, Paquistão (só alguns dos mais recentes) ou a designação como presidentes de indivíduos que nem sequer concorreram a eleições – o caso de Juan Guaidó na Venezuela. 

A democracia ocidental é, como se prova, bastante elástica em casos que chegam a roçar o absurdo e muito restritiva no reconhecimento de actos eleitorais legítimos, porém menos convenientes para os interesses dos «excepcionalismo». É uma questão de exercício do poder internacional que o Ocidente julga possuir à luz de «regras» casuísticas determinadas consoante os interesses de uma «civilização» que não envolve mais de 15% da população mundial.

«É à luz desse entendimento discriminatório que os Estados Unidos e os seus satélites não reconhecem resultados eleitorais na Venezuela, na Nicarágua, na Rússia, por exemplo, mas assinam por baixo a legitimidade de fraudes como nas Honduras, de golpes como no Brasil, Paraguai, Bolívia, Ucrânia, Paquistão (só alguns dos mais recentes) ou a designação como presidentes de indivíduos que nem sequer concorreram a eleições – o caso de Juan Guaidó na Venezuela.»

Recorrendo a exemplos muito actuais, eis como a «democracia ocidental» é peculiar no próprio Ocidente. Robert Habeck, ministro da Economia da Alemanha, colosso cada vez mais reduzido a um tapete de Washington, garante que não lhe interessa a opinião do eleitorado, o essencial é que a Rússia seja derrotada pela Ucrânia. E Josep Borrell, o «ministro dos negócios estrangeiros» da União Europeia, que ninguém elegeu, determina que os cidadãos europeus «têm de pagar o preço» necessário para «derrotar a Rússia». Ora aqui estão «regras» que corrigem a própria democracia padrão.

O mesmo Borrell, espanhol e também socialista, é claríssimo na interpretação dos «nossos valores partilhados». Considera que na vida internacional há, evidentemente, «dois pesos e duas medidas»: os nossos, os «correctos», e os dos outros, atributos daquilo que George W. Bush qualificou como «a barbárie».

Direitos humanos

Pedra de toque dos «nossos valores partilhados», os direitos humanos traçam a grande fronteira entre o Ocidente «civilizado» e os outros – 85% da população mundial.

Direitos humanos são, por sinal, valores que ilustram a preceito a tese de Borrell sobre dois pesos e duas medidas: nós sabemos o que são direitos humanos, os outros não.

«E Josep Borrell, o «ministro dos negócios estrangeiros» da União Europeia, que ninguém elegeu, determina que os cidadãos europeus «têm de pagar o preço» necessário para "derrotar a Rússia". Ora aqui estão "regras" que corrigem a própria democracia padrão.»

Os principais acontecimentos da actualidade permitiram até refinar o conceito de direitos humanos a partir da clarificação entre seres humanos e entes sub-humanos – distinção baseada nas práticas de Volodimyr Zelensky, por sua vez inspirada nos conceitos purificadores de Stepan Bandera e seus pares, pais e heróis do regime ucraniano de Kiev, no seu tempo colaboradores dos nazis alemães em massacres de dezenas de milhares de seres humanos – talvez deva escrever-se sub-humanos.

As nações europeias dançam a música tocada por Zelensky segundo partitura das «regras» de Washington, para que os russos do Donbass e os russos em geral, sub-humanos por definição dos nazis que mandam em Kiev, sejam devidamente sacrificados tal como vinha a acontecer, metodicamente, como resultado de uma guerra iniciada há oito anos.

A «democracia ocidental» apostando o que tem e não tem, a própria vida dos cidadãos por ela regidos, para que um regime nazi liquide sub-humanos é um cenário apropriado para quem defende os direitos humanos acima de tudo? É o aval para a conversão do nazismo à democracia ou, antes de tudo, a demonstração de que a «democracia ocidental» segue na direcção do inferno do fascismo? O que nada tem de ilógico, pois foi o fascismo que embalou no berço a ditadura neoliberal que dá forma ao regime financeiro-económico-político dominante em termos internacionais, exercido com ambições globalistas e totalitárias e que, em última instância, dita a «ordem internacional baseada em regras».

Governantes, comentadores, analistas e outros formatadores da opinião única incomodam-se quando, a propósito da situação no Donbass, se recordam as atrocidades cometidas pelos Estados Unidos e a NATO, ou respectivos braços mais ou menos informais, nas guerras – algumas delas «humanitárias» – levadas até à Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, Somália, Líbia, Síria, Iémen. Sem esquecer o caso exemplaríssimo do Kosovo, onde os Estados Unidos e a União Europeia praticaram uma secessão territorial sem qualquer consulta às populações envolvidas e entregaram o governo a terroristas fundamentalistas islâmicos especializados em múltiplos tráficos, todos eles rigorosamente respeitadores dos direitos humanos, como está comprovado.

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A União Europeia morreu e ninguém a informou

A arrogância, o autoconvencimento suicida e a subserviência doentia dos dirigentes da União Europeia perante o diktat norte-americano transformou a guerra na Ucrânia no acontecimento fatal para a comunidade.

Mural anti-Nato por ocasião das eleições legislativas na Sérvia. Belgrado, 4 de Abril de 2022 
CréditosANDREJ CUKIC / EPA

A Europa Ocidental tem apenas mais 20 a 30 anos de democracia; depois disso deslizará sem motor e sem leme sob o mar envolvente da ditadura (…)
                      Willy Brandt, chanceler da República Federal da Alemanha, 1974

Willy Brandt, polémico mas suficientemente lúcido para não fechar pontes em plena guerra fria, era um estadista, espécie entretanto desaparecida como os dinossauros. Governou nos tempos em que se pensava existir uma coisa chamada «social-democracia», que durante as últimas décadas também «deslizou sem motor e sem leme» para a selvajaria neoliberal, a ditadura da economia sobre a política, passo decisivo para a extinção da democracia – como estamos a perceber.

Brandt não era um bruxo; limitou-se a reflectir sobre perspectivas a médio prazo com base na percepção, leitura objectiva das realidades, experiência e intuição que não lhe faltavam porque era um praticante de política, actividade que é um direito geral de cidadania entretanto «promovida» a uma espécie de «ciência oculta» actualmente apenas ao alcance de uma seita de predestinados com capacidade para governar, dominada pela arrogância, a frieza desumana, a irresponsabilidade e a mediocridade, particularidades afinal essenciais num regime autoritário.

«A guerra na Ucrânia, efectivamente travada entre a NATO e a Rússia, contribuiu para trazer à superfície os sinais inequívocos da ascensão da ideia de um mundo polifacetado no qual direitos nacionais plenos até agora violentamente reprimidos pelos poderes coloniais e imperiais do Ocidente se afirmam de modos bastante concretos, operacionais e explícitos. Esse é o combate existencial do nosso tempo»

As palavras do antigo chanceler alemão, proferidas pouco antes de deixar o cargo, projectam-se na actualidade de maneira tão evidente como inquietante. Acertam em cheio no «deslizamento» da Europa para a ditadura política, completando-se assim o cenário aberto pelo totalitarismo da economia (ditadura do mercado), embora mantendo aparências formais em matéria de direitos cívicos, entretanto ferozmente vigiados e combatidos passo-a-passo por meios antidemocráticos.

Esta Europa, desde que assumiu a forma dominante de União Europeia como expressão do poder oligárquico e braço político da NATO, reforça a visão etnocentrista de uma pax imperial assente em nações «aliadas» orientadas pelo dogma mítico segundo o qual a paz generalizada será encontrada como resultado final de múltiplas guerras «defensivas» e «humanitárias». O chamado Ocidente criará assim as condições propícias para a implantação do globalismo neoliberal, de preferência gerido por um governo único e obviamente totalitário tal como postulam há muito o veterano guru imperialista Henry Kissinger, o conspirativo Grupo de Bilderberg e mais recentemente o Fórum Económico Mundial, instrumento das oligarquias sem pátria que representam menos de um por cento da população mundial e dos expoentes políticos que as servem.

Os fundamentos deste modelo imperial pressupõem a continuação do funcionamento inquestionável de uma ordem unipolar mundial, ou «ordem internacional baseada em regras» dirigida de Washington e contornando o direito internacional reconhecido pela esmagadora maioria das nações do mundo. Para a garantir existem 800 bases militares norte-americanas distribuídas pelo mundo, reforçadas com o policiamento permanente dos mares, uma estrutura que tem um papel indispensável na pretendida «globalização da NATO».

«Daí os esforços necessários para criar e aproveitar cada oportunidade de paz. Embora a «paz» esteja proscrita e os seus defensores sejam olhados como perigosos dissidentes da narrativa única própria de uma ditadura como a que, há quase meio século, o ex-chanceler alemão Willy Brandt anteviu para a Europa»

Apesar disso, essa ordem sente-se ameaçada. A guerra na Ucrânia, efectivamente travada entre a NATO e a Rússia, contribuiu para trazer à superfície os sinais inequívocos da ascensão da ideia de um mundo polifacetado no qual direitos nacionais plenos até agora violentamente reprimidos pelos poderes coloniais e imperiais do Ocidente se afirmam de modos bastante concretos, operacionais e explícitos.

Esse é o combate existencial do nosso tempo, em que a ideia do «fim dos Estados-nação» de que se apropriou a oligarquia globalista sem pátria se confronta com a crescente afirmação de relações mais justas e igualitárias entre nações soberanas, independentemente dos seus sistemas políticos. E não, soberanismo não se confunde com nacionalismo e muito menos com populismo.

Como é próprio dos conflitos existenciais, sobretudo este que envolve capacidades e estratégias de extermínio global, a situação actual é aterradora. As declarações de um e outro lado encarando a hipótese «limitada» de recurso a esse tipo de armas revelam a irresponsabilidade, a inconsciência e até a loucura sociopata de quem as profere. Sabendo nós que não se trata de casos isolados e de simples ameaças, mas de balões de ensaio induzindo a ideia de que as partes em confronto estão indisponíveis para comprometer-se com a rejeição do uso desses «argumentos» fatais para a humanidade.

Daí os esforços necessários para criar e aproveitar cada oportunidade de paz. Embora a «paz» esteja proscrita e os seus defensores sejam olhados como perigosos dissidentes da narrativa única própria de uma ditadura como a que, há quase meio século, o ex-chanceler alemão Willy Brandt anteviu para a Europa.

As ditaduras, porém, são absolutistas mas não absolutas. Existem sempre meios de as driblar e derrotar se houver vontade e união para isso.

Soldados ucranianos com material de guerra enviado pelo Ocidente  CréditosEvgeniy Maloletka / slavyangrad.es

Salve-se quem puder

A primeira grande vítima do combate de âmbito global em curso é a União Europeia. Morreu, mas ninguém a informou disso. O seu monstruoso aparelho burocrático e autoritário em modo de realidade paralela funciona em piloto automático, agora definitivamente orientado de Washington, como intermediário privilegiado do tráfego – e tráfico – de armas para alimentar a guerra na Ucrânia; e também como esbirro federalista dos povos do continente às ordens da insaciável oligarquia neoliberal.

A União Europeia desapareceu enquanto comunidade com identidade própria, que nunca foi muita. Teve uma síncope na crise financeira de 2008, que procurou combater através da tortura de países governados por apátridas invertebrados e com recurso a instrumentos coloniais. Esteve novamente à beira da morte em 2019 com a hecatombe do pretenso combate colectivo contra a Covid, mais um episódio de salve-se quem puder, cada um por si. Não havendo duas sem três, a União Europeia finou-se agora devido ao comportamento na guerra da Ucrânia convertendo-se, sem reservas nem reticências e com muito afã, num indisfarçado instrumento de mão de Washington e numa ramificação menor da NATO. Já aplanara o caminho nessa direcção há oito anos, ao comparticipar na entronização golpista de um regime nazi em Kiev.

«A primeira grande vítima do combate de âmbito global em curso é a União Europeia. Morreu, mas ninguém a informou disso. O seu monstruoso aparelho burocrático e autoritário em modo de realidade paralela funciona em piloto automático, agora definitivamente orientado de Washington»

Hoje, o zombie da União Europeia já nem se debate no poço sem fundo em que caiu devido ao modo como abordou a questão ucraniana. A führer Van der Leyen, plagiadora da sua tese de medicina, eleita a pior ministra da Defesa de sempre na Alemanha e admiradora confessa de Erwin Rommel, marechal de campo de Hitler na sua conveniente vertente mítica «anti-III Reich», insiste em cumprir as ordens do decadente presidente Biden para liquidar os ucranianos e arrasar a Ucrânia. O seu escudeiro socialista Borrell, cada vez mais ridicularizado mas sempre perigoso, deveria fazer um voto de silêncio para não agravar ainda mais a situação.

É por estes caminhos que a Comissão Europeia, entidade não eleita que gere uma estrutura desumana e feroz sobretudo contra os mais desfavorecidos, caminha agora fantasmagoricamente – mas ainda e sempre cruel.

Aos Estados membros, liberais, iliberais ou assim-assim compete obedecer, esvaziar os arsenais de todas as armas e enviá-las para a Ucrânia, meter as mãos nos bolsos dos contribuintes para financiar com centenas de milhões de euros o corrupto e nazi Zelensky. Em contrapartida, devem obrigar os seus povos, através de mecanismos totalitários de manipulação, coacção e chantagem, a aceitar impavidamente os efeitos das sanções impostas à Rússia – ilegais segundo o direito internacional – enterrados numa crise em que o pior ainda está para vir. Willy Brandt sabia do que falava mesmo que os tempos e as circunstâncias fossem bastante diferentes da realidade actual. Certamente porque os traços desviantes em relação ao discurso oficial, a hipocrisia e o cinismo enganador dos povos já então se manifestavam como tendências que são intemporais.

«A guerra e a maneira etnocêntrica, xenófoba e mistificadora como a União Europeia a encarou impondo sanções arbitrárias à Rússia, obedecendo a Washington convencida de que o mundo «iria atrás», funcionou apenas, afinal, dentro dos 27 e no universo muito limitado de países que compõem o chamado Ocidente»

A arrogância, o autoconvencimento suicida e a subserviência doentia dos dirigentes da União Europeia perante o diktat norte-americano transformou a guerra na Ucrânia no acontecimento fatal para a comunidade.

A guerra e a maneira etnocêntrica, xenófoba e mistificadora como a União Europeia a encarou impondo sanções arbitrárias à Rússia, obedecendo a Washington convencida de que o mundo «iria atrás», funcionou apenas, afinal, dentro dos 27 e no universo muito limitado de países que compõem o chamado Ocidente – conceito que é um alter-ego dos Estados Unidos imperiais. O resto do mundo, cerca de 85 da população mundial, assumiu posições próprias, mais ou menos diferenciadas e desafiantes das ordens emanadas de Washington.

Ao mesmo tempo as sanções impostas à Rússia contribuíram para gerar outras consequências perversas, além do efeito de boomerang contra os povos dos países que as impuseram. As transformações no mundo com sentido multipolar foram aceleradas pelas novas circunstâncias; daí que seja possível observar como países de outros continentes, com maiores ou menores envergaduras económicas, se juntam em recém-criadas organizações regionais e transnacionais, algumas delas ainda embrionárias, harmonizando interesses próprios, abrindo novas vias de comunicação e de transporte, intercambiando matérias-primas, commodities e outros bens da economia real, tangível, tanto quanto possível à margem do casino financeiro de ambição globalista e do dólar cada vez mais contaminado pela financeirização e a dependência da economia virtual.

São relações novas ou ampliadas estabelecidas em condições mais equilibradas e igualitárias, livres de imposições de obediência e das obrigações desiguais próprias das relações até agora dominantes, de índole colonial e imperial.

A nova realidade emergente atrai cada vez mais países que estão a redescobrir a importância da soberania e se atrevem a desafiar o Ocidente como nunca o fizeram.

Na recente Cimeira das Américas, dirigentes de várias nações disseram ao presidente dos Estados Unidos coisas que ele jamais pensou ouvir; os países ribeirinhos do Mar Cáspio decidiram, em cimeira recente, reforçar a soberania regional, declarando as águas livres de navios da NATO; os presidentes do Irão, da Turquia e da Rússia acordaram modos de cooperação, sobretudo na Síria, que têm como objectivo trabalhar pela saída das tropas norte-americanas deste país, acabando assim com o roubo de petróleo; o presidente norte-americano foi à Arábia Saudita mendigar a redução dos preços do petróleo nos mercados internacionais, mas não passou de Jeddah e as suas súplicas não foram atendidas; ao invés, o encontro do ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, com os dirigentes da Liga Árabe, foi considerado um êxito. Entretanto, o artista da moda e chefe do regime nazi de Kiev não conseguiu pregar a sua homilia à cimeira do Mercosul depois de, há algumas semanas, ter sido escutado por apenas quatro dos 55 chefes de Estado da União Africana. Há realmente cada vez mais mundo para lá da Ucrânia e do Ocidente. E o New York Times já se «esquece» de falar da guerra da Ucrânia em algumas das suas edições.

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, durante a visita desta a Kiev, a 8 de Abril de 2022.  Créditos

O que resta?

Então o que resta, nestas circunstâncias, da defunta União Europeia? Ou mesmo da Europa, alargando o conceito à antevisão de Willy Brandt?

Observa-se, por exemplo, que a democracia é cada vez mais um invólucro desgastado de sistemas económicos e políticos com notáveis tiques ditatoriais.

Aliás no Leste europeu, desde a Polónia às Repúblicas do Báltico, tão acarinhadas pela NATO e a União Europeia, os regimes de índole fascista e xenófoba são indisfarçáveis. Na Letónia e na Estónia os cidadãos de origem russa são de segunda categoria, não podem votar, não têm direitos sociais, são párias na sua pátria. Zelensky não inventou nada. Como se percebe, foram instalados regimes de apartheid no interior da União Europeia sem registo de qualquer escândalo por parte da comunicação social corporativa, sempre tão vigilante e de dedo em riste.

«A guerra e a maneira etnocêntrica, xenófoba e mistificadora como a União Europeia a encarou impondo sanções arbitrárias à Rússia, obedecendo a Washington convencida de que o mundo «iria atrás», funcionou apenas, afinal, dentro dos 27 e no universo muito limitado de países que compõem o chamado Ocidente»

Então, para defender um regime nazi até às últimas consequências – que não se anunciam promissoras – a União Europeia decidiu «cancelar» a Rússia, isto é, prescindir das suas relações políticas e, sobretudo, económicas e comerciais com este país. E fê-lo numa ocasião em que Moscovo já decidira estrategicamente uma ancoragem prioritária com mira no Oriente, abrindo-se daí, ainda mais, para a Ásia, a África e a América Latina.

Quem ganha e quem perde com esta opção, que não é uma versão da história do ovo e da galinha?

Uma pergunta que os lunáticos de Bruxelas e das restantes capitais dos 27 não fizeram a si próprios antes de investirem com tudo (já só falta a bomba nuclear), e praticamente sem rectaguarda, contra a Rússia.

A Europa é um continente envelhecido, uma manta de retalhos que se vai cosendo por conveniência e apenas para imagem externa, um espaço de inércia crescente dominado por uma burocracia retrógrada apesar de digitalizada, mergulhado numa autoimagem arrogante e desligada da realidade mundial. Carece de produtos básicos de alimentação, de matérias-primas essenciais, da maioria dos recursos fundamentais estratégicos, sobretudo fontes de energia e de autonomia tecnológica, sector em que, no que toca a desenvolvimento e inovação, começa a estar a anos de luz não só dos Estados Unidos mas também, e principalmente, da Ásia. O que resta da indústria europeia é subsidiário e dependente do exterior.

A questão do abastecimento energético, porém, ilustra como nenhuma o delírio incontrolável de Bruxelas e da maioria dos seus satélites. Para prescindir do petróleo da Rússia, barato e há décadas calibrado para as necessidades europeias, a senhora Van der Leyen pratica mendicidade com países que maltrata e sanciona, como a Venezuela e o Irão, e promete soluções inexistentes a curto e médio prazo. Quanto ao gás natural, está disponível para comprá-lo em estado líquido aos Estados Unidos, em quantidades muito insuficientes e por preços quatro a cinco vezes superiores ao russo, apesar de ser produzido pelo método altamente poluente de fractura hidráulica (fracking). Para que haja uma noção do que aí vem anote-se que o gás natural estava a 200 dólares por mil metros cúbicos antes das sanções, situando-se agora entre os 1500 e 1800 dólares pelos mesmos mil metros cúbicos – sete a nove vezes mais.

Além disso, a presidente da Comissão Europeia assegura, com o ar mais solene deste mundo, que está para mais breve do que supomos a autossuficiência energética com moinhos de vento e painéis solares. Pode acrescentar-lhe a produção de gás resultante do tratamento de lixo, dejectos de passarinhos e suínos. Boa sorte com isso. À cautela, conhecendo muito bem a incompetência dos seus subordinados na Comissão e governos adjacentes, os patrões recomendam a restauração do funcionamento das centrais a carvão para tentarem refrear a hecatombe económica que começa a sentir-se, por exemplo, no gigante alemão. O combate às alterações climáticas, claro, pode esperar – aliás como sempre.

«A questão do abastecimento energético, porém, ilustra como nenhuma o delírio incontrolável de Bruxelas e da maioria dos seus satélites. Para prescindir do petróleo da Rússia, barato e há décadas calibrado para as necessidades europeias, a senhora Van der Leyen pratica mendicidade com países que maltrata e sanciona, como a Venezuela e o Irão, e promete soluções inexistentes a curto e médio prazo»

A Europa transformou-se numa aberração cultural, aceitou que as suas culturas com origens milenares fossem contaminadas e asfixiadas pelo pior dos exemplos, a plastificação dos ambientes criativos pelos mais medíocres centros norte-americanas de propaganda de um «way of life» postiço, estupidificante, monolítico. A «classe política» e a comunicação social corporativa recriaram-se nesse formato e as consequências estão à vista numa opinião única militarizada, hipnotizada pela violência, numa sociedade de vigilância, coacção e bufaria, num entretenimento idiota, alienante e intoxicante onde avulta a programação televisiva uniformizada de cariz preferencialmente alarve.

A Europa é provavelmente o único continente que não consegue ser autossuficiente do ponto de vista económico. Mas decidiu isolar-se agarrada ao capote do Tio Sam. No entanto, o espaço para funcionamento dos mecanismos coloniais já não é o que era à medida que a maioria das nações do mundo acordam para novas realidades de relacionamento; a invulnerabilidade militar já teve os seus dias; é cada vez mais difícil roubar os bens alheios: talvez o ouro da Venezuela e do Afeganistão, os fundos soberanos venezuelanos e as reservas cambiais russas sejam os derradeiros assaltos tolerados. E que, mais dia menos dia, terão resposta.

Os políticos europeus vocacionados para governar através de uma máquina de manipulação que erradicou na prática o pluralismo, o debate e o esclarecimento, recitam discursos vazios de conteúdo, carregados de promessas vãs, manifestam um ostensivo desrespeito pelas pessoas, pelo trabalho, pelos mais idosos; os comentadores tagarelam dislates, mensagens encomendadas, mentiras, quando não é pura propaganda terrorista; desdobram-se em delações e desfazem-se dos derradeiros resquícios de compostura e vergonha quando lhes oferecem uma guerra «civilizacional» – o que acontece em sessões contínuas.

A Europa, evidentemente, precisa muito mais da Rússia, país no topo mundial das matérias-primas, dos recursos naturais estratégicos e das reservas de energia essenciais, do que a Rússia necessita da Europa. Pode passar muito bem sem ela.

A Europa, porém, insiste nas sanções, condenando os seus povos a carências há muito não sentidas e, para isso, nem será necessário que Moscovo aperte muito o «torniquete da dor». Pela calada, para não perder a pose perante os seus, Bruxelas vai levantando algumas sanções, como a do comércio de titânio, ou então os aviões começariam a ficar em terra. As medidas avulsas, porém, não tocam no fundo das questões, apenas suscitam ainda mais desprezo por parte da Rússia e de muitos outros países para quem a União Europeia deixou de ser entidade «confiável».

As sanções à Rússia e o alinhamento na defesa de regimes nazi-fascistas europeus, caminho para a própria degeneração ditatorial, não são corriqueiros tiros nos pés. São armas de suicídio num caminho que não tem volta. Os tempos da velha e nobre Europa e da sua mítica e falsa União já lá vão. Agora o chamado «Velho Continente» não passa de um corpo estranho, um satélite mumificando em redor da estrela cadente do império.

Nem sequer pode desejar-se paz à sua alma. Alma não tem; e repudia a paz.

José Goulão, Exclusivo AbrilAbril

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E que autoridade têm os que condenam a anexação do Donbass, com o presidente norte-americano à cabeça, os mesmos que são cúmplices da anexação de quase toda a Palestina e territórios sírios por Israel, do Saara Ocidental por Marrocos, que esfacelaram o Iraque e a Líbia, que roubam ouro e milhões de milhões de dólares ao Afeganistão, à Rússia, à Venezuela, à Líbia, sem esquecer o petróleo da Síria?

Na sequência natural da definição dos padrões únicos e civilizacionais dos direitos humanos surgem outros direitos tão ou mais invocados como sagrados, por exemplo o de opinião, o de expressão, o respeito pela privacidade de cada um, a liberdade de informar e ser informado.

A situação actual é rica em exemplos de como a «democracia ocidental», o mundo baseado «em regras» e a partilha dos «nossos valores» andam de mãos dadas com o cinismo, a hipocrisia, a mentira pura e simples e o desrespeito pelo ser humano (para já nem falar nos sub-humanos).

A pressão sobre as opiniões e a liberdade de pensar torna-se cada vez mais asfixiante, intolerante, adquirindo contornos inquisitoriais. Regra geral, a partir sobretudo da implantação do neoliberalismo durante os últimos 40 anos, as opiniões dissonantes da verdade única e tolerada foram desaparecendo da comunicação social, dos espaços de debate público, das instituições de ensino.

O que é silenciado não existe, o comum dos mortais habituou-se a viver com os conceitos que recebe de enxurrada, quase sem tempo para pensar, se tiver preocupação e cuidado em não perder o hábito de fazê-lo. A individualidade, a faculdade de pensar fundiram-se e dissolveram-se no interior de um imenso rebanho de repetidores de verdades absolutas e incontestáveis que, não poucas vezes, agridem e alienam a sua condição de cidadãos livres e com direitos.

O processo não é estático – evolui no pior sentido, o da agressão de um direito essencial do ser humano, que é o de pensar pela própria cabeça e partilhar as reflexões e conhecimentos com os outros. Os acontecimentos acuais, designadamente a guerra na Ucrânia e o envolvimento profundo e cúmplice do Ocidente institucional no apoio ao regime de inspiração nazi de Kiev, transformou a estratégia de silenciamento das opiniões dissonantes numa perseguição de índole totalitária. Pensar de maneira diferente tornou-se um delito, uma colaboração com entidades maléficas, um atrevimento inaceitável e, por isso, submetido a difamações, ameaças de agressão e às mais rasteiras calúnias públicas. Enquanto a comunicação social se tornou refém da propaganda terrorista.

«A individualidade, a faculdade de pensar fundiram-se e dissolveram-se no interior de um imenso rebanho de repetidores de verdades absolutas e incontestáveis que, não poucas vezes, agridem e alienam a sua condição de cidadãos livres e com direitos.»

Nesta «civilização cristã e ocidental», incapaz de cortar o cordão umbilical com o imperialismo e o colonialismo, sobrevivem reconhecidamente os resquícios inquisitoriais. Que se afirmam com veemência crescente ao ritmo de uma fascização que os horizontes não afastam.

Neste contexto, os «nossos valores partilhados» são cada vez mais instrumentos para criação de uma ficção que arrasta perversamente os seres humanos em direcções contrárias aos seus próprios interesses.

Trata-se de uma armadilha que é, ao mesmo tempo, um esforço desesperado para tentar impedir o fim da era do poder unipolar, que parece inevitável – mas pode ser travado por uma guerra de proporções e consequências catastróficas.

Os «valores partilhados» autodefinidos como um distintivo da pretensa superioridade humanista e civilizacional do Ocidente, e que são fundamentos da arrogância de pretender dar lições a outros povos, culturas e civilizações, são, afinal, universais; não têm donos, proprietários, muito menos polícias e esbirros. E as civilizações não estão hierarquizadas: classificá-las num qualquer ranking entre bondade e maldade, legitimidade e ilegitimidade, correcção e erro é um perigoso jogo de cariz xenófobo – o que parece incomodar cada vez menos os orgulhosos, prepotentes e fundamentalistas praticantes e adeptos da suposta superioridade ocidental,

De facto, no Ocidente esses tão invocados «nossos valores partilhados» estão sequestrados, pelo que é fácil subvertê-los e usá-los perversamente como instrumentos para ludibriar e neutralizar o espírito crítico da grande maioria dos cidadãos.

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