|Manuel Gouveia

O triste voo dos milionários

Para alguns patetas sempre dispostos a prostrarem-se aos pés dos ricos, dos milionários, do grande capital, o facto de duas multinacionais pertencentes a dois super-ricos venderem viagens ao espaço é o suprassumo.

Cartaz desenhado por Boris Berezovsky sobre o programa espacial soviético, 1963, com a inscrição Glória dos Heróis Espaciais - Glória do Povo Soviético. 
Créditos

Cada vez que um desses voos é feito sabemos os nomes dos milionários que compraram o bilhete, acompanhamos a viagem, ouvimos as entrevistas àqueles que assim subiram aos píncaros da civilização. Quando os clientes foram 5 mulheres, tudo foi brutalmente amplificado.

E no entanto, tudo isto é triste e balofo.

«Gagarine, operário industrial antes de seguir a carreira militar, filho de um carpinteiro e uma camponesa kholkosiana. Tereshkova, filha de um tratorista e uma operária de Yaroslav. Ambos militantes do Partido Comunista da URSS. Subiram, há mais de 60 anos, mais alto que os tristes milionários de hoje.»

Estes voos são suborbitais, Richard Branson, com a Virgin Galactic, atingiu 86 km no seu voo e Jeff Bezos, com a Blue Origin, alcançou os 107 km de altitude. Ora a Federação Aeronáutica Internacional (FAI) define a fronteira do espaço a 100 km de altitude. Foram voos curtos, com alguns instantes (minutos e muito poucos) de microgravidade, menores que os que podem ser vividos a bordo de um avião de ensaios. São voos que não orbitam a Terra, se limitam a subir e a descer, e que essencialmente permitem dizer que se esteve no espaço, mais que verdadeiramente vivenciar essa experiência. São voos que não trazem nada de novo, limitam-se a usar o muito que a humanidade sabe sobre esta ciência e esta técnica e canalizar esses recursos para a venda de viagens ao espaço a quem as pode pagar.

Para se ter uma ideia, o voo de Yuri Gagarin, na Vostok 1, atingiu os 315 quilómetros, durou 108 minutos e permitiu-lhe completar uma órbita ao redor da Terra a 12 de Abril de 1961.

Dois anos depois, a primeira mulher no espaço foi Valentina Tereshkova, na Vostok 6, que atingiu os 327 quilómetros de distância da Terra nas três órbitras que realizou ao nosso planeta.

Gagarine, operário industrial antes de seguir a carreira militar, filho de um carpinteiro e uma camponesa kholkosiana. Tereshkova, filha de um tratorista e uma operária de Yaroslav. Ambos militantes do Partido Comunista da URSS. Subiram, há mais de 60 anos, mais alto que os tristes milionários de hoje.

Num mundo que ainda não havia massificado a computação, os trabalhadores da URSS ergueram dois dos seus – e muitos mais – até ao Cosmos, em busca dos avanços científicos e técnicos que permitiriam melhorar a vida na Terra. Anos mais tarde, a MIR, a primeira estação espacial, alojaria cosmonautas soviéticos durante largos meses, permitindo o desenvolvimento de novas e fundamentais investigações a mais de 300 quilómetros de altitude.

Que contraste com o triste voo dos milionários: inútil, porque nada trouxe ao mundo que não a satisfação de um ego; falso, porque sentiram a necessidade de fingir estar a fazer o que não conseguiam; negativo, porque desvia recursos que podiam estar a ser usados para algo de verdadeiramente útil e significativo. Só a propaganda massificada faz brilhar algo tão fundamentalmente triste. Que diferente seria uma notícia objectiva como: «mega milionário americano consegue, depois de absorver os apoios públicos que estão a faltar no programa espacial norte-americano, colocar-se a si próprio a um terço da altura a que a URSS elevou um homem há 60 anos e vende bilhetes a quem quiser fingir que foi ao espaço.»

O luminoso sorriso de Gagarin continua a rasgar toda a propaganda com que este triste mundo capitalista procura evitar o futuro.

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui