Há cem anos, do Casal da Parafuja onde nasceu o meu avô paterno, Portugal era algo que não se conseguia distinguir no seu todo. Uma realidade que se mimetizava um pouco por quase todo o território continental. Ser português era uma coisa que se apalpava às escuras, por entre umas curtas visitas à escola primária e uma realidade de trabalho e alguma miséria que não largava o corpo de todos e todas as que aqui nasciam. Durante a juventude dos meus antepassados, Portugal era uma realidade que se escrevia como um feito mítico, transtornado de histórias impossíveis de viagens que iam muito mais longe do que os olhos podiam ver, vergado ao peso de heróis que dificilmente se cruzavam com os suaves portugueses pela rua.
Foi também neste espaço de cem anos que muitos portugueses foram para lá dessa realidade de vistas curtas. O meu avô materno cresceu aventureiro e fez-se à vida, pela Alemanha, França e Canadá, seguramente à procura de um ser-se português que por cá não lhe chegava. Mas ao Portugal que se abria aos poucos acabou por regressar, para tentar entender aquilo que à sua frente se criava. Era um Portugal aberto a possibilidades, mas também sujeito a novas desilusões, na maneira como tudo se transformava para, de uma ou outra maneira, tudo ficar na mesma. O Portugal que os meus avôs e avós deixaram, era bem melhor do que aquele em que tinham nascido, mas talvez aquém daquele que haviam sonhado.
Mas Portugal não é apenas aquilo que se vive quando se é português. Portugal é, sobretudo, aquilo que todos vamos aprendendo como possibilidade de se construir. Daí que apesar de ainda nos revermos nas descrições sociais de Eça de Queirós, na tristeza de Ruy Belo ou no atrevimento de Alexandre O’Neill, Portugal alargou-se para ser muito mais do que o peso da sua história. Tantos e tantas nos ajudaram, exatamente, a quebrar essas amarras. Se no passado se prenderam e tentaram limitar as novas expressões que os portugais do mundo nos sugeriam, hoje ser-se português não é uma questão de cores, de falar criolo ou com sotaque brasileiro, ser-se português é ter a liberdade para sermos as pessoas que quisermos ser.
Portugal deixou de ser cinzento, mas não virou cara à luta. Uma equipa de futebol a disputar um Campeonato do Mundo é uma representação disso mesmo. Na maneira como apesar reconhecermos limitações ao desenvolvimento de um coletivo por parte de um treinador que já nos deu quase tudo a ganhar, encontrarmos na liberdade que este oferece aos seus jogadores um palco para transformarmos o nosso jogar. Na esperança que a maioria ainda continua a colocar nos jogadores que nos levaram aos mais épicos momentos da nossa história futebolística, ombro a ombro com a capacidade de entendermos como novas figuras se elevam como referências desta equipa. Na sempre e inquestionável de querermos melhor para todos aqueles que se envolvem na perseguição de um objetivo comum.
E, no final de tudo, futebol
A história das relações entre Espanha e Marrocos é feita de conflito. Um conflito que se mantém quase diário, nas fronteiras que as cidades autónomas espanholas em território marroquino oferecem como proximidade, num mar navegável a unir as costas dos dois países. Um conflito que se alarga na enorme comunidade de migrantes marroquinos que encontraram em Espanha uma esperança de uma vida melhor, condicionada pelas condições em que muitos deles acabam por viver. E, como em todos os grandes conflitos, no final de tudo, haverá a possibilidade de o dirimir num campo de futebol. A seleção de Marrocos é um fruto da sua diáspora. Catorze dos vinte e seis jogadores nasceram na Europa, mas encontraram no país dos seus ascendentes o conforto para voltar a casa. Defrontar a Espanha é, de certa maneira, quase um estado de espírito. Muito mais do que um jogo.