Serão certamente muitas as pessoas que até há um mês jamais teriam ouvido falar da região de Ghuta, na Síria, e hoje já sabem tudo o que ali se passa, desde que seja provocado pela essência maléfica do «tirano Bachar Assad». Estar informado é fácil, basta consumir o prato de resistência que nos é servido a cada jantar, dia-após-dia, com somas de pormenores macabros que não cuidam das recomendáveis doses q.b. e nos atormentam tanto a ingestão como a digestão para que a tragédia não passe de largo.
O mesmo aconteceu a propósito de Alepo1, por exemplo; já não tanto no caso de Mossul, e de maneira nenhuma com o genocídio e os crimes contra a humanidade que continuam a ser praticados em Gaza. É naturalíssimo que assim seja: os critérios de selecção e a definição da escala de importância dos acontecimentos são inquestionáveis atributos dos agentes da informação global deste admirável mundo novo. E coisa alguma existe mais fácil de explicar do que uma guerra.
Ghuta: o jornalismo pode e deve ter memória
Algumas memórias pessoais talvez tenham arquivado a palavra «Ghuta» a propósito de acontecimentos igualmente sangrentos vividos em Agosto de 2013, altura em que nos garantiram, a toda a hora e sem qualquer reserva, que o mesmo «tirano Bachar Assad» tinha usado armas químicas contra a população dessa região matando 1700 pessoas, um terço das quais crianças.
Talvez sejam menos aqueles que se lembram de a jurista suíça Carla Del Ponte2, à cabeça de uma comissão da ONU para investigação do massacre, ter então concluído, «estupefacta», que o massacre com gás sarin foi cometido pela «oposição» síria, mais propriamente a Al-Qaida; circunstância que obrigou o então presidente Obama – conhecido por não se acanhar perante oportunidades para guerrear – a cancelar o bombardeamento «de retaliação» que já tinha preparado contra Damasco3.
O enigma das armas químicas
O uso e abuso de armas químicas pelas tropas governamentais continua, aliás, a ser um tema âncora do cenário informativo montado para a Síria4; nulo relevo tem merecido, porém, a declaração pública feita há dias pelo secretário norte-americano da Defesa, o general James Mattis5, segundo a qual Washington «não tem provas» da utilização desse tipo de armas pelas forças regulares sírias. A prestigiada Newsweek teve o cuidado de pedir a Mattis que confirmasse o depoimento, o que este fez e assim foi publicado6. Uma informação tão bombástica, digna, pelo menos, de ser oferecida como sobremesa das nossas refeições, morreu assim, quase em segredo, nas páginas da prestigiada revista norte-americana.
A ocupação terrorista
A região de Ghuta é parte da grande Damasco, isto é, integra os vastos subúrbios da capital síria. O sector oriental de Ghuta está ocupado militarmente pelos terroristas da Al-Qaida desde 2012 e os cerca de 400 mil habitantes da altura estão reduzidos a 250 mil7. Apesar das restrições à circulação impostas pelos mercenários jihadistas em Ghuta Oriental, muitos milhares de pessoas conseguiram refugiar-se em bairros de Damasco, aterrorizados com a imposição da Charia – normativo legislativo que corresponde a uma leitura fundamentalista do islamismo político – e pelos exercícios de «devoção» impostos arbitrariamente, mercê dos quais, por exemplo, cidadãos comuns são degolados em público por se recusarem a escrever ou proclamar que «Assad é um cão».
Terroristas «radicais» e «moderados»: percebe a diferença?
São várias as designações usadas pelos grupos terroristas que ocupam Ghuta Oriental, alguns dos quais se extinguiram ou mudaram de nome8, mas todos eles têm em comum a dependência da estrutura tentacular da Al-Qaida, do financiamento pela Arábia Saudita ou pelo Qatar, e dos interesses da família Alluche, que se alongam até Londres, e patrocina directamente o Jayah al-Islam – «Exército do Islão».
O mimetismo das duas principais redes de mercenários – Al-Qaida e Daesh – graças ao recurso a uma volátil miríade de heterónimos, traduz a verdadeira fronteira entre «moderados», abertamente apoiados pela NATO e as grandes potências da União Europeia, e os «radicais», supostamente por elas combatidos. Os «moderados» têm assento nas recorrentes negociações entre o governo e a «oposição», sob mediação internacional; é através deles, ausentes da lista de «organizações terroristas» elaborada pela ONU, que os principais grupos ditos «radicais», nela incluídos, se tornam assim parte dos processos de discussão sobre «o futuro da Síria».
Por serem «moderados», os grupos que ainda controlam Ghuta Oriental, sob o comando operacional da Al-Qaida, estão enquadrados, no terreno, por agentes de elite do SAS (Special Air Service) britânico e da DGSE (agência de espionagem francesa), o que faz deles esquadrões da agressão franco-britânica contra a Síria como Estado soberano.
O «Exército do Islão» é um exemplo acabado de «moderação» e «vocação democratizadora». O seu patrono entre o Verão de 2012 e 2015, Zahran Zaluche, prometia semanalmente tomar Damasco na semana seguinte e executar, sem julgamento, «todos os infiéis», isto é, os não-sunitas que não cabem na definição do seu conselheiro religioso, o pregador whaabita Abd al-Azis ibn Baz ao serviço do islamismo político saudita. Foi o patriarca da família Zaluche, falecido em 20159, quem institucionalizou a transferência dos «infiéis» das prisões para os telhados dos prédios urbanos, para servirem de escudos humanos sempre que o exército sírio respondia aos constantes bombardeamentos de obuses contra Damasco.
Sucedeu-lhe o primo Mohamed Zaluche, que além de manter o clima de terror em toda a região ocupada se destaca por perseguir especialmente os homossexuais, juntando-os aos prisioneiros para funcionarem como «escudos humanos» ou lançando-os sumariamente dos telhados dos prédios. Foi a maneira que o herdeiro Zaluche encontrou de condenar a tolerância que há longo tempo existe na Síria em relação às orientações sexuais, consideradas do foro privado de cada um, uma realidade que a comunicação global desconhece ou finge desconhecer, caindo até no ridículo de atribuir ao regime as perseguições homofóbicas10.
Pois Mohamed Zaluche foi um dos representantes da «oposição» presente nas negociações internacionais de Genebra. Para que tal fosse possível, o encarregado de negócios de França nesta cidade suíça tomou em mãos o encargo de mandar cobrir e disfarçar os casos de nudez em obras de arte existentes no hotel destinado ao sensível hóspede chegado de Ghuta Oriental. Cuidado que, aliás, nada tem de novo pois já a Inquisição católica, no século XVI, mandou tapar sectorialmente os primorosos frescos de Miguel Ângelo nos tectos da Capela Sistina.
A intervenção estrangeira é uma verdadeira guerra secreta contra a Síria
Este pequeno exemplo de prestimosos serviços diplomáticos prestados pela França a um expoente do terrorismo islâmico «moderado» segue a linha vigente ainda em Ghuta Oriental, onde o «Exército do Islão» e outras designações encaixadas na estrutura da Frente al-Nusra, isto é, a al-Qaida, recebem múltiplos apoios governamentais francês e britânico através dos respectivos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa.
Além do enquadramento operacional pelo SAS, pelo próprio MI6 (serviços britânicos de espionagem) e pela DGSE francesa, os grupos mercenários ditos «islâmicos» e ditos «moderados» recebem um vasto conjunto de outros apoios, designadamente no âmbito de design de fardamentos, logos identificativos, organização de desfiles propagandísticos dos esquadrões de mercenários e elaboração de materiais de comunicação como fotos, vídeos, websites, brochuras e relatórios militares.
Para tal, o ministério britânico dos Negócios Estrangeiros contratou empresas de «gestão de crise» como a Regester Larkin e a Innovative Communications & Strategies, para trabalharem sob a supervisão do Ministério da Defesa. Ambas as sociedades têm instalações em Londres e em Washington. Estas cumplicidades governamentais franco-britânicas com o terrorismo actuando na Síria não foram reveladas por qualquer lunático viciado em teoria da conspiração, mas pelo circunspecto e bem comportado diário Guardian.
No terreno, as multifacetadas orientações de apoio transmitidas pelos governos de Londres e Paris são passadas à prática, ombro-a-ombro com os grupos jihadistas, por «organizações não-governamentais» transformadas pela propaganda em símbolos do altruísmo e do humanitarismo. É o caso dos Médicos sem Fronteiras, que serve de disfarce a actividades da DGSE; dos Capacetes Brancos (White Helmets), que já chegaram ao estrelato dos oscares de Hollywood11, da Adam Smith International (ASI), da Integrity Global, entre outras.
«vamos atacar e destruir os governos de sete países em cinco anos – começaremos com o Iraque, a seguir avançamos para a Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irão.»
Fonte do Pentágono, (2001) citada pelo Gen. Wesley Clark (2007)
O que está a acontecer em Ghuta Oriental é um episódio de guerra; e o objectivo de qualquer guerra é derrotar o inimigo – sendo esta a génese das matanças. Não foi o governo de Damasco quem criou o conflito que destroça o país; hoje já não existem dúvidas – embora os factos continuem escondidos pela comunicação social dominante – de que a guerra de agressão externa contra a Síria estava planeada desde meados da primeira década deste século, quando ganhou forma a enorme mistificação que foram as «primaveras árabes», sucedâneos das «revoluções coloridas» fabricadas em Washington com o envolvimento da NATO e da União Europeia12.
O desmantelamento da Síria deveria seguir-se ao do Iraque e da Líbia, à entrega à Irmandade Muçulmana de países como a Tunísia e o Egipto (esta falhada), no âmbito de uma recomposição de fronteiras e regimes no Médio Oriente que já custou mais de quatro milhões de vidas humanas desde 20011314.
Da tragédia encenada à tragédia real
Ao jantar de cada dia tomamos conhecimento da tragédia de Ghuta Oriental, agora cercada pelas tropas sírias após um lento processo15 de reconquista de posições ocupadas por tropas e mercenários estrangeiros16.
No lado oculto deste cenário está o drama vivido pela população de Damasco sob os bombardeamentos constantes da Al-Qaida e dos seus aliados transnacionais, efectuados durante os últimos seis anos a partir das suas bases de Ghuta. Na capital síria, cerca de um terço dos cinco milhões de habitantes, a que agora se juntam vagas de refugiados em desespero, estão remetidos às suas residências, aterrorizados com os obuses jihadistas; grande parte do comércio permanece encerrado; a administração e as empresas funcionam de maneira fortemente condicionada.
As imagens que nos servem confrontam-nos com a tragédia que atinge populações civis como se fosse o resultado de acções arbitrárias, unilaterais e gratuitas cometidas por uma das partes em conflito e não de uma guerra onde estão em causa «a soberania, a independência, a unidade e a integridade territorial» de um país, a Síria, ainda há poucos dias reafirmadas pelos membros do Conselho de Segurança da ONU ao aprovarem a resolução 2401. Sinal da hipocrisia dos tempos: países que deram luz verde a essa resolução, como os Estados Unidos, a França, o Reino Unido, estão simultaneamente envolvidos numa guerra de agressão cujo objectivo é minar a soberania, a independência, a unidade e a integridade territorial da Síria.
Pelo que não devemos surpreender-nos com o facto de lágrimas cinicamente vertidas por causa das vítimas civis da guerra em Ghuta Oriental não terem caído dos mesmos olhos quando a ofensiva «contra o Daesh», conduzida pela chamada «coligação internacional» integrando Estados Unidos, França e Reino Unido, provocou a morte de nove a 11 mil civis na cidade iraquiana de Mossul.
A guerra é a matança institucionalizada. Uma das suas armas mais letais é a ocultação ostensiva e deliberada de algumas das facetas explicativas do horror, assim se abrindo o caminho para a escabrosa distinção entre matanças boas e matanças más, garantindo a perenidade da lucrativa indústria da morte.
- 1. Em plena crise, a 30/8/2013, o Guardian, habitualmente alinhado nas críticas a Assad, publicava um artigo onde se reconheciam dúvidas sobre os «ataques químicos» e se dava conta de a intervenção americana e britânica na Síria ter sido propulsionada pelos interesses de ambas as potências no negócio da energia (gás e petróleo). Ver artigo de Nafeez Ahmed «O plano de intervenção na Síria foi motivado por interesses petrolíferos, não por preocupação com as armas químicas».
- 2. Carla del Ponte presidiu ao Tribunal Internacional para a Ex-Jugoslávia entre 1999 e 2007. Em Setembro de 2012 faz parte da Comissão Independente Internacional de Inquérito para os crimes de guerra na Síria, abertamente preparada para julgar Bachar Assad após uma vitória dos «rebeldes». Após ter reconhecido, em Maio de 2013, o uso pela «oposição» de gás de nervos (sarin), viu a comissão arrastar os seus trabalhos e acabou por se demitir em Agosto de 2017, declarando ao Libération (06/08/2017) que «a oposição é composta por não mais do que extremistas e terroristas» – ao contrário das suas expectativas iniciais, que eram de encontrar «a oposição no lado do bem e o governo no papel do mal».
- 3. Ver «Del Ponte (UN) diz haver evidências de os rebeldes “terem usado sarin”», BBC (06/05/2013).
- 4. Um balanço consistente da questão foi feito por Tim Anderson para a TeleSur, em «Maquinações químicas: Ghuta Oriental e as crianças sírias desaparecidas» (11/04/2015).
- 5. Em 2017 o general James Mattis ainda afirmava «não haver dúvidas» sobre a responsabilidade do governo sírio nos «ataques químicos» (CNBC (11/04/2017)]. A 2 de Fevereiro passado a Reuters titulava dizendo-o «preocupado com o eventual uso pela Síria [leia-se, pelo governo sírio] de gás sarin, retirando ênfase ao resto da declaração de Mattis: «(mas) não tenho provas. O que digo é que outros (…) disseram que foi usado gás sarin, portanto estamos à procura de provas». Foi esta declaração que a Newsweek quis ver esclarecida..
- 6. Ver artigos de Ian Wilkie na Newsweek, «Agora Mattis admite que não havia provas de Assad ter usado gás sarin contra o seu povo» (8/2/2018) e «Onde estão as provas de que Assad usou gás sarin contra o seu povo?» (17/02/2018).
- 7. Ver Rania Khalek, «A guerra na Síria: o que os principais meios de informação não lhe dizem sobre Ghuta Oriental», em RT News (00/00/2018).
- 8. A Deutsche Welle, habitualmente crítica de Assad, reconhece, em 20/02/2018, a existência de grupos jihadistas (a que chama «rebeldes») em Ghuta Oriental: «Que grupos rebeldes lutam em Ghuta Oriental, Síria».
- 9. Ver «O que significa realmente a morte de um alto dirigente “jihadista moderado” sírio?», Sputnik (01/01/2016).
- 10. Ver «O Emirato Islâmico e a homossexualidade», por Thierry Meyssan, em Voltairenet (20/06/2016).
- 11. Além de Vanessa Beeley, MPN News (06/09/2017), ver também Max Blumenthal, Alternet (02/10/2016)
- 12. Ver, a seguir, declarações feitas em 2013 por Roland Dumas, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da França, acerca das propostas que recebeu, em Inglaterra e em 2009 (dois anos antes da chamada «rebelião síria» começar), para colaborar na intervenção que os britânicos preparavam na Síria.
- 13. Em Outubro de 2007 o general Wesley Clark discursou no Commonwealth Club, em San Francisco, recordando as palavras que ouvira a um oficial do Pentágono, poucas semanas após o ataque às torres gémeas (11/09/2001), acerca de um «golpe político» dos neoconservadores (neocons). «Acabo de receber este memorando do gabinete do Secretário da Defesa» – disse-lhe a fonte, e continuou: «diz que vamos atacar e destruir os governos de sete países em cinco anos – começaremos com o Iraque, a seguir avançamos para a Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irão». O caso é reportado pelo jornalista Glenn Greenwald em «Wes Clark e o sonho neocon», na Salon, (26/11/2011).
- 14. Robert F. Kennedy Jr., filho do malogrado senador assassinado em 1968 e opositor da política imperial americana, vai mais longe e aponta o ano de 1949 para o começo da intervenção secreta da CIA na Síria: «Porque não nos querem os árabes na Síria?», em Politico (23/2/2016)
- 15. O exército sírio faz preceder o avanço sobre as zonas ocupadas pelos jihadistas do lançamento de panfletos e mapas dirigidos aos civis que permanecem no enclave, indicando como podem escapar da zona de combates e chegar a locais protegidos. Frente e verso de um folheto em árabe, e a sua tradução para inglês (25/02/2018).
- 16. Stephen Lendman traça um paralelo sobre a situação em Ghuta Oriental e o que passou em Alepo. Em ambos os casos as potências ocidentais defenderam e defendem os jihadistas que ocupam o território; já as populações, vendo aproximar-se a hora da libertação, dão sinais de revolta contra os ocupantes.
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