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NBA: a luta contra o racismo e pela justiça social

O texto irá incidir particularmente na relação destes jogadores fechados na sua bolha com o grande tema que atravessa os EUA neste momento: o racismo e a revolta popular em torno dele.

Por todo o mundo, a pandemia afectou o desporto. Desde a alta competição ao mero lazer, o quotidiano de praticantes, adeptos e clubes virou-se do avesso, obrigando governos e organismos desportivos a tomar decisões sobre as condicionantes a aplicar, cuja variedade de país para país e de modalidade para modalidade revelam certas prioridades e visões diferentes sobre o que é e para que serve o desporto.

Este texto debruça-se sobre o caso da Bubble da NBA, a Bolha. Bolha, porque a solução encontrada pela NBA (a maior liga profissional de basquetebol estado-unidense) para o seu fim de época foi «enclausurar» a maioria das equipas na Disney World, realizando os seus jogos à porta fechada, nos seus recintos polidesportivos, com os jogadores a viver nos hotéis do espaço Disney. Se esta criativa solução já dá para muito estudo, o texto irá incidir particularmente na relação destes jogadores fechados na sua bolha com o grande tema que atravessa os EUA neste momento: o racismo e a revolta popular em torno dele.

De facto, olhando para os playoffs deste ano, diríamos que os tempos de Colin Kaepernick estão longe. Para relembrar, Kaepernick, jogador de futebol americano, foi ostracizado da liga em 2016 por se ter ajoelhado durante o hino nacional em protesto contra a violência policial e o racismo. Passados quatro anos, a maioria dos jogadores da NBA também se ajoelha durante o hino, uma forma de protesto que se está a generalizar nos diversos desportos.

Kaepernick, que ainda se encontra sem jogar, foi sacrificado no seu acto solitário, por ousar ter uma atitude de subversão perante um símbolo da Grande Pátria Americana, mas a sua ousadia foi, sem dúvida, um passo necessário, sendo que hoje não há nenhum poder que se atreva a penalizar os jogadores da NBA, mesmo os barafustos de Trump. Um ensinamento sobre a força do colectivo.

Mas estes jogadores não se limitam a protestar durante o hino. Também nas camisolas, os jogadores acordaram com a liga o uso de palavras de ordem. Se já é um prazer ver um ataque ao cesto de Jaylen Brown (extremo dos Boston Celtics) ou um triplo de Damien Lillard (base dos Portland Trail Blazers), tem todo um outro impacto quando envergam as palavras Liberation ou How Many More. E se tem para um português, o que não terá para um jovem de Atlanta ou de Oakland. Após o tiroteio policial sobre Jacob Blake, a equipa dos Milwaukee Bucks recusou-se a jogar como forma de protesto.

Após reunião da associação de jogadores, todos os próximos jogos foram adiados (o que também aconteceu na WNBA, a liga feminina). Uma das condições para regressarem ao court foi a liga comprometer-se a abrir os recintos das equipas como assembleias de voto. A questão do voto também tem merecido destaque por parte dos jogadores, num ano de eleições e num país que coloca muitos entraves, a quem pertence a estratos economicamente mais desfavorecidos (onde se encontra a maioria das minorias étnicas), a exercer o seu direito de voto. Como já mencionado, os jogadores têm forçado a própria liga (que é composta pelas equipas, os empregadores) a tomar posições públicas em torno do racismo, a que também se associam a equipa técnica.

Aliás, todo o projecto da Bolha e de recomeço do campeonato esteve em risco de não se realizar, por iniciativa dos jogadores. De forma informal e online, Kyrie Irving (base dos Brooklyn Nets) convocou uma reunião em que participaram um terço dos jogadores da liga, para debater se fazia sentido continuar o campeonato no meio da maior revolta popular no país desde os anos 70. Todas as formas de manifestação e de protesto acima citadas acabam por ser um compromisso entre os jogadores e uma liga que, acima de tudo, funciona como um negócio de entretenimento.

«A questão do voto também tem merecido destaque por parte dos jogadores, num ano de eleições e num país que coloca muitos entraves a quem pertence a estratos economicamente mais desfavorecidos (onde se encontra a maioria das minorias étnicas) a exercer o seu direito de voto.»

Resumido o que tem sido feito por estes homens, importa analisar o porquê deste surto de activismo, sobretudo num contexto de isolamento físico quase total.

Em primeiro lugar, a resposta mais fácil seria simplesmente associar estes protestos à vaga que se gerou devido ao assassinato de George Floyd, sobretudo atendendo à cor de pele da maioria dos jogadores da NBA.

Em segundo, de uma forma talvez mais cínica, poder-se-ia colar as acções destes milionários (o salário anual varia entre os 900 mil até 40 milhões de dólares) ao conjunto de empresas que têm visto nestas movimentações sociais uma forma de promoverem as suas marcas, apelando a um mercado (a população revoltada) que não deixou de ter necessidades e vontades de consumo, que é certamente o caso da própria liga e demais equipas.

Por último, também se pode dizer que este activismo não promove soluções revolucionárias, de uma transformação mais global da sociedade, o que tendo em conta a maioria das opiniões expressas pelos jogadores na liga é certamente verdade, com muitos a continuarem a ver no Partido Democrata uma alternativa em vez de alternância. Apesar disso, há excepções, como Andre Iguodala (extremo dos Miami Heat) a dizer à CNN: «Capitalismo e racismo andam de mão dada. Não dá para ter um sem o outro.» Ou Fred Van Vleet (base dos Toronto Raptors), que questionou se vestir uma t-shirt a dizer Black Lives Matter resolve alguma coisa, afirmando que é preciso estar disposto a arriscar muito mais para resolver os problemas de iniquidade social.

Mas se bastasse o primeiro motivo, porque é que Kaepernick ficou isolado em 2016, quando os protestos já tinham uma base social bastante grande, sobre exactamente os mesmos problemas, e as manifestações de apoio dos jogadores da NBA não foram muito além de palavras bonitas? Porquê agora, numa altura em que estes jogadores estiveram na Bolha, num distanciamento físico bastante rigoroso?

Por um lado, o facto de serem formalmente assalariados e o grupo de jogadores de minorias étnicas ou imigrantes formar a maioria, a prática de vida afasta-os significativamente do quotidiano da maioria dos trabalhadores e sujeitos racializados, vivem numa «bolha» à parte. É evidente, olhando para os protestos, que a larga maioria de quem os compõe são trabalhadores, gente explorada todos os dias, dos quais o racismo é mais uma ferramenta para acentuar essa exploração, entre outras.

A solidariedade destes jogadores acaba sempre por vir a reboque. A distância entre a vida dos jogadores e dos manifestantes já é significativa, e aumentou a partir do momento em que os jogadores entraram em distanciamento físico do resto do país. Mas isso só torna aparentemente mais confuso o crescimento do seu activismo. Aqui, a chave maior será certamente as redes sociais, tantas vezes criticada como alienante, mas que também tem benefícios, se bem usada.

Comparemos a relações destes desportistas com a dos jogadores de futebol do Mundial de 1978, na Argentina. A ditadura militar, num golpe de propaganda, organizou o Mundial e a reacção dos jogadores participantes foi de complacência, evocando ignorância sobre os «desaparecimentos» e repressão popular do regime de Videla.

E a verdade é que essa evocação tem algo de verdadeiro, pois os meios de comunicação estavam evidentemente controlados pela ditadura, que também impulsionava o terror como forma de dissuadir as pessoas de questionarem o regime ou de abertamente se pronunciarem sobre o mesmo. Tudo isto gerou um tampão informativo entre os resistentes e o povo.

Aos dias de hoje, o vídeo da morte de George Floyd, assim de como muitos outros actos de terror arbitrário, estão no telemóvel, tal como as acções e declarações do povo que se ergue. É a primeira coisa que se vê abrindo o Facebook, Twitter, Youtube, etc. Não dá para ser ignorante e, como tal, não dá para não tomar posição, nem mesmo com a pressão de patrocinadores e dirigentes e mesmo pressão política. O facto de os jogadores da NBA estarem literalmente no mundo da Disney não os deixou afastados da realidade, e as redes sociais certamente têm sido um papel importante para esse facto.

Quanto ao segundo caso, apesar do referido acima sobre o distanciamento que estes homens têm relativamente às lutas diárias do povo estado-unidense, o facto não apaga as experiências de vida destes atletas, e do trajecto de vida que levaram até chegarem ao pico do basquetebol.

Começando pela própria cor de pele, não é raro numa liga composta maioritariamente por afro-americanos, em arenas com públicos maioritariamente brancos, acontecerem diversos «casos Marega» e, na rua, a melanina é mais reconhecível que o cifrão. Que o diga Thabo Sefolosha (base-extremo dos Houston Rockets) quando a polícia de Nova Iorque lhe partiu a tíbia em 2015, lesionando-o para o resto da época, sendo mais tarde considerado inocente de todas as acusações. O dinheiro e a fama que desfrutam não os livra da condição de serem sujeitos racializados.

Também a jornada que é feita até chegar à NBA é longe de ser fácil. Para a maioria, vindos de lares pobres, o caminho até à liga milionária implica passar pelo desporto universitário. Para lá chegar, apenas um em cada 18 praticantes no «secundário» consegue uma bolsa (o que corresponde sensivelmente ao melhor de cada escola). Bolsa essa que, em média, não chega a pagar sequer as propinas em muitas das universidades, não contando com as restantes despesas.

E depois há uma concorrência de mais de 30 mil atletas para entrar no Draft (recrutamento) anual da NBA, onde há um total máximo de 60 lugares disponíveis. A larga maioria, após quatro anos de faculdade, sai com sorte para uma liga inferior, onde o rendimento é muito mais baixo (não por acaso o basquetebol português conta com muitos estado-unidenses), ou então para empregos pouco qualificados, porque ser jogador universitário é emprego a tempo inteiro, sendo os estudos parte sacrificada.

«se não é difícil argumentar que é inconsequente achar que o racismo consegue ser eficazmente combatido sem lutar também contra o capitalismo, é preciso ter em atenção a particularidade de países como os EUA. Desde a sua declaração de independência em 1776, o racismo é trave-mestra do regime.»

Foram marcantes as palavras de Shabazz Napier (actual base dos Washington Wizards), campeão universitário em 2014 e melhor jogador, quando afirmou, na que deveria ser a sua noite de glória, que havia noites em que ele e os colegas se deitavam com fome. Isto quando as instituições universitárias fazem mais de mil milhões de dólares anualmente em direitos televisivos e merchandising. O jogador típico da NBA sabe bem a dificuldade do trajecto que teve que percorrer e os obstáculos que lhe são criados, e o próprio carácter de exploração que sofreu.

Quanto ao terceiro aspecto, se não é difícil argumentar que é inconsequente achar que o racismo consegue ser eficazmente combatido sem lutar também contra o capitalismo, é preciso ter em atenção a particularidade de países como os EUA. Desde a sua declaração de independência em 1776, o racismo é trave-mestra do regime.

Não é necessário revisitar o passado racista dos EUA, mas como Bill Russell (jogador com mais títulos ganhos na NBA) nos conta, há apenas duas gerações que separam o tempo em que Russell fugia com os seus pais do Ku Klux Klan aos dias de hoje, em que os agentes de autoridade continuam a sair impunes quando assassinam negros, como se viu no passado dia 23 de Setembro, em que o júri não considerou culpados os três polícias que mataram Breonna Taylor. A luta contra o racismo é, por si, uma luta contra o sistema estado-unidense, ela obriga a profundas alterações nas instituições do país, e essas mudanças colocarão em melhores condições a luta por uma sociedade sem classes.

No momento em que escrevo, os playoffs estão quase a terminar, joga-se a final numa série de sete jogos entre Los Angeles Lakers e Miami Heat, mas, no presente e no futuro, é impossível discutir esta temporada sem discutir a luta contra o racismo e a violência policial e pela justiça social levada a cabo pelos jogadores, e isso já diz bastante sobre a sua justeza e coragem.

Como nota final, aconselho a passagem pelo site The Players' Tribune, um canal onde atletas de todo o mundo partilham as suas experiências. Num artigo que acaba por ser sobre a voz dos jogadores, nada melhor que ler o seu testemunho na primeira pessoa.

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