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Sem justiça não há paz

Ao surto pandémico sobrepõe-se, nos EUA, uma longa história de racismo, de pobreza e desemprego desproporcional, de violência policial e taxas de encarceramento, de formas de exclusão social e cívica.

Manifestantes, entre os quais o reverendo Greg Drumwright (ao centro) celebram a notícia da acusação, pelo Ministério Público do Minnesota, dos quatro polícias implicados na morte de George Floyd, recebida durante um protesto em 3 de Junho de 2020, em Greensboro, Calorina do Norte, EUA:
Manifestantes, entre os quais o reverendo Greg Drumwright (ao centro) celebram a notícia da acusação, pelo Ministério Público do Minnesota, dos quatro polícias implicados na morte de George Floyd, recebida durante um protesto em 3 de Junho de 2020, em Greensboro, Calorina do Norte, EUA:CréditosTom Baker / MPR News

Os últimos meses nos EUA, à semelhança do resto do mundo, têm sido marcados pela pandemia da Covid-19. Hoje, os EUA lideram o número de mortos por Covid-19 a nível mundial, com mais de 113 mil fatalidades, mais de um quarto do total mundial. A Administração Trump, apesar de avisos e evidências sobre a pandemia e a necessidade de medidas desde o início de Janeiro, tardou até meados de Março para recomendar a prática de distanciamento e confinamento. Um modelo indica que se os avisos tivessem sido acatados e medidas tomadas duas semanas mais cedo, cerca de 83% das mortes poderiam ter sido evitadas, demonstrando que embora a doença esteja a ter um efeito transversal no mundo, a realidade política de cada país tem um efeito significativo sobre o seu impacto. Trump tão pouco pôde evitar aquela que seria talvez a sua maior preocupação: não os efeitos na saúde, mas sim o impacto imediato na economia.

«Um modelo indica que se os avisos tivessem sido acatados e medidas tomadas duas semanas mais cedo, cerca de 83% das mortes poderiam ter sido evitadas1, demonstrando que embora a doença esteja a ter um efeito transversal no mundo, a realidade política de cada país tem um efeito significativo sobre o seu impacto»

O número oficial de desempregados disparou para o valor mais elevado do pós-guerra, mais de 40 milhões; e a taxa efectiva de desemprego deverá estar próxima dos 25%. Mais de 40% de PMEs estão à beira de fecharem. Apesar do pacote (lei CARES) de cerca de 3 biliões de dólares1 aprovado pelo Congresso, de apoio às empresas e trabalhadores, alastram-se as dificuldades das famílias mais pobres para pagarem a suas rendas e assegurarem comida. E enquanto os trabalhadores e pequenas empresas enfrentam dificuldades burocráticas em conseguirem apoio financeiro e subsídio de desemprego, as grandes empresas e multinacionais nadam em benefícios. As grandes empresas não só angariaram cerca de dois terços dos 350 mil milhões de dólares destinados às PME (apenas 5% das PME conseguiu apoios), como os 500 mil milhões que estavam previstos na lei CARES para as grandes empresas foi alavancado pela Reserva Federal, atingindo 4 biliões de dólares. Os bancos privados que geriram as candidaturas das empresas a apoios angariaram mais de 10 mil milhões de dólares só em comissões bancárias, já para não falar nos bancos – como o JPMorgan Chase e Citibank – que cobraram taxas de concierge para ajudarem os seus clientes mais ricos por todo o processo burocrático de candidatura. Enquanto os trabalhadores enfrentam falta de condições de salubridade – nas empresas de distribuição, nas cadeias de restaurantes, ou nas centrais de embalagem de carne – e organizam protestos exigindo melhores condições, as grandes empresas omitem casos de surto e contratam quem combata as tentativas de sindicalização.

O resultado acumulativo é uma vasta transferência de riqueza do Estado para as grandes empresas e grandes fortunas. Entre meados de Março e o início de Junho, quando a economia estagnou e a taxa de desemprego disparou, a bolsa recuperou tranquilamente e a riqueza acumulado dos bilionários aumentou 20%, mais de 500 mil milhões de dólares. Os trabalhadores da Amazon deixaram de receber os dois dólares por hora adicionais de subsídio de risco, depois de Jeff Bezos ter, neste período, aumentado a sua fortuna pessoal em 36 mil milhões de dólares.

«O resultado acumulativo é uma vasta transferência de riqueza do Estado para as grandes empresas e grandes fortunas. Entre meados de Março e o início de Junho, quando a economia estagnou e a taxa de desemprego disparou, a bolsa recuperou tranquilamente e a riqueza acumulado dos bilionários aumentou 20%, mais de 500 mil milhões de dólares»

Ao surto pandémico e à acrescida luta de classes nos EUA, sobrepõe-se uma longa história de racismo, de pobreza e desemprego desproporcional, de violência policial e taxas de encarceramento, de formas de exclusão social e cívica – incluindo no exercício do direito de voto, mesmo depois dos leis sobre direitos cívicos e eleitorais de 1964 e 1965. No contexto da pandemia, esse racismo expressa-se no maior risco dos negros em contraírem e falecerem devido à Covid-19. Expressou-se também no moderno linchamento de Ahmaud Arbery, de 25 anos, em Fevereiro, quando corria perto da sua casa, no Georgia. Arbery foi perseguido por dois homens, brancos, que o acostaram e alvejaram, enquanto um terceiro homem filmou o evento. Os três homens já se encontram detidos e acusados. Em Março, Breonna Taylor, uma enfermeira de Louisville, no Kentucky, foi baleada durante a noite, quando a polícia irrompeu pela sua casa como parte de um mandato de busca numa investigação de narcóticos. Não foram descobertas quaisquer drogas na casa. No final de Maio, outro vídeo demonstrou formas mais subtis de racismo, quando um observador de aves, Christian Cooper, negro, pediu a uma mulher branca para colocar uma trela no seu cão, de acordo com as regras do Central Park de Nova Iorque, onde se encontravam. A mulher, Amy Cooper, respondeu telefonando para a polícia, alegando que um «homem Afro-Americano estava a ameaçar a sua vida». Não só exagerou toda a situação, como fez uso propositado do reconhecido preconceito policial contra os negros para se retratar como vítima.

Estes três casos são recentes. Poderíamos referir os casos das mortes à mão da polícia em 2014 de Eric Garner em Nova Iorque (também ele captado em vídeo dizendo não conseguir respirar enquanto era estrangulado por trás por um polícia), de Laquan McDonald em Chicago, Tamir Rice em Cleveland; em 2015 de Walter Scott em Charleston, Freddie Gray em Baltimore, e Jamar Clark em Minneapolis; em 2016 de Alton Sterling em Baton Rouge, Philando Castile, em St. Paul; em 2018 de Stephon Clark em Sacramento e Botham Jean em Dallas. São apenas uma amostra do que antecedeu o caso de George Floyd, de Minneapolis, assassinado por Derek Chauvin, polícia que sufocou Floyd contra o chão com o seu joelho, durante quase nove minutos, enquanto outros polícias nada faziam além de se manterem como observadores à distância. Os vídeos que estes filmaram, porém, permitiram partilhar o caso com o mundo, promovendo uma vaga de protestos nos EUA (e no mundo) que duram há já duas semanas, porventura a maior e mais intensa vaga de protestos sociais nos EUA. Em centenas de cidades, nos 50 estados, centenas de milhares de pessoas têm exigido justiça e protestado contra o racismo e a violência policial, exigindo mudança.

«uma nação que gasta mais dinheiro em defesa que em programas sociais aproxima-se da morte espiritual»

MARTIN LUTHER KING

Em inúmeras instâncias, foram recebidos com novas vagas de violência policial e uso de tácticas militares, por parte não só da polícia, mas também da guarda nacional e até forças armadas. Apesar de alguns focos de pilhagem e destruição de propriedade por parte dos populares – muito empolado pela comunicação social conservadora – a vasta maioria dos protestos têm sido ordeiros, e com uma participação muito diversificada. Que a violência policial não é uma resposta ao vandalismo, tornou-se claro nos múltiplos casos onde ela foi exercida sobre os manifestantes pacíficos, enquanto as zonas de vandalismo permaneciam sem policiamento. O objectivo da violência policial é suprimir o protesto social e intimidar. Tem sido frequente vermos as forças de segurança empregar granadas de atordoamento, balas de borracha, gás de mostarda, gás lacrimogéneo e outras tácticas militares, além dos métodos menos «sofisticados» como as simples bastonadas contra manifestantes e, significativamente, contra jornalistas. O caso mais flagrante do uso destas tácticas, e que criou divisões mesmo entre Republicanos, teve lugar no dia 1 de Junho, quando uma mistura de forças policiais e militares dispersaram manifestantes pacíficos frente à Casa Branca para que Trump pudesse posar para fotografias, durante três minutos, erguendo uma bíblia frente à Igreja de São João.

A resposta policial aos protestos deu renovada visibilidade ao nível de militarização das forças policiais, que não se resume ao seu braço mais especializado, os SWAT (Armas e Tácticas Especiais). Em 1997, durante a presidência de Bill Clinton, foi aprovado o programa 1033 que permitiu a transferência de equipamento militar para as forças policiais estaduais e locais, programa que após o 11 de Setembro foi alargado, permitindo às forças policiais «prepararem-se contra o terrorismo». Ao abrigo deste programa, o Departamento de Defesa já distribuiu mais de 7,2 mil milhões de dólares de equipamento militar por mais de oito mil departamentos de polícia, incluindo uniformes de batalha e espingardas de assalto, mas também lança-granadas, aviões, baionetas e veículos resistentes a minas e explosivos (ou MRAP), idênticos aos empregues no Iraque e Afeganistão. Além do material, as forças especiais têm também recebido formação semelhante à oferecida pelos militares dos EUA às forças policiais nos países por si ocupados, instigando domesticamente uma mentalidade de contra-insurreição. (Este é aliás um exemplo muito claro da estreita relação entre a estratégia imperialista dos EUA pelo mundo, financiada pelo maior orçamento militar do mundo, e a estratégia repressiva doméstica.) O programa 1033 sofreu algumas restrições em 2015, durante a presidência de Obama, no rescaldo das críticas à resposta policial aos protestos pela morte de Mike Brown, no ano anterior, na cidade de Ferguson, no Missouri. Mas essas restrições foram revertidas pela Administração Trump, em 2017, reforçando de novo o processo de militarização. Isto apesar de vários estudos indicarem que a crescente militarização não contribui para proteger as forças policiais nem para diminuir as taxas de criminalidade.

«a indignação contra o assassinato de Floyd – tendo-se transformado numa luta contra o racismo e a violência policial, uma luta com profundas raízes históricas – tem de alargar-se ainda mais, para todo o sistema político que tem promovido o racismo e todas as formas de exploração e opressão, cujos responsáveis vão muito além de Trump e anteriores presidentes, democratas e republicanos»

Os protestos têm tido alguns efeitos positivos. Os quatro polícias envolvidos na morte de George Floyd foram presos e formalmente acusados. Nove membros do Conselho Municipal de Minneapolis prometeram desmantelar o departamento policial da cidade onde Floyd foi morto, uma maioria suficiente para superar o veto do Presidente da Câmara, dando alento à palavra de ordem que se alastra de redução dos orçamentos policiais, para investir mais em programas sociais («Defund the police»). Posições semelhantes estão a ser discutidas noutras cidades, como Nova Iorque, Baltimore, Washington DC e São Francisco. Trump porém nega a existência de problemas sistêmicos nas forças policiais, e insiste na defesa da «lei e ordem». O discurso e insensibilidade de Trump – que chegou a afirmar, num discurso sobre a economia, que George Floyd haveria de estar no céu dizendo que [os resultados económicos] são uma grande coisa, que é um bom dia para ele e para todos –, a inacção de Trump face à Covid-19 e a sua promoção de divisões entre a população, as suas constantes mentiras e manipulações, têm feito baixar a taxa de aprovação de Trump. Mas apesar das sondagens indicarem quedas de Trump em estados importantes que venceu em 2016, a sua derrota nas eleições de Novembro está longe de estar assegurada. Daí ser importante que os manifestantes e eleitores nos EUA compreendam que a indignação contra o assassinato de Floyd – tendo-se transformado numa luta contra o racismo e a violência policial, uma luta com profundas raízes históricas – tem de alargar-se ainda mais, para todo o sistema político que tem promovido o racismo e todas as formas de exploração e opressão, cujos responsáveis vão muito além de Trump e anteriores presidentes, democratas e republicanos, o mesmo sistema que oprime e promove a guerra pelo mundo, que promove o racismo e xenofobia no seu interior e que, para garantir o enriquecimento de uns poucos, explora os trabalhadores e espalha a pobreza.

Como avisou Martin Luther King, no seu discurso contra a guerra do Vietname em 1967, «uma nação que gasta mais dinheiro em defesa que em programas sociais aproxima-se da morte espiritual». Tal foi há mais de 50 anos. Há dias, o activista negro Cornel West declarou que a América é uma experiência social falhada. Disse: «A sua economia capitalista não pode oferece uma vida decente. O sistema criminal, o sistema legal não pode proteger os direitos e liberdades. A nossa cultura mercantilizada – onde tudo e todos estão à venda – não pode oferecer sentido e propósito.» E como se grita nas ruas, sem justiça não haverá paz.

  • 1. Seguimos a escala longa, típica em Portugal, onde um bilião corresponde a 1 seguido de 12 zeros, ou um milhão de milhão.

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